• Nenhum resultado encontrado

3. O SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

3.1 O CENTRO DE ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

As unidades de acolhimento da FUNASE estão organizadas de forma distinta, de modo que o atendimento a ser destinado ao adolescente dependerá da natureza e gravidade do ato infracional, além de outras circunstâncias. Por exemplo, há Centros de Internação Provisória (CENIP), que acolhem jovens por, no máximo, 45 dias38, tempo durante o qual se aguarda uma decisão judicial a ser definida a partir do conhecimento sobre a gravidade do ato infracional cometido.

A discussão sobre as condições espaciais e humanas dos Centros de Atendimento Socioeducativos do Estado nos tempos atuais exige compreender a lógica estabelecida pela legislação sobre o tratamento a se destinar ao adolescente interno. O ECA preconiza haja uma distinção clara entre o cometimento de crime e a prática de ato infracional; sobre punibilidade penal e aplicabilidade de medidas socioeducativas; e coloca de forma inequívoca que crianças e adolescentes até 18 anos e adultos são grupos diversos dos demais indivíduos e, por isso, devem obrigatoriamente receber do Estado um tratamento distinto quando cometem atos ilícitos que configurem ofensa à sociedade.

Nessa perspectiva, o CASE recebe adolescentes que se distribuem por diferentes faixas etárias, mas que já possuem situação processual definida, ou seja, já foram sentenciados por até três anos de internação em regime fechado.

Contudo, a experiência prática demonstra que tais distinções, colocadas de forma tão eloquente na letra da Lei, são quase que uma virtualidade, pois o que ocorre no âmbito das unidades de internação das instituições de atendimento socioeducativo que acolhem adolescentes que conflitam com a lei aproxima-se flagrantemente do que acontece em unidades prisionais destinadas a receber adultos que cometem crimes.

O que se pode constatar do ambiente pretensamente socioeducativo é que se trata muito mais de projeto disciplinar, tal como compreendido por Foucault, do que um lócus educativo, voltado a reinserir socialmente os seus adolescentes internos. Com um pouco mais de atenção, perceber-se-á que a racionalidade que rege a prática do internamento é a que se relaciona com o exercício de controlar e vigiar, trazendo paz social pelo isolamento daqueles que atentaram contra a paz social.

A experiência no CASE tornou rara a crença de que ambientes dessa natureza sejam capazes de cumprir com qualquer proposta socioeducativa, por isso que os apontamentos que ora serão feitos dizem respeito a mudanças de práticas e comportamentos e não propriamente a aspectos puramente físicos e estruturais do ambiente de internação.

É quase indiscutível o fato de se tratar de um ambiente insalubre, com instalações precárias, mas antes disso, o ambiente assemelhou-se como um lócus esvaziado de sentido, posto que todos os ditames das legislações relacionadas parecem letra morta diante do que a realidade apresentou.

Inclusive, a desconfiança desoladora que se nutria não tardou em evidenciar seus verdadeiros contornos depois do que se viu, ouviu e sentiu do ambiente de internação: o confinamento dos meninos não se presta somente a isolá-los da sociedade, por serem pessoas perigosas que cometeram condutas antissociais.

Interná-los no ambiente nos moldes do CASE, tal como se passará a expor, parece compor um plano maior e não menos aterrorizante. A prática que verdadeiramente é desempenhada nas instituições socioeducativas fechadas, mesmo de forma velada, visa à disciplina de seus internos pelo imperativo do sofrimento e do medo39.

O CASE representa um dos desdobramentos de um sistema no qual se procura ajustar a conduta avaliada como passível de reprovação às normas. No entanto, em se percebendo a dificuldade de fazê-lo, a violência e brutalidade vem a calhar como formas de controle e de sobrevivência.

Os espaços das unidades de internação deveriam, em tese, constituir-se no local onde o socioeducando fosse educado para sentir-se humano e assim, reconhecesse a humanidade do outro. No entanto, é nesse mesmo espaço onde são despejados meninos com personalidades indóceis, legado de uma vida inteira de exclusão e violência. A agressividade incontida e não

39

E foi isso que nos mostrou não somente a realidade, mas as próprias notícias que não raras vezes se fazem circular pelos meios de comunicação. Diga-se de passagem, a experiência também nos mostrou que somente parte do que ocorre no interior do CASE é veiculado pela mídia. A outra parte ainda permanece oculta. Vide reportagens anexadas ao presente trabalho no anexo I.

sublimada por referencias de afeto, faz com que os internos se sintam como quem não tivesse nada a perder, já que à sua existência não se atribui qualquer valor, o que os torna ainda mais cruéis.

Diante desse cenário de subjetividades ainda não integralmente constituídas e, por isso mesmo, não submissa à produção de ―corpos dóceis‖, tal como constataria Foucault, torna-se desafiadora a tarefa de estabelecer valores que se revistam do viés socioeducativo no interior das unidades de privação de liberdade.

Como transformar agentes socioeducativos em educadores? Como agir nas unidades socioeducativas para estabelecer relações predominantemente socioeducativas? Como se atribuir ao interno a qualidade de socioeducando se a aproximação com a maioria deles é praticamente inviável?

Em razão das características que permeiam o ambiente de privação de liberdade, acredita- se que a proposta socioeducativa deva ser precedida de um processo superior voltado à ressignificação de valores, permitindo ao socioeducando uma reflexão crítica e autônoma sobre o contexto do qual faz parte. Cada adolescente precisa ―conhecer-se como sujeito capaz de agir nesse mundo e transformá-lo‖, nas palavras Onofre (apud CÉSAR, 2014).

Todavia, esse processo necessariamente demanda que o jovem seja investido de responsabilidade que possa lhe dar autoconfiança, mas nada disso parece estar ao seu alcance, sem que lhe seja viabilizada uma educação cujas bases sejam mais afetivas.

O adolescente precisa se sentir cuidado e amado para ter certeza de que é importante no mundo. E aqui não se crê em nenhum processo que se pretenda socioeducativo sem que haja aproximação com o adolescente, apresentando-o novos referenciais, que não os da marginalidade e da violência, e lhes permitindo o contato com outros valores, que não o consumismo, a privação, o medo e o ódio.

Sustentar a primazia de referências afetivas no contexto do cumprimento da medida socioeducativa de internação não é tão audacioso quanto, à primeira vista, possa parecer. Também não se trata de uma epifania despropositada, fruto de um devaneio cabalístico e inexequível40. Consoante foi visto até aqui, os vínculos de apego são necessários ao desenvolvimento humano, mormente, na fase da infância e da adolescência, quando a personalidade do indivíduo não está integralmente formada.

40 Em que pese o intento do trabalho ora desenvolvido não seja, propriamente, o de indicar de forma taxativa e precisa ―saídas afetivas‖ à questão da adolescência à margem da lei interna do sistema socioeducativo do Estado de Pernambuco.

Não bastasse, a afetividade é um valor que deve nortear o agir dos profissionais das mais diversas áreas que lidam tanto com crianças quanto com adolescentes, nos termos das figuras normativas já tratadas. Por fim, sinceramente, aqui não se acredita em nenhuma forma de se socioeducar sem aproximação com aquele que se pretende educar para a vida em sociedade.

Por tudo isso, as asserções ora articuladas não foram alheias à realidade do sistema socioeducativo. Muito pelo contrário, elas só foram possíveis graças às constatações efetuadas no ambiente do CASE, na oportunidade em que foram feitas visitas sistemáticas de observação cujo foco se deu nas relações que ali eram travadas. A descrição de que se ocupará a próxima etapa da presente pesquisa intenta verificar as condições afetivas em que são travadas as relações intersubjetivas no interior do CASE.

4. UM OLHAR AFETIVO SOBRE AS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS NO