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2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO DEBATE SOBRE A

2.1 CIÊNCIA VERSUS UTOPIA: O PRIMEIRO DEBATE

2.1.3 Charles Fourier: o socialismo do prazer

Francês da região Franche-Comté, também terra natal de Phoudhon e Victor Hugo, Charles Fourier (1772-1837) era filho de um pequeno mercador da cidade de Besançon. Trabalhou durante sua vida como empregado de estabelecimentos comerciais (balconista), caixa de banco e especulando com a herança paterna. Conhecendo de perto a dinâmica e as técnicas comerciais, desenvolve uma grande aversão à atividade comercial, que identificava como o grande mal da civilização, pois era a manifestação da exploração e do parasitismo. Possuía uma postura anti- revolucionária e contra qualquer espécie de violência, repúdio que pode estar ligado ao fato de ter sido preso, em 1793, durante o Terror Jacobino comandado por Robespierre (PETITFILS, 1977; RUSS, 1991).

O pitoresco sistema proposto por Fourier que pretensamente apresenta o caminho para a superação das mazelas da sociedade civilizada, podemos dizer capitalista, é sem dúvida, segundo Petitfils (1977), um unânime exemplar da tradição utopista. Assim escreve o historiador françês sobre Fourier:

[...] se há um sistema impraticável que merece o qualitativo de utópico, é exatamente o de Charles Fourier, devaneio grandioso, povoado de fantasmas estranhos e insensatos que encantarão os surrealistas por sua incoerência e seu permanente apelo à loucura. É no mundo do imaginário, totalmente diferente do nosso, que devemos penetrar, um mundo ‘às direitas’, orgulhosamente contraposto ao ‘mundo às avessas’ da realidade. [...] (PETITFILS, 1977, p. 89).

Mas não são só ilusões que compõem o legado de Fourier. Engels (1988) computa a ele umas das críticas mais exemplares às condições de existência na sociedade

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Optamos por usar a expressão ‘socialismo do prazer’ de Leandro Konder (1998), cuja obra chama- se ‘Fourier, o socialismo do prazer’.

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burguesa daquele tempo, salientando como o escritor francês usa uma forma satírica e jovial para desmontar a argumentação dos ideologos burgueses e denunciar as mazelas materiais e morais da sociedade. Dirige uma crítica feroz à mesquinhez do espírito comercial reinante na sociedade burguesa. Sua interpretação da história dividida em períodos com fases ascencionais e descencionais e a percepção de que há contradições inerentes a essas etapas, onde nem sempre o que se pretende é alcançado, indicam segundo Engels (1988) que Fourier dominava a dialética tanto quanto Hegel.27

Em Fourier, a história seria formada por cinco etapas. A primeira, a era primitiva, onde o homem vivia todos os seus instintos livremente, depois, a selvageria, o patriarcado, a bárbarie, e por último, com a ascenção do capitalismo e a desordem generalizada provocada por ele, a quinta fase, a civilização. Nessa última fase tudo (a indústria, a agricultura, o comércio, o casamento, etc.) se torna mentira, vício, opressão, iniquidade. As fases se alternam entre harmoniosas e caóticas, um devir cíclico ascendente e descendente. A civilização é a última decandência onde uma minoria de ociosos oprime uma multidão que é condenada a um trabalho ingrato e a pobreza, está ultima, considerada a maior das desordens (PETITFILS, 1977; RUSS, 1991). A civilização no processo dinâmico da história constitui-se na ante-sala para um novo período de ascensão, que ele denomina como ‘harmonia’, um novo mecanismo societário. As contradições que levam a uma superação e a um salto de qualidade decerto são os elementos dialéticos presentes no fourierismo (ENGELS, 1988). O autor percebe de forma confusa, instintiva, não teórica, idéias que serão desenvolvidas por Marx mais adiante. Noções como a exploração, a mais-valia, a pauperização são intuidas, porém não teorizadas (PETITFILS, 1977).

Menos adepto das idéias iluministas do século XVIII, Fourier diverge de Saint-Simon, não crendo que somente a racionalidade e o desenvolvimento da sociedade industrial darão coerência à ordem social. Ao contrário, observa que o progresso da

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“[...] Fourier maneja a dialética com a mesma maestria do seu contemporâneo Hegel” (ENGELS, 1988, p. 26).

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indústria é criador de miséria, “la pauvreté naisse en civilisation de l’abondance

même” (FOURIER, 1829, p. 43)28

. Para Fourier,

L’industrialisme est la plus récente de nos chimères scientifiques ; c’est la manie de produire confusément, sans aucune méthode en rétribution proportionnelle, sans aucune garantie pour le producteur ou salarié de participer à l’accroissement de richesse ; aussi voyons-nous que les régions industrialistes sont autant et peut-être plus jonchées de mendiants que les contrées indifférentes sur ce genre de progrès (FOURIER, 1829, p. 38). 29

Já na sua primeira obra, ‘Théorie des quatre mouvements et des destinées

générales’30 (1808), Fourier apresenta o princípio que para ele rege a dinâmica societária, a atração passional, a busca pela satisfação das paixões humanas. Porém, tal princípio está sendo reprimido no atual estado de desenvolvimento social chamado civilização, que é o locus temporal da coação e repressão dos instintos passionais por meio da lei, é o locus de manifestação de uma moral repressiva que apequena o impulso harmônico, tornando mercantis inclusive as relações familiares (RUSS, 1991).

Fourier parte do pressuposto de que todas as paixões humanas são boas, pois são dadas por Deus31, o que as torna ruins é a organização da sociedade, portanto, a sociedade deve ter um novo tipo de organização onde tais desejos não sejam reprimidos. Sua máxima é a satisfação dos prazeres humanos, já que os considera totalmente bons e, portanto, não devem ser contrariados. Então, “mudar a sociedade é, primeiramente, tornar possível o desabrochar do impulso vital e das paixões” (RUSS, 1991, p. 104).

28“A pobreza nasce na civilização da própria abundância” (FOURIER, 1829, p. 43, tradução nossa).

Vale ressaltar que tal frase era muito apreciada por Engels e é citada no opúsculo ‘Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico’.

29 “O industrialismo é a mais recente das nossas quimeras científicas; é o vício de produzir

confusamente, sem qualquer método de retribuição proporcional, sem qualquer garantia de participação dos produtores e assalariados no aumento da riqueza; por isso nós vemos que as regiões industriais são talvez mais repletas de mendigos do que os países indiferentes a este tipo de progresso” (FOURIER, 1829, p. 38, tradução nossa).

30 “Teoria dos quatro movimento e dos destinos gerais” (FOURIER, 1808, tradução nossa). 31

De acordo com Petitfils (1977), as concepções metafísicas estão presentes em praticamente todos os escritores utópicos. Em Fourier, Deus se confunde com deus grego Eros, o deus do amor, assim, a atração passional é uma manifestação divina que organiza o funcionamento de tudo desde a matéria a sociedade. Além disso, tem uma característica panteísta, similar ao saintsimonismo, onde tudo é divino ou, tudo é Deus.

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Essa organização social onde os impulsos e as paixões desabrocharão, é a nova fase denominada ‘Harmonia’. Nesse novo sistema societário o princípio da atração passional seria respeitado, o que desencadearia uma cadeia de mudanças. Seria possível a transformação do trabalho em prazer, tornando o que era sofrimento, algo atraente, agradável. Todos poderiam trocar de trabalho de acordo com seus desejos buscando o máximo prazer. Assim, com atividades laborais atraentes, a produção quadruplicaria e, por conseguinte, não haveria escassez. O padrão de vida dos mais pobres seria muito superior ao evidenciado na época capitalista. As relações sociais cambiariam completamente: o casamento, a família de padrão monogâmico, a opressão sobre a mulher deixariam de existir.32 Fourier chega a prognosticar que com as mudanças sociais, evoluções biológicas na própria natureza ocorreriam para adaptar-se à nova realidade (PETITFILS, 1977).

Na ‘Harmonia’, a economia é reorganizada de forma que a fruição das paixões possa ocorrer com plena liberdade. Em seu sistema, o regime salarial e a livre concorrência deveriam ser substituídos pela livre associação, uma espécie de economia do desejo (PETITFILS, 1977). A base dessa organização é a falange, uma espécie de comunidade formada por 1.620 pessoas e um grande edifício, o falanstério (nome que se popularizou), que comportaria todos esses habitantes. Basicamente voltada para os trabalhos agrícolas, essas falanges poderiam estabelecer pequenas manufaturas, desde que todas as matérias-primas a serem processadas fossem produzidas no próprio falanstério. Fourier não é um coletivista, pois em sua proposta mantêm-se a propriedade privada e o dinheiro. Em suma, o falanstério é a base de um novo mundo amoroso, que substitui o degradado mundo industrial civilizado instaurando uma nova ordem moral (RUSS, 1991).

Em nenhum momento Fourier defendeu meios violentos ou revolucionários para chegar a ‘Harmonia’. Sua estratégia era conseguir o apoio de mecenas,

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A redução da subjugação da mulher era um indicativo do desenvolvimento social para Fourier. Considerado um dos precursores das idéias feministas, Fourier diz: “Les progrès sociaux et changements de période s'opèrent en raison du progrès des femmes vers la liberté ; et les décadences d'ordre social s'opèrent en raison du décroissement de la liberté des femmes. [...] l'extension des privilèges des femmes est le principe général de tous progrès sociaux “(FOURIER, 1808, p. 35). “Os progressos sociais e as alterações de período ocorrem em razão do progresso das mulheres em direção à liberdade; e as decadências da ordem social ocorrem em razão da diminuição da liberdade das mulheres. [...] a extensão dos privilégios das mulheres é o princípio geral de todo o progresso social (Fourier, 1808, p. 35, tradução nossa).

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particularmente burgueses e nobres, que financiariam seu projeto e consolidariam a transição. Logo, os falanstérios manteriam certo nível de diferenças sociais, porém, a riqueza máxima seria limitada e a todos seria garantido um rendimento mínimo. A repartição da produção seria feita de forma proporcional aos fatores produtivos, que para Fourier eram: o capital (4/12), o talento (2 ou 3/12) e o trabalho (5 ou 6/12) (PETITFILS, 1977).

Singer (2002) qualifica o projeto fourierista como um tipo de socialismo de mercado.33 Basta verificar que seu sistema não abole a propriedade privada, não acaba com o dinheiro, garante a herança, remunera o capital, permite diferenças sociais e a acumulação (PETITFILS, 1977). Apesar disso, é um “[...] inimigo do capitalismo liberal, adversário implacável do comércio mentiroso, teórico de um sistema comunitário oposto ao individualismo liberal [...]” (PETITFILS, 1977, p. 106), características que o colocaram junto aos socialistas.

Seu legado associacionista inspirou muitos na implementação do projeto falansteriano. Experiências foram realizadas na França, na África, nos EUA, e até no Brasil, com o caso do Falanstério do Saí ou Colônia Industrial do Saí, fundada em 1841 por imigrantes franceses no atual estado de Santa Catarina. Sua doutrina associacionista inspira até hoje as práticas da economia solidária (SINGER; SOUZA, 2000; SINGER, 2002a).