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2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DO DEBATE SOBRE A

2.2 OS PIONEIROS DE ROCHDALE E A DOUTRINA

Como buscamos evidenciar na primeira parte deste capítulo, as contribuições dos denominados socialistas utópicos, principalmente Robert Owen, Saint-Simon e Fourier, foram fundamentais para a concretização dos primeiros empreendimentos associativos e cooperativos de trabalhadores. Dentre essas experiências, a fundação da cooperativa de consumo Rochdale Society of Equitable Pioneers nas cercanias de Manchester, em 1844, é a que marca a consolidação do cooperativismo moderno45. Operários têxteis, que sofriam com as péssimas condições de trabalho e o constante espectro do desemprego, se organizaram numa instituição com fins econômicos e sociais sob diretrizes pré-acordadas coletivamente. A iniciativa dos 28 tecelões cresceu e prosperou passando para 12.584 integrantes em 1895, quando a cooperativa de consumo somava um capital integralizado de £ 365.295 (PINHO, 1966).

Durante estes anos, as diretrizes assumidas experimentalmente pelos pioneiros se generalizaram internacionalmente como princípios do movimento cooperativista (SOUZA, 2011). Baseado na experiência inglesa, os seguintes princípios fundamentam o cooperativismo moderno: 1º - Adesão voluntária e livre, sem qualquer tipo de diferenciação de gênero, etnia, orientação sexual, opção política e religiosa; 2º - Gestão democrática onde cada membro da cooperativa tem direito a um voto independentemente do capital integralizado; 3º - Participação econômica dos membros que receberiam juros fixos sobre seus aportes enquanto o excedente seria reinvestido; 4º - Autonomia e independência da gestão garantida em quaisquer circunstâncias e acordos firmados; 5º - Educação, formação e informação voltadas para a concepção cooperativa e custeadas com recursos da própria cooperativa; 6º - Pratica da intercooperação ou ajuda entra cooperativas; 7º - Interesse pelo desenvolvimento da comunidade (OCB, acesso em 20 out. 2012).

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Considera-se a fundação da cooperativa de Rochdale em 1844 como o nascimento oficial do cooperativismo. As organizações anteriores, apesar de muitas delas se basearem em princípios similares aos dos Pioneiros de Rochdale, dentre as quais, as desenvolvidas por Owen e Cabet, são consideradas pré-cooperativas (PINHO, 1966). Contudo, essas pré-cooperativas são resgatadas como as primeiras manifestações da economia solidária (SINGER, 2002a). “A cooperação pode se apresentar de maneira informal ou formal. O primeiro caso verifica-se frequente nas zonas rurais, quando os vizinhos se reúnem em mutirão para preparar a terra, semear, colher, marcar o gado ou realizar outras atividades. O segundo caso aparece quando a entreajuda obedece a estatutos previamente elaborados pelos membros cooperadores” (PINHO, 1966, p. 17).

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O pioneirismo dos tecelões de Rochdale motivou outros grupos de trabalhadores a fundarem outras cooperativas. Na França, a partir de 1848, foram fundadas cooperativas de produção idealizadas por Buchez. Seguindo a tradição já formulada na França, essas cooperativas sintetizavam as idéias de Saint-Simon (e seus discípulos Enfantin e Bazard), de Fourier (e seu discípulo Victor Considérant) e de Louis Blanc. Buchez mesclou o sistema societário de Saint-Simon com os fatores produtivos fourieristas (trabalho, talento e capital) e com a proposta blanquista de controle da concorrência e de ajuda financeira do Estado para emancipação do assalariamento. Essas associações de trabalho não tinham a personificação do empresário (entendido como ‘parasita’) e seguiam cláusulas semelhantes às dos pioneiros como a realização de assembléias periodicamente para a tomada de decisões, a distribuição dos rendimentos entre o fundo de reserva (20%) e o restante (80%) repassado aos trabalhadores proporcionalmente aos dias trabalhados e a atividade desempenhada, a consolidação de um capital social pertencente à cooperativa e de caráter inalienável, etc. (PINHO, 1966).

No campo creditício também desenvolveram-se cooperativas baseadas nos princípios de Rochdale e conjugadas com o princípio do auxílio mútuo, ou seja, não se permitia a ajuda do Estado ou qualquer tipo de ajuda filantrópica, somente os membros da associação poderiam cooperar entre si. Porém, a posição relativa a esse último ponto variava, e dependendo das condições econômico-sociais das regiões onde surgiam as cooperativas abriam-se precedentes. As primeiras experiências de cooperativas de crédito ocorreram na Alemanha idealizadas por Raiffeisen (1847), Schulze-Delitzsch (1849) e Haas (1883), e na Itália por Luzzati (1864) e Wollemborg (1883) (PINHO, 1966).

A sistematização da doutrina econômica cooperativista, que visa uma reforma social por meio da cooperação, acorreu 42 anos depois da iniciativa em Rochdale, em 1886. Conduzida por um liberal, o professor de Economia Política da Faculdade de Direito de Paris, Charles Gide (1847-1932), a formulação da doutrina cooperativista visava superar as mazelas econômico-sociais, das quais fazia duras críticas, com a implantação de diversos tipos de cooperativas (consumo, produção, crédito, etc.) por um caminho pacífico e gradual. Essa proliferação das cooperativas dar-se-ia em três etapas. Na primeira, priorizar-se-iam as cooperativas de consumo reduzindo os

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custos e abolindo o lucro, em seguida, implantar-se-iam cooperativas de produção industrial para serem fornecedoras das cooperativas de consumo, e, por último, na terceira etapa, constituir-se-ia um setor cooperativo agrícola (PINHO, 1966).

Partindo desse ‘programa em três etapas’ a doutrina cooperativista define o ‘consumidor46’ como o grande sujeito social capaz de empreendê-lo, capaz de

reformar a sociedade a partir da sua associação em cooperativas. Como todos integrantes da sociedade são consumidores, todos teriam o direito de participar, direta ou indiretamente, do controle dos meios de produção, e, por conseguinte, da gestão da produção dos bens e serviços que consomem, bem como, participar da gestão da distribuição dessa produção e da distribuição do crédito. Conforme aponta Pinho (1966, p. 31),

Lentamente e sem violência, os consumidores iriam formando cooperativas de consumo, que eliminariam os intermediários da troca e aboliriam o lucro. Depois, criariam cooperativas de produção agropecuária e industrial, que eliminariam o patrão, suprimiriam o salariado e dariam ao trabalhador, agrícola ou industrial, a posse dos instrumentos de produção e o direito de disposição integral do produto de seu trabalho. Concomitantemente, as cooperativas de crédito obteriam para seus sócios – que são ao mesmo tempo sacadores e sacados – as vantagens do auxílio-mútuo, da gestão direta e da concessão de empréstimos a juros baixos. A união dos consumidores em vários tipos de cooperativas teria como resultado o ‘Reinado do Consumidor’, concretizando a ‘República Cooperativa’ ou ‘Democracia Econômica. Daí a conhecida frase que sintetiza o ideal cooperativista: ‘o consumidor deve ser tudo’.

Essa perspectiva idealista foi enfrentada internamente por alguns autores, não obstante as bases fundamentais da doutrina permaneceram e influenciam as teses da economia solidária nos dias atuais. Dentre as críticas a Gide, temos a inglesa Beatriz Potter Weeb que divergiu em dois pontos com o autor: por ser coletivista, ela defende a socialização através do poder político; e, devido à influência do ‘cooperativismo owenista’, ela coloca as ‘trade unions’ em pé de igualdade com as cooperativas. Outro a contrapor-se a Gide foi seu conterrâneo G. Fauquet (1873- 1953) que, em 1935, colocou-se contra a cooperativação total da sociedade, pois ao observar a complexa realidade econômica do capitalismo, verificou que o cooperativismo será sempre um setor da economia dentro desse modo de produção

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A doutrina cooperativista propõe uma sociedade de consumo onde são atendidas as necessidades dos consumidores. Não se trata de uma ideologia do consumismo como impera no capitalismo.

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e nunca se generalizará como afirmara Gide. Por último, outro francês, Ernest Poisson (1882-1942), tenta aproximar o cooperativismo do socialismo e do marxismo, pois entende o cooperativismo como um movimento essencialmente socialista (PINHO, 1966).

Hegemônica e de caráter evolucionista, a doutrina de Gide coloca a ‘ordem

cooperativa’ como o novo modelo que sucederá a ‘ordem capitalista’ e suplantará

todas as desigualdades, solucionando os antagonismos de classe. Na sociedade cooperada dos consumidores não haverá luta de classes. Da forma como se desenvolve, a doutrina cooperativista se coloca como uma ‘terceira via’ entre o capitalismo e o socialismo. A doutrina cooperativista

[...] não se confunde com a doutrina liberal e individualista ou com o neoliberalismo, nem tampouco com as doutrinas socialistas revolucionárias ou reformistas. Surgiu como oposição às conseqüências (sic) práticas da doutrina liberal e individualista – que preconizava a mais completa liberdade econômica em fins do século XVIII, mas acarretou graves injustiças sociais, suscitando uma série de reações desde o início do século passado. [...] o cooperativismo se opõe também à prática socialista de vários países, pois, embora o socialismo tenha aí conseguido obter certa eqüidade (sic) na repartição dos rendimentos, eliminou as liberdades individuais, econômicas e sociais (PINHO, 1966, p. 30).

O crescimento do movimento cooperativo culminou na fundação, em 1895, na cidade de Londres, da Aliança Cooperativa Internacional (ACI), organização que até os dias atuais tem a função básica de preservar e defender os princípios cooperativistas (SINGER, 2002a; PINHO, 1966). Apresentando-se como alternativa de organização econômica, o cooperativismo nunca tornou-se hegemônico em nenhuma nação, coexistindo com os regimes capitalistas e planificados. Em muitos países de organização capitalista o cooperativismo foi um elemento importante no processo de desenvolvimento das forças produtivas, acompanhando paralelamente o avanço da sociedade mercantil. Em países de economia planificada, teve destaque na Iugoslávia, na China e no setor de produção agrícola Cubano. Essa relação entre socialismo e cooperativismo é que discorreremos agora.

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