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Cheikh Ahmadou Bamba (única imagem real existente do líder)

Fonte: Babou (2007)

Seus primeiros escritos concentraram-se em tawḥīd (teologia ou estudo racional da unicidade de Deus), fiqh e Shari'ah (jurisprudência e lei islâmica, como o correto desempenho dos rituais e comportamento religioso) e taṣawwuf (misticismo e sufismo). Essa estrutura de três camadas foi a característica essencial da formação de Bamba, que marcou a sua epistemologia e seu sistema educacional. Para o ele, o principal dever do ser humano era buscar a educação, que levava as pessoas a serem bons muçulmanos (BABOU, 2007, l. 1201). No entanto, ele preconizava que era preciso aliar conhecimento e prática.

O sistema que Bamba projetou foi uma educação ao longo da vida voltada para transformar o caráter e o comportamento do discípulo. Ele compreendia três etapas principais: a educação exotérica, ou taalim, que visava transmitir conhecimento através do estudo do Alcorão e das ciências islâmicas; a educação esotérica, ou tarhiyya, que visava à educação da alma; e a sua ascensão, a targirya. Este terceiro passo era atingido por apenas um pequeno

45 Esta foto está sempre presente na vida dos murides em cartazes de eventos, publicações, residências, meios de

número de discípulos especialmente capacitados, permitindo a elevação de suas almas além da futilidade da vida material, colocando-os em uma posição de liderança na comunidade (BABOU, 2007, l. 1201). Assim, os conceitos sufis de taalim, tarbiyya e tarhiyya moldavam o sistema educacional de Bamba e eram familiares aos clérigos instruídos. O que ele trouxe de novo foi o esforço para realmente dar conteúdo educacional concreto a essas noções abstratas. Uma de suas preocupações era encontrar um método que ajudasse a traduzir as crenças internas em práticas exteriores (BABOU, 2007, l. 1213).

Embora Bamba fosse o assistente e secretário de seu pai, também mostrou uma forte tendência à independência. Seus pensamentos foram influenciados por outras ordens e mestres sufis, como Ghazali, que era reconhecido na época por suas ideias renovadoras do Islã, conciliando a interpretação racional e rigorosa da religião com a espiritualidade e esoterismo místico (BABOU, 2007, l. 1157).

Nesse sentido, o sufismo é uma ―ciência da práxis‖, enraizada na sharia, as leis islâmicas baseadas no Alcorão, e no misticismo voltado à educação do coração. Essa preocupação foi reafirmada em seus ensinamentos e trabalhos eruditos, nos quais a crença na unicidade de Deus e sua adoração sempre vieram antes da purificação. A ideia do líder foi moldada pelo desejo de misturar misticismo, sharia e envolvimento na sociedade (BABOU, 2007, l. 1169).

Bamba era adepto de um ―sufismo minimalista‖, que associava esoterismo moderado e respeito aos rituais ortodoxos (BABOU, 2007, l. 1279). As particularidades do pensamento de Bamba fizeram com que ele fundasse a sua própria tariqa, após implantar a tarhiyya como método de estudo (BABOU, 2007, l. 1149). Assim, em 1887, fundou a aldeia de Touba, localizada a 193 km de Dakar, que se tornou local sagrado e de peregrinação para os murides. Sua reputação de piedade e erudição atraiu para junto dele uma grande massa de discípulos. Essa comunidade, de base wolof (membros da aristocracia, antigos guerreiros, camponeses, descendentes das classes servis, antigos escravos), já no inicio dos anos 1890 contava com várias centenas de membros, na sua maioria implicados no cultivo, em grandes extensões, de amendoim (DIAS, 2007a, p. 2). Entre seus ensinamentos, Babou (2007, l. 1279) destaca uma fala de Bamba que descreve o que ele desejava dos seus discípulos: ―The genuine Murid is the sincere disciple who loves his sheikh, submits to his service and gives hadiyya [offering, present, gift]‖.46

No entanto, a forte liderança de Bamba em relação ao seu grupo de seguidores,

46 Tradução da autora: ―O muride genuíno é o discípulo sincero que ama seu xeque, submete-se a seu serviço e

chamou a atenção do poder colonial francês, que não estava de acordo com o proselitismo da confraria e a atitude pouco cooperante do seu líder com a administração da época. Assim, as relações entre Ahmadou Bamba e o poder se deterioraram nos anos seguintes, levando a administração colonial, que o acusava de subversão, a exilá-lo por duas vezes, a primeira no Gabão, entre 1895-1902, e a segunda na Mauritânia 1902-1907. Em seu retorno do exílio, ele viveu em residência vigiada, em Diourbel, até sua morte, em 1927 (KANE, 2010, p. 50).

Todas as provações pelas quais Bamba passou frente aos embates com a administração da colônia francesa aumentaram ainda mais a admiração de seus seguidores. E uma das heranças religiosas mais importantes deixadas pelo seu líder aos murides é o Grand Magal de Touba (Grande Festa-Celebração de Touba), que é a principal celebração muride. De acordo com Bava e Gueye (2001, p. 424), o Grand Magal é comemorado no dia 18 do mês de Safar do calendário muçulmano. O desenvolvimento desse evento e seus significados são característicos da evolução dos bens religiosos para a autoridade da irmandade e seus membros. A celebração é um pedido feito pelo próprio Cheikh Ahmadou Bamba aos seus discípulos, em comemoração ao aniversário de sua primeira partida para o exílio no Gabão.

Já que a administração colonial queria quebrar seu ímpeto e de sua irmandade, ele escolheu essa data especialmente pelo significado que deu às provações, que ele acabou chamando de ―benefícios‖. Ou seja, esses testes que lhe permitiram, de acordo com a lógica sufi, acessar as mais altas graças divinas. Ahmadou Bamba teria agradecido ao Senhor por este isolamento que o tirou dos homens e o aproximou Dele, de seus companheiros e anjos. Ele teria entrado em um pacto de lealdade com o profeta a fim de alcançar o estágio espiritual que desejava. Para isso, foi preciso se afastar de Touba, onde ele estava protegido pelo poder divino, para enfrentar o seu destino e passar por muitas dificuldades, o que contribuiu com sua busca espiritual (BAVA; GUEYE, 2001, p. 424).

O Magal de Touba, ao longo do tempo, foi transformado em um feriado religioso, em que ocorrem celebrações com diferentes práticas, como cantos de khassidas, recitação do Alcorão e orações, além de visitas a marabus, à mesquita, aos mausoléus e a outros lugares sagrados. É um momento de exaltação coletiva a que Bamba imbui a história sagrada, memória, interesse individual e maravilha. Mais do que uma comemoração, é um ato global de capturar o poder sacral da irmandade muride por meio da baraka. Nesse dia, quase dois milhões de discípulos do Senegal e de todo o mundo visitam Touba (BAVA; GUEYE, 2001, p. 424).