• Nenhum resultado encontrado

Livros de Alcorão de Bamba, sobre sua cama, em sala especial na Biblioteca Daaray

Fonte: Foto da autora (2017)

Essa sala reflete o zelo que os murides relatam que Serigne Touba tinha pela sagrada escritura do Alcorão, dando um caráter de pessoalidade aos textos. Tanto que precisavam

93

Tradução da autora: ―Este modelo está disponível por escrito; é igualmente e simetricamente disponível para todos os homens letrados e para todos aqueles que desejam atender aos homens alfabetizados. Essas regras devem ser implementadas em toda a vida social‖.

repousar, estar perfumados e bem cuidados dentro de capas enfeitadas.

O zelo de Bamba pelo Alcorão e o zelo dos murides pelo Alcorão e pelas khassidas suscitam uma relação de veneração com a escrita, e consequentemente com a leitura, que podem ser pensadas sob a ótica de Certeau (1994). Mesmo que as discussões do autor estejam voltadas para reflexões acerca do ocidente moderno, seus apontamentos podem servir também para entender as escrituras. Para Certeau (1994, p. 225), a escrita é uma ―atividade concreta que consiste, sobre um espaço próprio, a página, um texto que tem poder sobre a exterioridade da qual foi previamente isolado‖.

Nesse processo, há três elementos decisivos. O primeiro é a folha em branco, como lugar de produção do sujeito. ―Trata-se de um lugar desenfeitiçado do mundo. [...] Oferece-se uma operação parcial, mas controlável‖. Funciona como ―um lugar de escritura, do domínio (e isolamento) de um sujeito diante do objeto‖ (CERTEAU, 1994, p. 225).

A construção do texto é o segundo elemento, em que ―fragmentos ou materiais linguísticos são tratados (usinados, poder-se-ia dizer) neste espaço, segundo métodos explicáveis e de modo a produzir uma ordem‖. O movimento da escrita leva em conta a sua própria operação, ligando gestos e mente, que [...] ―vai traçando na página trajetórias que desenham palavras, frases, enfim, um sistema [escriturístico].‖ A página em branco é uma prática itinerante, progressiva e regulamentada, que compõe a trajetória de um mundo que não é recebido, mas fabricado. ―O modelo de uma razão produtora escreve-se sobre o não-lugar da folha de papel (CERTEAU, 1994, p. 225).

Já o terceiro elemento envolve a exterioridade, de maneira distinta das práticas sociais efetivas. Para Certeau (1994, p. 226), o ―jogo escriturístico, produção de um sistema, espaço de formalização, tem como ‗sentido‘ remeter à realidade de que se distinguiu em vista de mudá-la‖, objetivando uma eficácia social. A escritura tem como função, ―ou fazer que uma informação recebida da tradição ou de fora se encontre aí coligida, classificada, imbricada num sistema e, assim, transformada; ou fazer que as regras e os modelos elaborados neste lugar excepcional permitam agir sobre o meio e transformá-lo‖ (CERTEAU, 1994, p. 226). Dessa forma, ―as coisas que entram na página são sinais de ‗uma passividade‘ do sujeito em face de uma tradição; aquelas que saem dela são as marcas do seu poder de fabricar objetos‖. Assim, produção escrita alia ―o poder de acumular o passado e de conformar a seus modelos a alteridade do universo‖ (CERTEAU, 1994, p. 226).

Os três elementos demonstram que quem domina a escritura conquista um poder. Esse poder escriturístico é responsável por definir o código da promoção socioeconômica e dominar, controlar ou selecionar, segundo suas normas, aqueles que não possuem esse

domínio da linguagem. Assim, a escritura se torna um princípio de hierarquização social, funcionando como uma lei (CERTEAU, 1994, p. 230).

O sistema escriturístico do qual fala Certeau, pode servir para entender a relação dos murides com as khassidas: ―o público é moldado pelo escrito (verbal ou icônico), torna-se semelhante ao que recebe, enfim, deixa-se imprimir pelo texto e como o texto lhe é imposto‖ (CERTEAU, 1994, p. 261). Esse molde, essa impressão são nítidos, conforme será apresentado a seguir, principalmente em relação à vocalidade e performance envolvidas nos cantos religiosos.

Certeau (1994) aponta as distinções entre leitura como um ato léxico e como um ato escriturístico. Nesse âmbito,

ler o sentido e decifrar as letras correspondem a duas atividades diversas, mesmo que se cruzem. Noutras palavras, somente uma memória cultural adquirida de ouvido, por tradição oral, permite e enriquece aos poucos as estratégias de interrogação semântica cujas expectativas a decifração de um escrito afina, precisa ou corrige. [...] Tudo se passa portanto como se a construção de significações, que tem por forma uma expectativa (esperar por algo) ou uma antecipação (fazer hipóteses) ligada a uma transmissão oral‖ (CERTEAU, 1994, p. 263-264).

O autor afirma que ler significa peregrinar por um texto imposto, tendo a leitura o poder de modificar o objeto.

O texto ―torna-se texto apenas somente na relação à exterioridade do leitor, por um jogo de implicações e de astúcias entre duas espécies de ‗expectativa‘ combinadas: a que organiza um espaço legível (uma literalidade) e a que organiza uma démarche necessária para a efetuação da obra (uma leitura)‖ (CERTEAU, 1994, p. 266).

Nesse ponto, Certeau (1994) reflete essas questões por meio de um trecho do poeta e escritor Jorge Luis Borges: ―Uma literatura difere de outra, ulterior ou anterior, menos pelo texto do que pela maneira de ser lida‖ (BORGES, 2007, p. 183). Aqui, é possível adiantar a relação entre a leitura, vocalidade e performance envolvidas nas khassidas, conteúdo que integra o subcapítulo 4.4.

4.2.1 Cheikh Ahmadou Bamba: o escritor das 7 toneladas

Os senegaleses, ao relatarem a história de Cheikh Ahmadou Bamba, exaltam a capacidade de escrita ―sobre-humana‖ que o líder possuía, culminando no que eles não cansam de falar: as sete toneladas de poemas de louvor a Deus e ao profeta Maomé. ―Ele ficava sem dormir dias e noites, não precisava nem comer. Escrevia sem parar‖ (DIÁRIO DE

CAMPO, 10 mar. 2015, entrevista com Cher).

A ideia de sete toneladas revela o ―peso‖ que a comunidade muride dá à quantidade de textos escritos pelo líder. Ocorre destacar que o número sete, para o esoterismo islâmico possui grande representação: simboliza a perfeição depois de um ciclo concluído. Além disso, são sete são as portas do Paraíso e o número sete também indica o senso de mudança e renovação (DIAZ, 2017).