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164 ― Irmão, este não seria, por acaso, o... Interrompeu-o mais uma vez o bibliotecário- mor.

― Sim, irmão, o próprio, aquele que nunca deveria ter sido escrito e, apesar disso, fora-o duas vezes!

― Mas, D. Hermenegildo, se me perdoa o atrevimento, neste pedaço de pergaminho está escrito...

Pela terceira vez, agora com certa veemência, interrompeu-o D. Hermenegildo.

― Que sou eu o seu autor? Sim, é verdade, e é preciso que assim seja, caso contrário não seriam necessárias as próximas páginas deste manuscrito, e nem eu nem você estaríamos tendo esta conversa. E é melhor que não falemos mais sobre esse assunto, afinal, esse livro nunca chegou a ser terminado e, portanto, não chegou a existir, está perdido.

― Mas se o senhor está a dar-se como seu autor...

― Isto, meu caro Irmão Crispim, é apenas uma cópia inacabada que não interessará a ninguém, e que importam os autores desta ou daquela cópia de um manuscrito que nem sequer existiu? Muito se falará do original perdido do Orto do Esposo, mas, enquanto sua autoria se mantiver anônima, não haverá problema. Quanto às cópias, todas elas só chegam até um certo ponto e terminam abruptamente, como se seus copistas tivessem desaparecido. O original, este sim, ainda que de natureza mítica, deve permanecer anônimo, ou estaremos todos condenados a desaparecer com ele. Portanto, meu jovem letrado, ou o autor deste livro sou eu ou ninguém, pois não ganho nada com isso, a não ser o fardo de ter minha existência questionada até o Fim dos Tempos...

Irmão Crispim não entendeu muito bem o raciocínio de D. Hermenegildo, mas achou melhor dar por encerrada a conversa ou então não conseguiria falar sobre seus próprios questionamentos.

― O que deseja tratar comigo agora? Estou um pouco ocupado, como pode ver. Inquiriu D. Hermenegildo com uma intenção clara de não desejar perder muito tempo com coisas menores.

― Na verdade, irmão, eu só gostaria de dizer-lhe que pensei bem sobre o assunto de que tratamos pela manhã e resolvi seguir o seu conselho, apesar de ainda não gostar muito da ideia.

― Pois muito bem então, verá que essa foi uma decisão acertada. Seu manuscrito o aguarda, não o deixe esperando por mais tempo. Já é tempo de alguém conseguir terminá-lo, e espero que você seja o monge que concluirá esta difícil tarefa.

165 Irmão Crispim se sente encorajado mesmo com toda a rispidez de D. Hermenegildo e, num apertar de lábios, concordando com as palavras ditas pelo bibliotecário-mor, acena a cabeça e se retira da presença de seu superior. Este, tendo sido deixado sozinho novamente, passa a cola no pequeno pedaço de pergaminho a cola-o sobre um pequeno buraco do fólio sobre o qual estava debruçado anteriormente.

― Orto do Esposo Cristo Jesus edificado de muitos exemplos para instrução e recreação das almas por Frei Hermenegildo de Tancos, monge alcobacense... diz em voz baixa, e continua: ― Serpens mordet propriam codam ad infinitum... E, depois de uma pausa, tendo fixado os olhos no livro que acabara de receber seu novo autor, levanta-se e o coloca numa prateleira no meio de outros livros e deixa sua sala com ar preocupado.

Enquanto isso, Irmão Crispim já se sentava à sua escrivaninha e tentava ordenar o seu material de trabalho para prosseguir com a cópia dO Romance do Horto.

E, como senti mais uma vez a pena a arranhar-me, e o gosto acre da tinta escura a revolutear sobre mim, dando-me sentido e existência, deduzi com facilidade que meu copista voltara do intervalo ao qual me permitira e dentro do qual tantas reflexões pude fazer. No entanto, os movimentos da pena senti-os imprecisos, hesitantes, e não foram poucas as vezes as em que o estilete raspara-me a superfície, tanto que já me imaginava coberto de furos e rasgos. As palavras vinham e logo eram raspadas; as frases surgiam e imediatamente eram apagadas. Algumas letras, quando se desenhavam, aguardavam, órfãs de vocábulos completos, outras letras que a seguissem, às vezes, por muito tempo. Escrevia-se-me, pude bem senti-lo, qualquer coisa que perturbava meu copista... Cinco anos se passaram... Cinco anos se passaram... E assim, Tadeu cresceu em meio à vida na corte e à vida religiosa.... E assim, Tadeu cresceu em meio à vida na corte e à vida religiosa... Foi dessa maneira, estando sempre em Alcobaça ou Serra Alta ou Tancos, que o jovem menestrel... Não, isso já foi dito... E entre a tentativa de formular uma frase e outra o espaço de tempo aumentava um pouco mais, e não me era mais possível, depois de algum tempo, identificar os balbucios do hesitante monge. Talvez o Dr. Leitão possa me ajudar, dizia, ou ainda, mas como pode alguém confiar no testemunho de um cão, por São Jerônimo!, irritava-se. Até que, repetindo a frase “cinco anos” várias vezes, chegou a apoiar a sua testa sobre mim, reclinando-se totalmente para a frente sobre sua escrivaninha, e dormiu profundamente, à larga, como dormem os justos, pesadamente, abandonando-se por completo ao sono e ao cansaço. O hálito de costeleta de porco, molho verde, pão e cerveja se espalhava sobre mim, e a baba que lhe escorria da boca manchou-me um importantíssimo trecho que agora estará perdido para sempre e por isso não

166 lhes posso contar, mas lhes posso contar o sonho que teve e todas as maravilhas que nele aconteceram, e tudo isso lhes posso contar graças ao fato do pobre monge ter deitado sua cabeça sobre mim, pois os sonhos são como os livros e os livros são como os sonhos: eles falam a mesma língua, transitam por lugares onde ninguém mais, à exceção dos loucos, conseguem transitar, pois somos feitos da mesma matéria dos sonhos, e assim como há sonhos dos quais nunca mais saímos, da mesma forma há livros dos quais nunca mais nos livramos, porque afundar-se num livro é como afundar-se num sonho, ou num pesadelo, tudo dependerá da história, do enredo, da pura vontade do livro e do simples capricho do sonho, e é melhor que nos deixemos dormir sobre bons livros, E poreemm dizia Sã Jheronimo, já que ennele se ffalou e a elle se rougou, aa sancta uirgem Euthochia que nõ cessasse de leer ataa que a forçase o sono, em guisa [que] caysse a sua face sobre o liuro, e que nuunca tirasse o liuro da Sancta Escriptura da mãão. E, entregue que estava ao sono o copista hesitante, não ordenava mais o pensamento e tomaram conta dele seus sonhos, e nele apareceu D. Tadeu Laras, ainda muito pequeno, correndo pelos campos de Serra Alta junto a seu amigo, o pequeno Henrique Oliveira, e ora divertiam-se pelas vielas pobres de Serra Alta, ora escondiam-se um do outro nas cercanias do castelo dos Oliveira, em Tancos. E por outras vezes, viu Irmão Crispim – pude saber-lhe o nome assim que deixou sua cabeça pressionar-me contra a escrivaninha – D. Tadeu estudando muitos e muitos livros na biblioteca de Alcobaça, sob os ensinamentos de D. Hermenegildo, e as pilhas de livros eram mui altas e nelas havia tantos livros e eram tantos os montes de códices que chegavam ao céu como a Torre de Babel. E viu também que muitos anjos, próximos que estavam de tantos livros, puseram-se a lê-los e muitos eram arremessados aos infernos pois eram livros proibidos, e antes mesmo de chegarem às profundezas, queimavam-se na queda e muitos queimavam as vestes negras de Irmão Crispim. E logo um D. Tadeu adulto, vestindo os trajes de seu ofício de menestrel, apareceu-lhe ao lado e entregou-lhe um livro muito grande, de capa cor de terra, envelhecido pelo tempo e empoeirado, e olhava-o com seriedade e este, em silêncio, passou a mão queimada pelos livros que desciam dos céus aos infernos por sobre a capa imunda e pegajosa, e viu que aparecia por debaixo do pó o seu título, e pôde ler “Crônicas de Serra Alta, por D. Tadeu Laras, Trovador da Corte de El-Rey D. Dinis”, e quis abrir o livro mas não o pôde pois por mais força que fizesse; não se movia a capa. E procurou o menestrel com muita impaciência e viu-o, agora como uma criança, à porta da sala de D. Hermenegildo, no scriptorium do mosteiro de Alcobaça, e o menino deu-lhe um sorriso e desapareceu por entre as escrivaninhas daquele santo local de trabalho. E Irmão Crispim quis gritar mas não pôde

167 porque a voz não lhe saía da boca, contudo, ainda assim, chamou a atenção de D. Hermenegildo que lhe lançou um olhar seriíssimo e lhe mostrou a mão direita aberta, e Irmão Crispim entendeu que ele quis dizer cinco, mas não falara. E lembrou-se, no sonho, de algo que lhe tornara o próprio sonho ainda mais pesado e angustiante: se D. Hermenegildo criara D. Tadeu, porque ele próprio não lhe revelara os cinco anos secretos do menestrel? Será que não havia, de fato, matéria para ser contada? Estaria D. Hermenegildo escondendo alguma coisa? Quis acordar mas o sono não permitiu, puxou-o ainda mais para dentro de si, e as visões que Irmão Crispim tinha agora adquiriam um tom cinza, algo de sépia, enevoado, de uma atmosfera levemente opressora, abafada, sufocante. E D. Hermenegildo fechou-se em sua sala batendo a porta com violência, o que assustou muito Irmão Crispim que viu, de repente, o scriptorium transformar-se em uma capela, e reconheceu que era a capela da levada, e reconheceu também a imagem de Nossa Senhora do Desterro, e o Cristo crucificado e até o sino de bronze no campanário. Ainda assim, era uma capela diferente: suas paredes estavam mofadas e havia muita infiltração; o chão era sujo e havia vermes na corda do sino, e a expressão tranquila do Cristo que vira naquela manhã em vigília, agora, em seu sonho, era de sofrimento profundo, e suas chagas eram abertas e vazavam muito sangue, que escorria e caía na imagem da Virgem que deu um grande gemido de dor dizendo “Ai de todos vocês, meus filhos, porque é o ano de 1310, e muitos morrerão de morte terrível” e, dizendo isto, o sino da capela tocou sozinho, e havia um cachorro muito magro e sem pelos num dos cantos da igrejinha que não se movia, sentado sobre as patas traseiras e mirando a porta do pequeno edifício. E sentiu como se fosse chamado para fora e foi para a saída e uma luz difusa e esmaecida já lhe ia banhar o rosto quando olhou para trás e viu que o galgo sem pelos estava no lugar do Cristo crucificado a lamber suas próprias feridas e, assustado, virou o rosto novamente para fora e viu o próprio Cristo ao seu lado, no umbral da capelinha, e usava sua coroa de espinhos que lhe sangrava a fronte, e estava seminu como se O conhece dos crucifixos; mostrou a Irmão Crispim a saída, estendendo o braço esquerdo para fora e, conforme o monge saía da igrejinha, seguia-o de perto com os olhos o Salvador. E ao ver-se do lado de fora, Irmão Crispim teve uma visão ainda mais maravilhosa, porque viu muitos anjos voando de todos os lados, e todos eles pareciam muito preocupados, e foi quando um anjo vestindo a lorica romana dos centuriões empunhou uma grande trombeta dourada, e dela saiu um som que agitou toda a terra, e era muito terrível aos ouvidos, tanto que Irmão Crispim precisou tapá-los com as mãos, inutilmente, e também teve que se afastar de capela da levada porque esta começou a desabar com os tremores de terra provocados pela trombeta do anjo

168 centurião, e Nosso Senhor entrou na igrejinha de costas e desapareceu debaixo dos escombros. E com isto aterrorizou-se muito o monge copista, mas não fora apenas isto que via enquanto sonhava sobre mim. O tremor de terra fizera muitas rachaduras no solo, e eram muitas e mui profundas e de muitas se podia ver o próprio Inferno, porque suas labaredas chegavam até a superfície e queimavam as árvores e os animais, e a terra pôs-se a vomitar muitos caixões e muitos defuntos envoltos em panos de linho; aqueles que estavam dentro dos caixões saíam putrefatos e cambaleavam agonizando pela terras, e aqueles que estavam enrolados em panos de linho andavam sem rumo, rugindo como o próprio demônio, e Irmão Crispim quis novamente gritar e da mesma forma não o pôde, e nisso houve muito pavor em sua alma, porque queria acordar e não conseguia, e aproximou-se dele um dos cadáveres que pareciam ressuscitados e o abraçou com seus braços podres e aproximou sua cara desfigurada do rosto apavorado do monge e lhe disse mui claramente: cinco anos... eis os seus cinco anos, monge! Irmão Crispim conseguiu se desvencilhar daquela alma maldita por Deus e foi no meio de toda aquela multidão de mortos a se chocarem uns contra os outros e a gemerem e a soluçarem e a invocarem perdão a Nosso Senhor que ele viu D. Tadeu menino, e ele sorria e acenava para o monge e correu por entre o desfile dos malditos. Irmão Crispim correu desesperadamente atrás da criança pois lhe parecera um sinal de grande prodígio, pois o menino era o único que não parecia um retorcido ressuscitado, e tentou alcançá-lo desviando- se dos corpos, e via que muitos anjos lutavam com essas gentes mortas, e a terra não cessava de tremer sob seus pés, de forma que era muito difícil correr sem quase cair ou tropeçar, mas, ainda assim, sentiu com todas as forças que seguir o pequeno Tadeu era a saída daquele pesadelo. E viu-se de fato afastado de todo aquele horror, mas agora estava em meio à floresta e estava perdido e assustado, seu hábito já estava em muito mau estado, e seus pés haviam feridas e sangravam, e o pobre beneditino sentia muito frio, porque a floresta era escura e pareceu-lhe que a noite caíra sem que ele o houvesse percebido. E sentiu-se profundamente desolado, caindo de joelhos, e chorou. Foi quando aproximou-se dele D. Tadeu ainda menino, e com ele duas pessoas que não reconheceu, mas que seu espírito soube que eram os pais de D. Henrique, D. Meinolfo e D. Loela, porque ela vestia uma longa camisola mui branca, maculada por uma mancha de sangue que começava na altura da genitália e corria-lhe vestido abaixo e, aquele, deduziu ser o seu marido por estar a seu lado, tendo entre eles o pequeno Tadeu. E os dois tinham o aspecto muito pálido, a pele acinzentada, as expressões vazias, os olhos sem brilho e as carnes amansadas. Foi quando o menino entre eles disse a Irmão Crispim: esses são os pais de D. Henrique, mas já o sabes. O que ainda não sabes é que os

169 dois morreram também neste ano de 1310, como quase todos em todas as terras de Portugal30. E Irmão Crispim temeu também aqueles dois espectros mas sua curiosidade foi mais forte que todo o medo incutido em seu espírito e ele perguntou ao jovem Tadeu: mas e tu, pequeno, dize-me por caridade e por tudo o que é mais santo e por todas as almas que estão a sofrer neste dia que é o Fim dos Tempos, e tu?, tu, o que fizeste de tua vida nestes cinco anos? Isso, Irmão Crispim, não posso dizer-te porque não o sei, era uma criança, o que esperavas?, respondeu com inocência. Porém o monge insistiu: mas há quem deva saber, por certo! O Dr. Leitão! Sim, este poderá saber onde estiveste e o que fizeste! Este, bom monge, também ceifou-o a peste por estes dias, e nada deixou nas Crônicas de Serra Alta que possa saciar teu desejo impertinente de a tudo narrar. E te advirto: nem o próprio João das Regras poderá acrescentar nada à matéria, que é escassa por sua natureza, porque não houve nada em minha vida pueril que seja merecedor de ser contado. O que esperas de mim? Brinquei, cantei, chorei, menti, aprendi, sofri, li, contei, vivi, tudo o que faz uma criança, repreendeu-o o menino. E continuou: há, porém, algo que fiz neste desgraçado ano de 1310, mas não te posso contar, porque é chegada a hora de tua punição por pecado tão grande, este que carregas contigo. Punição? Mas eu desejava apenas escrever os fatos! É meu ofício perpetuar as narrativas! Como posso fazer isso se não conheço tudo aquilo sobre o que deveria escrever?!, desesperou-se. Tadeu soltou as mãos sem vida dos Oliveira e tomou a mão de Irmão Crispim, puxando-o para a floresta, ainda mais para dentro, ainda mais escura, dizendo-lhe: nem tudo deve ser dito, Irmão Crispim. Se tudo for contado, o que sobra para aquele a quem se conta senão uma grande inércia e indolência e um grande sono, e nada mais? Que importa se se comeram costeletas de porco com molho de ervas no qual se encharcam fatias de pão num almoço do mosteiro de Alcobaça? A não ser que isto tenha alguma relevância, continuou, tais coisas não devem ser mencionadas, como aconteceu com a narrativa da última Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, em que não faria diferença ser queijo do mediterrâneo ou presunto do Egito ou ovos da Galileia ou pão sírio ou vinho da Macedônia o alimento que Cristo dividira com os apóstolos naquela celebração, porque o que interessava ser contado era apenas a divisão do pão e do vinho, que poderiam ser de qualquer qualidade; era a instituição da eucaristia o sentido maior, e não se havia mel e frutas da estação para a sobremesa. Enquanto o menino dizia esses prodígios para o monge, atravessando a floresta, Irmão Crispim viu, à sua esquerda, uma terrível imagem: debruçado sobre uma escrivaninha, um

30 No Vita Sancti Bertalionis, no verso do fólio quarenta e sete, pode-se ler uma glosa anônima que situa a morte

de São Bertalião durante a grande peste de 1310, citando, inclusive, o lugar de seus últimos momentos: a Fonte das Lágrimas, nos arredores da cidade de Coimbra. Dixit Iohannes coenobita.

170 esqueleto muito assustador, vestindo um hábito beneditino, escrevia com uma pena muito longa e retorcida, vermelha, e era como se estivesse em chamas, como a pena da ave mitológica que se conhece como ave fênix, um livro mui grande e de muitas folhas. Ao perceber que fora visto, o monge cadavérico fechou o enorme livro e na capa Irmão Crispim pôde ler: Livro de Ceiça. Muito amedrontado, o copista seguia puxado por Tadeu, mas sua curiosidade era ainda maior que todo o pavor que seu próprio sonho o estava fazendo passar, e ele tornou a inquirir aquele que viria a ser o menestrel da corte de D. Dinis: se os pais do pequeno Henrique morreram, o que aconteceu com ele? Ficou com as aias. Mas foi dito anteriormente que também elas foram mortas pela peste. E foram, verdadeiramente, mas não morreram neste ano de 1310. Ficaram doentes e muito debilitadas, mas aguentaram tempo suficiente para que D. Henrique se tornasse um mancebo e fosse morar com os tios, em Cadima, ao Norte. Lá foi criado com os hábitos da nobreza e aprendeu a se comportar como um nobre, pois viria a ser cavaleiro consagrado pelo rei. Ao dar essa resposta a Irmão Crispim, Tadeu parou e fez silêncio, pedindo-o também ao monge. Os dois permaneceram mudos por alguns instantes até que se começou a ouvir um barulho a poucos metros adiante deles. Era como se um grande grupo de pessoas andasse pela floresta, provocando um alto farfalhar pisando nas folhas secas e quebrando gravetos durante sua passagem. Fazia-se também um enorme rumor mas do qual nada se podia compreender, porque eram mais gemidos do que palavras. E uma névoa espessa aumentava na direção de Irmão Crispim e Tadeu à medida que a multidão avançava em sua direção. Não demorou muito e começaram a surgir na frente do monge beneditino e da criança uma chusma de espíritos que pareciam presos uns aos outros e se arrastavam com dificuldade, porque muitos deles tinham correntes em seus tornozelos, e outros ainda carregavam tochas mas sua chama era azulada, assemelhada ao fogo-fátuo, e todos eles pareciam em grande tormento e havia jovens, velhos e crianças, homens e mulheres, e até alguns animais no grupo. Irmão Crispim fez o sinal da cruz e bradou: Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, valei-me em nome de Cristo Nosso Senhor! É o bando Hellequin!!! E quis escapar com todas as suas forças mas viu-se imobilizado por não soube que coisa e isto muito o atemorizou, e por grande mistério havia- lhe também uma corrente cuja outra ponta perdia-se por entre os pés de todas aquelas almas

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