2.3.3. Os caminhos do boi e a pecuária de invernada
De acordo com Grilo (2009), aos caminhos que ligavam o vale do São Francisco
aos sertões do Rio das Mortes, viabilizados desde a abertura da ―picada de Goiás‖, em 1736,
somaram-se outros que podem ser sumariados assim (cf. mapa ilustrativo na sequência): 1. a
salineira ―de cima‖, também denominada ―picada do desemboque‖: cruzava a Canastra, pelo
alto dos chapadões, saía em São Roque (onde havia uma bifurcação para Bambuí), depois de
Piumhi, onde encontrava a ―picada de Goiás‖, seguia por Campo Belo, daí para Perdões,
bifurcando-se então para Lavras ou para Três Corações do Rio Verde; 2. a salineira ―de
baixo‖: começava no chapadão da Zagaia, descia a ―serra das sete voltas‖, alcançava o
―arraial da Forquilha‖ (Delfinópolis), seguia pela Babilônia (Olhos d‘água), Ponte Alta e
Glória; daí rumava para Piumhi por duas picadas: uma beira-rio (com trânsito difícil e às
9 As linguiças consistiam na carne de porco temperada e metida em tripas. Os chouriços eram feitos do sangue
vezes apenas sazonal) e outra, rumando para a serra, alcançava o ―chapadão do Bugre‖, descia
pelo ―rolador‖ até São José do Barreiro e daí ao Piumhi, seguindo então a rota anterior; 3. a
rota dos invernistas, posterior: conectada à anterior pelo ―porto da Joana‖ (depois pela Ponte
Surubim), seguia de Passos, margeando o Rio Grande, até a barra do Sapucaí, passava pelo
arraial de Santo Hilário (antiga Capetinga) e encontrava a Picada do Goiás, como as
anteriores; mais tarde, passou a seguir por Ventania, Carmo do Rio Claro, margem esquerda
do Sapucaí, Três Pontas e, finalmente, Três Corações. Todas se dirigiam para o centro
comercial do Rio das Mortes.
Legenda
•
‖picada de Goiás‖•
salineira ou boiadeira ―de cima‖, também denominada ―picada do desemboque‖, antiga rota dos muares e do sal, praticada por paulistas e mineiros; o trecho dos chapadões corresponde à antiga ―picada do desemboque‖.•
salineira ou boiadeira ―de baixo‖; utilizada por criadores de gado e de porcos, das margens do rio Grande; foi também utilizada depois pelos invernistas.•
Rota dos invernistasMAPA 08 – Os caminhos Fonte: GRILO, 2009, p. 172
Essas mudanças, no seu conjunto, foram induzidas pela lógica da acumulação,
respaldada pelo crescimento da demanda: carnes, couros, solas e queijos de origem bovina e
mantas de toucinho eram cada vez mais procurados. Esse crescimento não era resultado apenas
das variações demográficas do mercado consumidor do rio das Mortes, mas, sobretudo, do fato de
que essa comarca, com a transferência da capital administrativa para o Rio de Janeiro e com a
presença posterior dos escalões de ponta da corte portuguesa, se tornara o entreposto preferencial
para abastecer a Corte com os produtos do sertão e abastecer o sertão com os produtos da Corte,
os ―importados‖. Nessa circunstância, a comarca encabeçada por São João del-Rei se transforma
em um grande empório no centro dessa dupla malha mercantil.
A precoce especialização agrícola da região irá transformá-la no celeiro estratégico fornecedor de produtos ao mercado litorâneo. Com a transferência da Corte para o Brasil o eixo de escoamento da produção regional se desloca do abastecimento interno para a praça do Rio de Janeiro. A posição geográfica privilegiada, sobretudo no triângulo formado pelas vilas de São João, Barbacena e Campanha – principais entrepostos comerciais, fazia com que a região fosse corredor pelo qual escoavam todas as mercadorias em direção ao sul, vindas das regiões à oeste e ao norte, e todas as mercadorias em direção ao sul, vindas das regiões à oeste e ao norte e entravam os produtos importados que se dirigiam às regiões centrais. Desse modo, as vilas se transformavam em centros de redistribuição dos produtos importados trazidos do Rio de Janeiro, amplificando suas atividades comerciais. (Grilo, 2009, p.39)
Em outra direção, fenômeno semelhante acontecia na região paulista, também
abastecedora da Corte, mas por outras vias, situação que às vezes costumava ser mascarada
pela expansão da cafeicultura, já que, de certa forma, os caminhos percorridos eram mais ou
menos coincidentes – a velha ―estrada‖ ao longo do eixo São Paulo, Jundiaí, Campinas, Mogi
Mirim, Casa Branca e Rio Pardo atingindo o nordeste paulista. Com a cafeicultura, as
pastagens, antes disponíveis nos campos do Jundiaí e do Mogi, foram ―empurradas‖ cada vez
mais para o ―capim mimoso‖ dos confins da província. Nessa rota, os tropeiros paulistas
levavam os rebanhos até esse centro, de onde eram enviados para Santos e Rio de Janeiro em
carretas e tropas de mula, e retornavam trazendo cargas de sal, pólvora, arame, ferramentas e
outros artigos importados. É o que registra, acertadamente, Pedro Tosi (2002, p. 50):
Se se supõe, como é bastante plausível, que os fluxos de gado e sal estivessem entrelaçados, não se pode afirmar que houvesse uma única praça a abastecer Franca com sal, mas com certeza muitos lugares eram abastecidos unicamente com o sal de Franca. [...] O sal chegava em Franca e região via Campinas, bem como pelo sudoeste de Minas Gerais; os responsáveis pelo seu comércio estocavam-no e depois o revendiam no fluxo contrário ao do gado que, por sua vez, descia de Goiás e do Triângulo Mineiro, ficando invernado na pastaria para sair de Franca quer na direção de Minas, quer na direção de São Paulo.
Na segunda metade do século XIX, a convergência dessas condições materiais
acabou por configurar, historicamente, duas regiões que vivenciariam em comum, pelo menos
nos seus traços gerais, a experiência de um tipo original de comércio e pecuária bovina,
passando a se caracterizar, respectivamente, como o ―nordeste paulista‖ e o ―sudoeste de
Minas‖. No lado paulista, a hegemonia seria exercida por Franca, e no sudoeste mineiro, por
Passos. Franca obteve a cidadania em 1866 e Passos, em 1858. Além de localidades
contíguas, com características semelhantes, estavam unidas pelo mesmo cordão umbilical do
rio Grande, pelas mesmas pulsações do mercado e, a partir daí, pelo mesmo perfil de
produção das condições materiais de existência: a invernada.
Não demorou muito tempo para que as duas cidades citadas acima não
suportassem o número de pedidos de compra de gado. Elas não conseguiam atender com
rapidez e eficiência todos os pedidos de carne. Em meados do século XIX, mesmo
desconhecendo-se os seus detalhes iniciais, a alternativa representada pela existência dos
grandes rebanhos bovinos dos ―sertões dos goiases‖ e do ―mato grosso‖, também chamados
de ―pantaneiros‖, tornou-se a grande opção para o abastecimento do mercado consumidor.
Esses rebanhos, ali existentes desde o século XVII, eram formados pelo gado que se
reproduziu nessas regiões em decorrência da expansão da Casa da Torre, de Garcia d‘Ávila,
pela margem esquerda do São Francisco.
Com o tempo, muitas fazendas ali implantadas tinham se transformado em grandes
criatórios (e comércios) de gado sertanejo. É bem provável que os primeiros compradores
tenham sido os negociantes paulistas. Tudo indica que foi pelo domínio da rota das monções
que tiveram acesso aos rebanhos dos confins do rio Coxim, no Mato Grosso (HOLANDA,
1945; GODOY, 2003). Uma vez conhecida a existência dos rebanhos pantaneiros, a
comercialização era evidente. O grande problema era resolver a questão do traslado dessas
boiadas: primeiro, estabelecer a rota mais curta, mais prática e mais segura; o gado se
transportaria a si mesmo, e a organização dos seus condutores não era problema maior;
portanto, nada impedia que as boiadas fossem entregues no entreposto da comarca do Rio das
Mortesou nos abatedouros da Corte. O problema grave era que, ao término de viagem tão longa,
bois e reses chegariam ao destino extremamente magros, mercadoria nada atraente para o abate.
Quanto à rota, foi possível reconstituí-la a partir do roteiro publicado por
Washington Noronha (1969). A maioria dos pousos e algumas localidades não figuram nos
mapas modernos. Para permitir uma visualização básica, elaborou-se, a partir de uma cópia
fotografada, o mapa ilustrativo apresentado logo à frente.
Partindo-se de Coxim, na fazenda de Peró, depois de pernoites em vários pousos,
ao Bananal (falha para descanso); seguia-se depois pelo cerrado: Jauru, Boa Vista, Mosquito,
Baú, Olho d‘água, Marruás do Formoso, Ronda Viva, Retiro da Viúva, dobrava a Serra do
Café, já em Goiás, (falha para descanso e diversões); retomada a marcha, ia-se ao Rio Doce, à
cidade de Rio Verde, daí ao Augusto, Córrego Fundo do Belinho, Balsamo, Cabeleira, até à
ponte do Rio dos Bois (pedágio de $300 por cabeça) e pelos pousos da Miséria e Cascavel, até
Santa Rita do Parnaíba. Aí se cruzava a ponte, entrando em Minas. E seguiam por Rancharia,
Passa Três, Briosa, Douradinho, Tangará, até à região de Araxá; depois, Teófilo, Buriti, Bela
Flor, Capão dos Porcos, Camurça, Carrapichos. Depois, as boiadas paulistas seguiam à direita
para Franca, percurso descrito por Pedro Tosi (2002), e as mineiras seguiam pelo chapadão da
Zagaia, do Bugre, desciam a serra das Sete Voltas, até o pouso do Pé da Serra, daí a Ciganos,
Cabrestos e Forquilha (Delfinópolis). Cruzavam então o rio Grande, primeiro pelo porto,
depois pela ponte Surubim, e chegavam a Passos, através da estrada do morro do Café. Segue
o mapa referente a esse roteiro:
MAPA 09 – Rota do Gado Fonte: GRILO, 2009, p. 183.
Pelo que foi exposto, percebemos que a questão agropecuária foi fundamental
para a formação econômica e cultural desse município sul-mineiro. O gado e as atividades
relacionadas a ele fazem parte da vida das pessoas desse lugar há muito tempo. Portanto, é de
se esperar que haja reflexo desse contexto na história, nos costumes e hábitos dos moradores,
principalmente daqueles da zona rural de Passos/MG.
Após enfocar aspectos históricos da região Sul/Sudoeste de Minas, principalmente
de Passos, indispensáveis para fundamentar um estudo do léxico, passemos ao capítulo dos
procedimentos metodológicos.
FOTO 08 – Gado na invernada (Fazenda Santo Antônio das Areias/MG)