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2 UN BARRIO EN LAS ORILLAS: O OLHAR DE EVARISTO CARRIEGO

2.2.6 El chisme: um esporte bairrial

Em texto crítico antes referido, uma das pesquisadoras da obra de Carriego compara o bairro suburbano a uma fortaleza que, como estratégia de proteção, cultiva determinados comportamentos, entre os quais a impossibilidade de seus moradores manterem uma vida privada ou de guardar segredos.176 Sendo características desse bairro o seu aspecto familiar, o conhecido, o compartilhado, segredos e desconhecimento de fatos sobre a vida alheia poderiam ameaçar a unidade do bairro. Trata-se, sem dúvida, de uma explicação coerente para a presença do chisme, do comentário da vida alheia, em diversos poemas de Carriego.

Muitos críticos já apontaram a oralidade presente nos poemas carrieguianos de temática bairrial como uma de suas marcas mais originais. Seus textos seriam produto do cruzamento de várias vozes

175

Cf. CARVALHO, 1987.

176

bairriais177, o que se comprova a cada instante no decorrer da leitura de suas obras. Mais do que a sintaxe sem surpresas e o vocabulário simples, torna-se evidente a influência da épica popular, desde as coplas de Ascasubi até Hernández, além do já citado Almafuerte. As quadras de “El alma del suburbio”, “El casamiento” e “El velorio” soam como “cantadas” para os leitores, assim como faziam os gauchos de outros tempos.178

Permeando grande parte dos poemas estão as vozes dos habitantes do bairro, reproduzidas por Carriego. Em “El alma del suburbio”, o poema, aparecem “Las comadres del barrio *que+, juntas, comentan y hacen filosofía sobre el destino...”. Não raro essa “filosofía” é desencadeada por um fato ocorrido no bairro, como pode ser o caso narrado em uma das estrofes de “El casamiento”:

En la acera de enfrente varias chismosas 10 Que se hallan al tanto de lo que pasa,

Aseguran que para ver ciertas cosas Mucho mejor sería quedarse en casa.

(CARRIEGO, 1999, p. 134). As “habladurías” que circulam “En el barrio” – poema já comentado – provocam a ira do cantor que tange seu violão e, ao mesmo tempo, remói um desejo de vingança por uma traição sofrida. E por meio do mesmo veículo que lhe provoca os instintos – a fofoca, os comentários – o cantor deseja que o seu revide seja propagado a toda gente do bairro:

¡Pues tiene unas ganas su altivez airada 30 de concluir con todas las habladurías!...

¡Tan capaz se siente de hacer una hombrada de la que hable el barrio tres o cuatro días!..

(CARRIEGO, 1999, p. 91). O “chisme”, portanto, pode ser uma prática benéfica por vezes, como vem provar a performance de “El guapo”. Ciente do poder da

177

Cf. MONTELEONE, 2006.

178

própria imagem e das boas histórias, ele as usa a seu favor, alimentando o imaginário do bairro179:

La esquina o el patio, de alegres reuniones, le oye contar hechos, que nadie le niega: 15 ¡con una guitarra de altivas canciones

él es Juan Moreira, y él es Santos Vega!

(CARRIEGO, 1999, p. 88). E esses comentários ganham ainda mais espaço nos poemas publicados postumamente. Na seção dedicada à costurerita, todo drama vivido pela personagem e por sua família é motivado pelo que diz “la vecindad (...) aunque a nada llevan las conversaciones, en el barrio corren mil suposiciones”.

“La muchacha que siempre anda triste” – poema da seção “La canción del barrio”– pode ser outro exemplo. Aparentemente uma historia que poderia ser enquadrada entre as muitas situações próprias do gênero feminino – ser abandonada pelo noivo prestes a casar-se –, o texto esconde uma rede de versões sobre um mesmo fato:

LA MUCHACHA QUE SIEMPRE ANDA TRISTE

Así anda la pobre, desde la fecha

en que, tan bruscamente, como es sabido, aquel mozo que fuera su prometido la abandonó con toda la ropa hecha. 5 Si bien muchos lo achacan a una locura

del novio, que oponía sobrados peros... todavía se ignoran los verdaderos motivos admisibles de la ruptura.

Sin embargo, en los chismes, casi obligados, 10 de los pocos momentos desocupados,

una de las que cosen en el taller

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dice —y esto lo afirma la propia abuela— que desde que ella estuvo con la viruela él, ni una vez siquiera, la ha vuelto a ver.

(CARRIEGO, 1999, p. 125-6). Restam ao leitor poucos elementos concretos para constituir um enredo, entre eles a tristeza da moça. As motivações desse rompimento é que são o pomo da discórdia entre os vizinhos: enquanto “muchos lo achacan a una locura.... todavia se ignoram los verdaderos motivos admisibles de la ruptura.” Então, entra em cena outro círculo de relações da personagem: uma colega de trabalho, provavelmente uma costureira que, em “los pocos momentos desocupados” dedica-se à produção de “los chismes, casi obligados”. Chama a atenção, na última estrofe, a referência à “abuela”, fonte mais credenciada para a causa de tal abandono por parte do noivo. Enfim, entre vozes individuais e coletivas somam-se quatro, que se entrelaçam para dar conta de uma pequena tragédia sentimental.

O lugar ocupado pelos comentários sobre a vida íntima dos vizinhos ganha relevo em “Otro chisme”180. Se o poema anterior revelava o modo de construção desses comentários, aqui fica evidente a recepção das histórias que circulam no bairro. Em princípio indignado com a atitude alheia, como se conversasse com alguém que não aparece no texto, aos poucos o poeta vai resgatando pedaços do acontecimento, como que não resistindo à tentação do exercício antes condenado:

se han de contagiar todos entonces. ¡Vaya con la mania! Porque es el caso

que no transcurre un solo día sin que haya 5 sus novedades…

Nadie ha sabido

sacarle las palabras… ¡Es ocurrencia: servir de burla a cuanto mal entendido hay en Palermo!...

(CARRIEGO, 1999. p. 128).

180

As sucessivas reticências, além de marcarem uma provável interferência do interlocutor, assinalam um suave desvio de rumo na conversa, como se o poeta respondesse a uma ou outra pergunta.

E qual seria, afinal, o motivo do comentário? Algo extraordinário? Não. Um caso comum, de certa maneira semelhante ao da “Muchacha que siempre anda triste”. Agora, no entanto, é o homem que sofre, não por abandono, mas pela morte da moça com a qual não chegara a ter um compromisso. E a reação do sofredor é tipicamente masculina, segundo os códigos bairriais carrieguianos: “Medio enterado del assunto, existe quien asegura que noche a noche vuelve tomado.”

No decorrer da manifestação, o poeta não hesita em contribuir com seus julgamentos, fazendo, assim, seu aporte para que o exercício de falar sobre a vida íntima alheia prossiga no bairro: “La causa, de cualquier modo, no ha de ser para tanto: pasarse horas enteras... y, sobre todo, ¡ siempre con esa cara de Viernes Santo!...”

Menos sofisticações discursivas apresenta “Lo que dicen los vecinos” que, numa só voz, conta sobre a mudança repentina de comportamento de uma moça, enredo que bem poderia ser o detalhamento das conversas de bairro que precederam a saída de casa da costurerita: tristeza, indiferença, magreza, retraimento são os sintomas detectados pela comunidade, sem que se saiba a causa. E chama a atenção a insistência dos vizinhos, expressa na sequência de verbos: “ruegan, la apuran, (...) insisten” em interpelar a personagem sobre um fato que, ao que tudo indica, só diz respeito a ela mesma.

LO QUE DICEN LOS VECINOS ¡Bendito sea! Tan luego ahora mostrarse adusta. ¡Quien lo diría: ella que siempre conversadora llenaba el patio con su alegría! 5 Es increíble lo que les cuesta

hacer que escuche si le hablan de esto; ruegan, la apuran, y no contesta ni una palabra: ¡les pone un gesto! Y en cuanto insiste se les resiente. 10 Muchos la encuentran desconocida,

y —¡da una pena!— continuamente la van notando más retraída como si todo la incomodara.

(CARRIEGO, 1999, p. 128-9). Conforme as elaborações teóricas de Prignano (2008) a respeito da barriologia como forma de resistência a uma standartização da cultura, esses pequenos fatos sobre a vida das comunidades que, em Carriego, tornam-se, além de motivo poético, uma forma de discurso, figurariam como ferramentas de resistência: “Necesitamos esas dos cosas: un concepto universal del hombre y un conocimiento concreto de lo que hacen (...) [y] sienten mis vecinos, mis antepasados. A esto apuntan los estudios barriológicos.”181 Nesse sentido, toda poesia bairrial de Carriego, transpassada por essas vozes alheias, seria um contributo à sobrevivência cultural do bairro portenho daquele início de século.

Há um título de poema que esconde mais um exemplo desses comentários. “El suicidio de esta mañana”, em princípio, põe o leitor de sobreaviso para uma cena lúgubre, conforme já apontado páginas atrás. No entanto, à medida que a leitura se desenvolve, o riso não será uma reação totalmente descabida. Juntamente com “El casamiento”, a composição forma uma vertente mais alegre da poesia carrieguiana. O fato anunciado pelo título é o que menos importância recebe em mais esse soneto, já que a repercussão do acontecido ganha maior projeção. Os personagens postos em evidência pelo poeta pouca relação possuem com o acontecimento. Ali estão somente para exemplificar as diferentes formas de reverberação, no bairro, de um fato como este:

EL SUICIDIO DE ESTA MAÑANA

En medio del gentío ya no hay quien pueda pasar, pues andan sueltos los pisotones, que han promovido algunas serias cuestiones entre los ocupantes de la vereda.

5 En la puerta, un travieso chico remeda

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la jerga de un vecino que a manotones logró llegar al grupo de los mirones que, una vez en el patio, formaran rueda. Una buena comadre, casi afligida, 10 cuenta a una costurera muy vivaracha

que, a estar a lo que dicen, era el suicida un borracho perdido - según oyó - , el marido de aquella pobre muchacha que a fines de este otoño lo abandonó.

(CARRIEGO, 1999, p. 133). De início, cria-se um tumulto na calçada, pelo qual ninguém consegue passar. A curiosidade é grande a ponto de surgirem alguns desentendimentos entre os vizinhos e um deles vence o obstáculo distribuindo tapas, tendo sua linguagem imitada por um menino travesso. Até aqui nenhum comentário em particular, mas o ingrediente básico para os futuros “chismes” está presente: a curiosidade.

Ao final do poema, o olhar do poeta se detém sobre “Una buena comadre, casi afligida” que, então, passa adiante a versão por ela ouvida: o suicida era um homem que, depois de ser abandonado pela esposa, tornou-se um alcoólatra sem possibilidade de recuperação. A explicação dada a “una costurera muy vivaracha” está entremeada por termos como “a estar a lo que dicen” e “segun oyó”, prova de que aquela poderia ser apenas uma versão dos fatos. Como é de costume em Carriego, o fato objeto de comentários nesse poema pode ser uma sequência de enredos de outros textos dos Poemas póstumos, tais como “El silencioso que va a la trastienda” ou “El hombre que tiene un secreto”, ambos com protagonistas masculinos que escondem algum desgosto ou segredo.

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