• Nenhum resultado encontrado

2 UN BARRIO EN LAS ORILLAS: O OLHAR DE EVARISTO CARRIEGO

2.2.7 Os ausentes

A construção de um bairro simbólico que inclua também aqueles que por ali já caminharam entra em consonância com algumas perdas pessoais de Carriego: o avô, em 1908, o pai no ano seguinte e, em

1910, o amigo Florencio Sánchez, o Canillita, a quem dedicou um dos envíos, publicados entre os seus últimos poemas. Quando se trata de perdas, de ausência, um dos poemas mais contundentes de Carriego pertence à última seção dos Poemas póstumos. “La silla que ahora nadie ocupa” descreve o vazio que toma conta de uma família que perde a mãe: o pai não encontra gosto na comida, o filho menor pergunta pela mãe, despertando a lembrança dos demais à mesa. Contraditoriamente, a marca dessa falta é a presença de uma cadeira vazia colocada, num ato falho, por alguém da família. O olhar em direção a esse objeto é revelador do significado da perda para cada um, já que o poeta, como um observador externo da cena, não chega a perscrutar as consciências ou ainda colocar-se como um dos integrantes da família, compartilhando com eles o momento de dor:

LA SILLA QUE AHORA NADIE OCUPA Con la vista clavada sobre la copa

se halla abstraído el padre desde hace rato: pocos momentos hace rechazó el plato del cual apenas quiso probar la sopa. 5 De tiempo en tiempo, casi furtivamente,

llega en silencio alguna que otra mirada hasta la vieja silla desocupada

que alguien, de olvidadizo, colocó en frente. Y, mientras se ensombrecen todas las caras, 10 cesa de pronto el ruido de las cucharas

porque insistentemente, como empujado por esa idea fija que no se va,

el menor de los chicos ha preguntado cuándo será el regreso de la mamá.

(CARRIEGO, 1999, p. 161). Frente a muitas ausências que se verá lamentadas no bairro de Carriego, a de uma mãe de família, com filhos pequenos, agrega à dor um sentimento de desamparo cujas consequências podem ser vistas em outros poemas sobre o bairro. “Residuo de fábrica”, texto já

comentado, pode ser um exemplo, assim como “El nene está enfermo”, no qual a “abuela”, apesar de doente, cuida da criança.

Poemas sobre quaisquer eventos ordinários da vida humana correm o risco de cair na obviedade. Esse não parece ser o caso de Carriego quando agrega ao seu espaço simbólico a representação de casamentos ou de aniversários. No primeiro caso, em “El casamiento”, a cerimônia em si ou a alegria dos noivos dá lugar a uma coleção de pequenas cenas pitorescas suburbanas tão rica quanto “El alma del suburbio”. Mas no que se refere ao tema da ausência, “El aniversario” traz uma reflexão contundente. Do mesmo modo como procedeu Álvaro de Campos ao lamentar o desaparecimento dos seus familiares, o que impedia a comemoração do seu aniversário182, Carriego registra a data natalícia com um sinal negativo: silêncio, tristeza e melancolia marcam a ausência de um familiar já falecido. O estado de espírito da família é ainda agravado pela “garúa *que+ cae en el patio”, o que favorece a introspecção dos personagens da cena. O leitor familiarizado com a biografia do poeta imediatamente associa a composição com a morte do pai de Carriego, ocorrida em 1909.

EL ANIVERSARIO

La casa amaneció triste, callada. Un aire melancólico se advierte en los rostros: la pena es resignada. No se oye reír ni se habla fuerte. 5 Los muchachos faltaron a la escuela,

y desde muy temprano, con incierto y sombrío fulgor, arde la vela

en la que fuera habitación del muerto. El recuerdo luctuoso les alcanza 10 a todos por igual.

(CARRIEGO, 1999, p. 168-9). Como muitos fatos da vida íntima desses suburbanos, não se trata de uma dor restrita ao âmbito familiar, mas compartilhada com a

182

“Aniversário”, poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa.

vizinhança. Se os tropeços amorosos das moças ou as bebedeiras masculinas se tornam de domínio público, com a celebração da memória de um desaparecido não será diferente:

Durante el día

unas cuantas visitas de confianza estuvieron a hacerles compañía; pero, entrada la noche, los amigos 15 al fin se despidieron, y la pena

contenida en presencia de testigos extraños, fue a la hora de la cena más intensa quizás. No había extraños y el silencio tornóse doloroso: 20 sintiéronse molestos, casi huraños,

en ese comedor tan bullicioso otras veces. Se levantó la mesa

(CARRIEGO, 1999, p. 169). Ainda que o sentimento de luto seja dividido com “as visitas de confianza”, as demonstrações de pesar só serão externadas entre os membros da família, durante o jantar. Do ponto de vista histórico, essa preservação da intimidade familiar é assim descrita:

Sin embargo, no debe confundirse el sentido de asociación resultante de comprar en el mismo almacén, saludar a los vecinos en la calle, o en misa, o jugar una partida de dados en el café, con una estrecha interrelación personal entre los vecinos. La casa con patio junto con la tendencia a aislar a la familia fue heredada por los barrios y se reflejaba en las medianeras que separaban los largos lotes. Las familias trataban de resolver sus problemas entre sus miembros, sobrevivir a las privaciones, o escalar posiciones económicas y sociales. Rara vez era bienvenido el mundo exterior en el santuario del hogar. Los vecinos podían observar las idas y venidas del otro lado de la calle, o conversar en la puerta sobre el tiempo, un nacimiento, o el estado e salud de los miembros de la familia. Un fallecimiento podía reunir a los vecinos en la sala durante el

velatorio, pero de lo contrario sólo los parientes entraban a la casa.

(SCOBIE, 1977, p. 264). À medida que a narração se desenvolve, o leitor percebe que essa é uma família em processo de dissolução, situação tão temida pelo poeta, em outros textos, quando apela para que as irmãs riam ou que uma delas não se case: o aniversariante do dia, o pai, está morto; um dos filhos “por quien *la madre+ vive en continua aflicción desde que se halla tan lejos, el ingrato que no escribe hace mucho, ni aun de cuando en cuando...”. Por fim, “el hermanito enfermo tose con esa ronca tos que le sofoca atrozmente”. Apesar das ausências, a família segue numerosa. Além da “abuelita” e da “madre”, há referência à “tía soltera”, ao “hijo mayor”, a “uno de los chicos”, além da “huerfanita”. Sobre esse aspecto em particular dizem os historiadores:

Entre la gente de pueblo la familia extensa, si bien no tan amplia, también proporcionaba seguridad frente a la enfermedad o el desempleo. El trabajo de muchos brazos – niños de 9 y 10 años que ganaban monedas como lustradores de zapatos, o vendedores ambulantes, hermanas e hijas que lavaban o cosían, hermanos y primos que trabajaban como jornaleros – con frecuencia agregaban zanahorias y papas al puchero o posibilitaban o ahorro con vistas a la compra de un lote en las afueras. Sin embargo las obligaciones de una familia extensa también podían llegar a consumir todos los recursos, siendo así como sus ahorros desaparecían por indigencia, enfermedad o desempleo de algunos de sus miembros.

(SCOBIE, 1977, p. 290). Ainda entre os poemas publicados postumamente, no primeiro deles já aparece “el rumor de los pasos familiares que se apagaron hace tiempo... Aquellos que ya no escucharemos a la hora habitual del regreso”, lembrança trazida à mente do poeta em “El camino de nuestra casa”. Os que são levados pela doença “poco a poco, en silencio” ou aqueles que, como a costurerita, “se van del barrio, sin

despedirse” deixam suas marcas na memória dos que ficam. E destes, o olhar volta-se para o sujeito lírico, para o dia em que ele será também uma lembrança nesse bairro, constatação que, de certa forma, responde a uma das questões feitas em “Los viejos se van”:

15 Y cuando no estén, ¿ durante cuánto tiempo aún se oirá

su voz querida en la casa desierta? ¿Cómo serán

en el recuerdo las caras 20 que ya no veremos más?

¡Qué ya no veremos!... ¿Nunca se te ha ocurrido pensar en el silencio que dejan aquellos que se nos van? 25 Y en nosotros mismos, piensas

alguna vez, ¿es verdad? En nosotros, que también nos tendremos que callar. Cuando nos llegue la hora 30 como a los viejos, ¿habrá

para nosotros la dulce confortación familiar que tanto alivia? ¿Qué labio piadoso nos besará? 35 ¿Nos sentiremos muy solos?

¿Y nos iremos en paz?

(CARRIEGO, 1999, p. 166). A poesia de Carriego prova que essa lembrança ainda persiste, apesar de passado o tempo.

Acima da velhice e da morte, o poema, todo ele construído sobre uma sucessão de questionamentos, reflete sobre o tempo, cuja passagem, apesar dos esforços comuns, é inevitável para todos, inclusive para o poeta. A ideia de ciclo fica clara no final, quando a reflexão sobre a falta dos mais velhos – feita em tom de conversa com um interlocutor – transfere-se para o sujeito lírico, que se pergunta se haverá quem os conforte nessa hora, se a morte os surpreenderá em

paz. Em um dos estudos críticos sobre a obra de Carriego pode-se ler sobre o significado dessa preocupação do poeta:

La muerte como ruptura sin continuidad aparente, la muerte no como problema metafísico, sino como pregunta que parte del sentimiento y de la nostalgia, la muerte de los que queremos, que es la nuestra, es una recurrencia en la poesía de Carriego. El miedo a la perdida de los seres queridos es, en última instancia, el miedo a la interrupción en la duración de un mundo.

(SARLO, s.d. p 777). Em se tratando de ausência, a morte é a situação limite, irremediável, mas não faltam exemplos de outros vazios que “ocupam” os versos do poeta. O caso mais flagrante é a série de poemas sobre a costurerita. Durante o período em que esteve ausente, inúmeros foram os momentos de tristeza, de dúvida ou de esperança frente à falta daquela integrante da família. Mas no que se refere a ausências, a moça “sin novio”, isto é, sem perspectivas de casar-se, é a imagem mais recorrente desse bairro, principalmente nos poemas publicados em 1913. “La muchacha que siempre anda triste” por ter sido abandonada pelo noivo em razão – segundo dizem – da varíola, faz companhia à personagem de “Como aquella otra...” que viveu situação semelhante. Nesse soneto, o poeta conversa com a mulher, agora envelhecida, colocando-a, lado a lado com outra personagem do bairro “que se cansara de aguardar en vano”, numa referência à personagem do poema “La que se quedó para vestir santos”. Trata-se dos clássicos casos em que tudo se encaminhava para um desfecho feliz, mas, repentinamente, o rapaz desiste do enlace.

Cabe recordar que a situação inversa é ilustrada com menor frequência ao longo dos poemas de Carriego. Em “El suicidio de esta mañana”, a versão que corre sobre o fato mencionado no título é a de que teria sido motivado pelo abandono da esposa. Em “Otro chisme”, um taciturno rapaz é objeto de comentários dos vizinhos em razão da morte de uma moça com quem sequer estava comprometido. Um dado que poderia contribuir para a dificuldade na formação de casais vem das estatísticas da época, segundo as quais havia cerca de quinze por

cento a mais de homens no país, em razão, principalmente, da vinda de imigrantes desse sexo183. Essa diferença pode potencializar-se quando se pensa na resistência cultivada, pelo elemento local, em relação aos estrangeiros, além das questões culturais em geral, como língua, costumes, etc. Apesar da leve desvantagem do número de mulheres, muitas eram as abandonadas, como demonstram vários textos de Poemas póstumos. Em “Como aquella otra...”, a “vecina” a quem se dirige o poeta foi “la bondadosa amante, la primera, de um estudiante pobre” para depois envolver-se, “en tus buenos tiempos de modista”, com “el muchacho periodista”, que em “una fria noche ya lejana te dijo, como siempre: ‘Hasta mañana’.... pero que no volvió.”

Se nos primeiros textos de “El alma del suburbio” o poeta tomava partido, de forma contundente, das mulheres vítimas de violência ou abandonadas, aqui o julgamento é mais velado, estando representado por um ou outro qualificativo para a personagem feminina e nenhuma palavra de reprovação em relação aos dois homens que abandonaram a “vecina”. Outra moça abandonada aparece em “Mambrú se fue a la guerra”, título de uma canção infantil de origem francesa que, ao ser cantada pelas crianças na calçada, remete a personagem à recordação de mais um ausente:

MAMBRÚ SE FUE A LA GUERRA

“Mambrú se fue a la guerra...” ¡Vamos, linda [vecina! ¿Con su ronga catonga los chicos de la acera te harán llorar, ahora? No seas sensiblera y piensa que esta noche de verano es divina 5 y hay luna, mucha luna. ¡Todo por esa racha

de recuerdos que llegan sin traer al causante! ¡Todo por el veleta que fue novio o amante allá, en tus más lejanas locuras de muchacha! Que nunca en tantos años se te oyera una queja

183

10 y te aflijas ahora, cuando eres casi vieja,

por quien, al fin y al cabo, ¿dónde está, si es que [está?

Seamos muchachitos... Empecemos el canto sin que te ponga fea, como hace poco, el llanto: “¡Mambrú se fue a la guerra, Mambrú no

[volverá!” (CARRIEGO, 1999, p. 127). O poeta convoca a vizinha saudosa a deixar de lado suas mágoas, suas lembranças, até mesmo porque já se teriam passado muitos anos: “tus más lejanas locuras de muchacha”. A referência a essa canção, em especial, não é gratuita, já que a letra, ao final da composição, serve de alerta à esperançosa vizinha: ”Mambrú se fue a la guerra, ¡Mambrú no volverá!”

Ausentes por morte, por medo, por descaminhos da vida, podem ser acompanhados daqueles que nunca se deram a conhecer, nunca ocuparam seu lugar de fato, como em “La que se quedó para vestir santos”. À semelhança de “La viejecita”, essa personagem nunca teve uma experiência amorosa. E pela reação do poeta esse fato parece ser motivo de vergonha para uma mulher:

LA QUE SE QUEDÓ PARA VESTIR SANTOS Ya tienes arrugas. ¡Qué vergüenza!... Bueno: serás abuelita sin ser madrecita.

Ayer, recordando tu pesar sereno, me dió mucha pena tu cara marchita. 5 ... ¿Ni siquiera una novela empezada? Quizás el idilio que duró un verano, hasta que una noche por buena y confiada, se cansó la novia de aguardar en vano. (…)

(CARRIEGO, 1999, p. 162). Apesar de o envelhecimento suscitar o lamento do sujeito poético, o sentimento da personagem é de “pesar sereno”. Na sequência dessa constatação, uma série de perguntas faz suposições

sobre algum romance iniciado ou algum suposto rompimento. Merece referência, ainda, o título escolhido por Carriego. É evidente que o uso da expressão com origem remota faz referência a um tempo que não o da Buenos Aires modernizada e cosmopolita.

Um dos motivos poéticos mais utilizados por Carriego, a mulher solteira, abandonada pelo noivo ou que nunca teve relacionamento algum, não poderia deixar de avançar para as letras de tango, como se observa na composição de Enrique Cadícamo, datada de 1930: “Nunca tuvo novio”, da qual se transcreve a primeira estrofe.

Pobre solterona te has quedado sin ilusión, sin fe...

Tu corazón de angustias se ha enfermado, puesta de sol es hoy tu vida trunca. Sigues como entonces, releyendo el novelón sentimental,

en el que una niña aguarda en vano consumida por un mal

de amor…

(ROMANO, 1995, p. 192). A publicação de Evaristo Carriego, em 1930 – não há como negar – representou um marco na literatura argentina por, no mínimo, duas razões. A primeira delas poderia ser a explicitação de uma influência, levada a público por meio de um ensaio crítico, um livro-homenagem, fato pouco comum na literatura. A outra razão advém dessa obra ser escrita por Borges. “Evaristo Carriego” passou a ser muito mais do que o título de uma obra de um escritor argentino para ter existência própria, ainda que somente para os mais atentos, perscrutadores dos meandros em que, costumeiramente, Borges enreda seus leitores. Embora o poeta alcançasse um significativo número de leitores naquela Buenos Aires das primeiras décadas do século XX – o que se comprova pela tiragem dos Poemas póstumos, mencionada anteriormente, – o ensaio de Borges ampliou o círculo de leitores de Carriego numa proporção muito maior.

O Evaristo Carriego de Borges, além disso, marca um ciclo de sua poesia e registra a fusão por ele empreendida entre a vertente criolla

da poesia argentina e as manifestações de raízes europeístas, conforme a classificação explicitada por Gabriel (1921). Essa fusão é flagrante em inúmeros poemas publicados antes de 1930, mas não desaparece na prosa do autor até os textos dos anos 70, como é o caso do volume El informe de Brodie (1970).184 Esse arrabal que permeia a obra de Borges é o mesmo de Carriego, ainda que ambos lhe confiram um tratamento diferente. Enquanto o primeiro poeta representa-o como uma experiência pessoal, Borges transforma-o em parte da mitologia de um passado,185 como se pode observar nessas duas estrofes de “Fundación mítica de Buenos Aires”, primeiro poema de Cuaderno de San Martín:

Un almacén rosado como revés de naipe brilló y en la trastienda conversaron un truco; el almacén rosado floreció en un compadre, ya patrón de la esquina, ya resentido y duro. 25 El primer organito salvaba el horizonte

con su achacoso porte, su habanera y su gringo. El corralón seguro ya opinaba YRIGOYEN, algún piano mandaba tangos de Saborido.

(BORGES, 1974, p. 81). E esse mesmo olhar sobre o bairro, impregnado de vivências particulares, serve de matéria-prima para uma parte da ficção de Lima Barreto. Alguns milhares de quilômetros ao norte de Buenos Aires, nas bordas de outra metrópole, outros suburbanos ganharam voz por meio da pena de um de seus vizinhos.

184

“El informe de Brodie”. In. BORGES, 1974.

185

3 NA CONTRAMÃO DA PARIS TROPICAL: O SUBÚRBIO EM LIMA

Documentos relacionados