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2 CIÊNCIA, TECNOLOGIA E ANARQUISMO

2.6 CIÊNCIA E NATUREZA NO ANARQUISMO ESPANHOL

Os anarquistas espanhóis - cuja incorporação do vocabulário e dos conceitos do evolucionismo biológico a partir das próprias concepções de natureza e leitura do evolucionismo foi abordada na tese de doutoramento de Alvaro Girón Sierra (1996) – também entendiam o evolucionismo coincidindo com a visão de seus contemporâneos, ou seja, “entendiam a evolução como um processo inerentemente progressivo que culminava necessariamente no homo sapiens” (SIERRA, 1996, p. 9). Sierra também afirma que foram “extremamente dependentes do universo de leituras das classes médias” (SIERRA, 1996, p. 9), recebendo críticas por setores do anarquismo (como Luigi Fabbri em seu texto Influências burguesas sobre el anarquismo). No entanto, o uso que davam ao vocabulário e categorias evolucionistas, “transbordava claramente a suposta neutralidade do consumo cultural constituindo um desafio à ordem cultural estabelecida” (SIERRA, 1996, p. 9). Seus usos destas categorias e vocabulários para seus próprios fins estavam

articulados com uma imagem antropomórfica da natureza (como por exemplo sua relação “maternal” com as espécies, ou a crença de que a natureza tem um propósito), visão esta criticada por Kropotkin em Modern Science and Anarchism.

Sierra aponta que poucas palavras tiveram mais significado que natureza para estes anarquistas. Como já apontado neste trabalho, natureza designava a estes um “contramundo utópico“ (SIERRA, 1996, p. 12), caracterizado pela justiça, harmonia e liberdade. Opunham o “natural” ao “artifical” presente na ordem social vigente, que para eles, “aparecia assim como a casca inútil que recobria – patologicamente – uma ordem subjacente mais profunda” (SIERRA, 1996, p.12). Portanto, a missão última da revolução social seria a volta a reger-se por estas leis naturais. Além disso, a natureza também assumia a forma substitutiva de certo poder transcendental: “A Natureza é uma mãe fecunda que provê a seus filhos de todo o necessário. É mais, em muitos casos se apresenta como se tivesse um propósito, e como se o Homem sempre fosse o instrumento privilegiado do cumprimento de seu desígnio” (SIERRA, 1996, p. 12).

O modelo de evolução destes anarquistas é de matriz materialista: da mesma forma que Kropotkin, que fundamenta parte de suas suposições com base na indestrutibilidade da energia – o universo, assim, é visto de forma ilimitada e eterna e em constante transformação da matéria (SIERRA, 1996, p.15). Estas visões têm consequências no pensar de suas práticas políticas: “se o Universo inteiro se transforma, porque não poderiam fazê-lo as instituições humanas?” (SIERRA, 1996, p.13).

Em face disso, os anarquistas espanhóis refletiram sobre as concepções de evolução e revolução burguesas e contrapuseram as suas: se para os burgueses a revolução significa uma mudança forçada, “patológica”, no devir da sociedade burguesa, para os anarquistas “a revolução é uma fase necessária e inevitável do processo evolutivo. Sua função é derrubar os obstáculos que se opõem ao curso inerentemente progressivo da evolução” (SIERRA, 1996, p.17), ou seja, destruir os obstáculos da ordem vigente que não permitem à humanidade viver sob as leis naturais de harmonia, justiça e liberdade.

Ricardo Mella, libertário espanhol, critica o ideal de civilização burguês:

A vida civilizada consiste principalmente em suplantar a Natureza com todo gênero de artifícios. À espontaneidade dos movimentos, dos impulsos e das ações substitui a regulamentação e a disciplina educativa, que vem a ser uma verdadeira domesticação sistemática. Assim, civilizar é o mesmo que afogar em germe toda liberdade, toda inclinação; todo impulso natural (MELLA, 2013, p.2).

Essas visões também estão presentes nos meios de discussão do anarquismo individualista. Os anarquistas individualistas espanhóis – que apostavam no indivíduo

como estratégia de libertação e cujas origens abordarei no próximo capítulo – estavam inseridos nas mais variadas das associações de sociedades de ideias – como a Liga Universal de la Regeneración Humana (e outras ligas neomalthusianas) ou a Associação Internacional Biocósmica - mesmo sem base anarquista, e criavam espaços de acúmulos individualistas, bem como vias de debate e difusão de suas ideias através da imprensa.

Nas revistas que produziram no início do século XX – retomadas por Xavier Diez em sua obra El anarquismo individualista en España (1923-1938) – sugeriam o regeneracionismo físico do naturismo (nas suas diversas possibilidades) como alternativa ao que consideravam problemas causados pela sociedade vigente ao domesticar a humanidade.

O movimento naturista surge, provavelmente, na segunda metade do século XIX, como resposta aos “desvios” propiciados pelo progresso, “uma espécia de dissidência contra a evolução das sociedades industriais em que a pessoa foi demasiada e frequentemente menosprezada e reduzida à categoria de objeto” (DIEZ, 2007, p.305). Ainda que nem todos os naturistas se reivindicassem individualistas, e o mesmo também não ocorresse ao contrário, para o naturismo “o indivíduo constituía o centro e motor, e sua principal finalidade consistia em sua regeneração integral” (DIEZ, 2007, p.305). Em virtude disso, criticavam a medicina oficial, preocupada com os efeitos e não com as causas das doenças, bem como a crescente utilização de fármaco e sua mercantilização (DIEZ, 2007, p.305). Também teciam críticas à alimentação artificial provida pela industrialização. Seu caráter muitas vezes convergente com práticas espiritualistas e a defesa do regresso a uma vida simples, baseada numa espécie de comunismo primitivo (DIEZ, 2007, p.306), leva, eventualmente, a críticas deterministas acerca da ciência e tecnologia.

Em grande parte, articulados com o movimento naturista, os anarquistas individualistas, onde insiro a pensadora aqui analisada, Maria Lacerda de Moura, identificaram na ciência moderna a intenção de codificar os corpos dos indivíduos, a fim de torná-los úteis, produtivos e submissos, características que fazem destes corpos “componentes essenciais das sociedades modernas” (ARAÚJO, 2001, p. 114). A dominação do Estado moderno atua de forma sutil, mas permanente. Seus procedimentos disciplinares produzem verdades sobre os sujeitos, funcionam como técnicas que fabricam indivíduos úteis (ARAÚJO, 2001, p. 115) e “objetivam o indivíduo ao mesmo tempo que o sujeitam” (ARAÚJO, 2001, p. 115).

O contato com estas discussões, aliados ao projeto da sociedade libertária, levou os anarquistas individualistas espanhóis, e Maria Lacerda de Moura que com eles dialogava,

a temas como o neomalthusianismo, alternativa para a questão da expansão da população humana; a buscarem um novo equilíbrio entre campo e cidade, a fim de evitar a dependência e o intercambio desigual, consequência de um urbanismo insustentável ecológica e socialmente (BRACONS, 2006; DIEZ, 2007; NAVARRO, 1997); ao vegetarianismo - além da constituição de est(ética)s do viver a fim de modificar as relações sociais e o desenvolvimento humano.

A preocupação no trabalho que se segue, é dar voz às contribuições que a anarquista individualista Maria Lacerda de Moura pode dar às discussões contemporâneas. O anarquismo individualista radicaliza o pensamento liberal, que tem suas origens nesse período. Compreendo, com Foucault, que a noção de indivíduo é constituída socialmente. É na modernidade, com a ascensão do capitalismo, que surge a concepção de indivíduo moderno e sua correlata concepção política liberal burguesa.

No liberalismo burguês, a concepção de liberdade estaria associada às liberdades individuais e jurídicas, criticadas por Luce Fabbri em seu texto El camino: Hacia un socialismo sin Estado: en cada paso la realidad de la meta (1952):

O liberalismo só teve aplicações práticas parciais e um desenvolvimento truncado como doutrina. Nas correntes e nos sistemas que levam seu nome, foi, no melhor dos casos, incompleto, mas com mais frequência simplesmente hipócrita e falso, quando reclamava para o indivíduo a liberdade jurídica e não a liberdade real. […] uma liberdade real não é possível enquanto exista predomínio econômico de uns homens sobre outros. A riqueza privada, que não é nunca, nem sequer desde um ponto de vista individual, instrumento de libertação, é sempre, em troca, instrumento de opressão. Neste terreno o liberalismo, se é que deve chegar a suas consequências lógicas, à sua completa expressão, conflui com o socialismo. […]

Na realidade o capitalismo jamais foi individualista e não se chega ao socialismo através da estatização (FABBRI, 1952, p. 15).

Os anarquistas individualistas atentam para estas questões e trazem para sua estratégia de libertação individual a consciência da totalidade, no entendimento de que a liberdade de cada um se amplia ao passo que a liberdade de todos se expande. Abordarei, na sequência, as origens do pensamento anarco-individualista – a partir de Max Stirner – compreendendo-os nas discussões em voga no seu período quanto ao desencantamento, de certo modo romântico, com a sociedade industrial. Nesse sentido, Paolo Rossi fala de uma "revolta neo-romântica” contra a ciência, no início do século XX, que sustenta discursos contemporâneos, onde também insiro o pensamento de Maria Lacerda de Moura.