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2 CIÊNCIA, TECNOLOGIA E ANARQUISMO

2.2 SOBRE A ORIGEM DAS IDEIAS LIBERTÁRIAS

Todos os nossos conceitos sobre o desenvolvimento da história se encontram em crise. A vida desliza por entre as malhas das construções teóricas, escapa às classificações e nega a cada passo as generalizações e as sínteses. Sentir esta multiplicidade significa sentir o valor que para a vida tem a liberdade (que torna possível a variedade infinita) (FABBRI, 1952, p.14).

Max Nettlau, um dos historiadores mais reconhecidos do anarquismo, afirma que "uma história da ideia anarquista é inseparável da história de todas as evoluções progressivas e das aspirações à liberdade" (NETTLAU, 2008, p. 27), entretanto, para pensar o anarquismo enquanto tal, devemos identificar o momento histórico favorável ao surgimento da consciência de uma existência livre pregada pelos anarquistas, "cuja

30 “El progreso se encuentra en otra dirección: en producir para satisfacer las necesidades internas” (KROPOTKIN, 1898, p. 22).

31 “Bajo las presentes condiciones de división de la sociedad en capitalistas y trabajadores, em propietarios y masas, viviendo de jornales inseguros; la expansión de la industria sobre nuevas regiones viene acompañada siempre con los mismos hechos de inhumana opresión, matanza de niños, pauperismo, y mayores dificultades para atender la subsistencia” (KROPOTKIN, 1898, p. 22).

garantia só intervém após a supressão completa dos fundamentos autoritários, e sob a condição de que, paralelamente, os sentimentos sociais de solidariedade, reciprocidade, abnegação, etc., tenham se desenvolvido o suficiente, adquirindo a mais ampla expansão" (NETTLAU, 2008, p. 27).

Embora seja comum retomar estas raízes do pensamento livre para indicar certa origem das ideias libertárias, como apresenta Nettlau (2008) e Woodcock (1983), me utilizo para a definição de anarquismo, aqueles que falaram em seu nome, buscaram definir este termo inseridos nos círculos do movimento anarquista - e aqui compreendo não apenas os grandes movimentos reconhecidos historicamente, mas também seus círculos culturais, ateneus, bibliotecas, imprensa, festas, entre outras práticas culturais- e indicaram caminhos para a construção de uma sociedade mais livre, convencidos do que a anarquia e as práticas anarquistas representavam para eles.

Felipe Correa (2013) identifica o surgimento do anarquismo enquanto movimento organizado num contexto histórico particular que culminou nas mudanças do século XIX (CORREA, 2013, p.14). É partindo da bibliografia deste período que inicio a tentativa de definir esta corrente de pensamento que influenciou, em suas formas diversas, variados movimentos sociais.

Embora estejamos trabalhando academicamente com o pensamento anarquista e trazendo-o para o ambiente das universidades, Kropotkin afirma o nascimento do anarquismo "entre o povo" - e ainda complementa que “só estará cheio de vida e de capacidade criadora se seguir sendo coisa do povo” (KROPOTKIN, 1977, p. 164). O anarquismo nasceu, então, para Kropotkin, "das exigências da vida prática" (KROPOTKIN, 1977, p.173).

Outro teórico e militante anarquista, Errico Malatesta (1853-1932), também identifica o surgimento do anarquismo nas resistências contra as injustiças sociais:

O anarquismo em suas origens, aspirações, em seus métodos de luta, não está necessariamente ligado a qualquer sistema filosófico.

O anarquismo nasceu da revolta moral contra as injustiças sociais. Quando apareceram homens que se sentiram sufocados pelo ambiente social em que eram obrigados a viver, que sentiram a dor dos demais como se ela fosse a sua própria, e quando estes homens se convenceram de que boa parte do sofrimento humano não é consequência inevitável das leis naturais ou sobrenaturais inexoráveis, mas, ao contrário, que deriva de realidades sociais dependentes da vontade humana e que podem ser eliminados pelo esforço humano, abria-se então o caminho que deveria conduzir ao anarquismo (MALATESTA, 2009). Luce Fabbri, anarquista ítalo-uruguaia, aponta a necessidade da tentativa de buscar uma definição aos anarquistas com vistas a responder àqueles que questionam "o que querem os anarquistas". Ela também afirma ser o anarquismo “uma atitude permanente e,

no fundo, elemental da alma humana” (FABBRI, 1952, p. 12), ideia reforçada por Max Nettlau. Ele aponta as raízes do pensamento libertário na Grécia clássica32. Também Mendes (2010) afirma, em sua revisão literária, parecer ser um consenso que "os estoicos, na Grécia Antiga, foram os primeiros a conceber uma sociedade em que todos homens eram dignos como iguais, rejeitando assim, qualquer ideia de “Estado”" (MENDES, 2010, p.23). Os estoicos, escola fundada por Zenão de Cítio (333-264 a.C.), excluíam "todo constrangimento externo e proclamava(m) o impulso moral, próprio ao indivíduo, como regra de ação única e suficiente para cada um e para a comunidade" (NETTLAU, 2008, p. 32). Maria Lacerda de Moura, a autora aqui pesquisada, reivindica sua posição próxima ao pensamento do filósofo francês Han Ryner, que em seu Manual Filosófico do Individualista, indica claramente a influência do individualismo estoico em seu pensamento.

Desta forma, considerar o anarquismo como uma “atitude permanente”, leva Fabbri a dividir - e conciliar - sua definição do anarquismo “por uma parte como uma constante do pensamento e da moral (e, como tal, existente nos mais longínquos períodos históricos) e por outra como movimento organizado que se desprende como um ramo do grande tronco movimento socialista e operário do século XIX” (FABBRI, 1952, p.12).

No entanto, Luce Fabbri não permite esgotar sua definição e a complementa trazendo o reconhecimento de que a palavra "anarquismo", como "humanismo", "romantismo" e tantas outras, “tem um significado amplo e de valor permanente, e uma ou mais localizações históricas que, por outra parte, não esgotam seu conteúdo” (FABBRI, 1952, p.12).

Nicolas Walter aponta o nascimento do anarquismo nas revoluções de 1789 a 1871, junto à ascensão dos movimentos sociais na Europa ocidental:

Quando das revoluções inglesa, americana e francesa, os revolucionários mais radicais opuseram-se ao Antigo Regime, mas igualmente ao novo. Eles reivindicaram, para aqueles que constituíam a classe mais pobre e mais numerosa, a emancipação de toda forma de opressão. Eles foram condenados e os rejeitaram tratando-os de anarquistas (WALTER, 2009, p. 4).

Walter afirma ainda que Proudhon é o primeiro a reivindicar o termo "anarquista" de modo positivo, como tantos vieram a fazer posteriormente. (WALTER, 2009, p. 4) Proudhon publicou, em 1840, seu livro O que é Propriedade?, em que, opondo-se a qualquer forma de autoridade, fundou o pensamento anárquico enquanto tal.

Felipe Correa (2013, p. 15), apoiando-se em Lucien van der Walt e Steven Hirsch,

32 Ao apresentar estas reflexões, não pretendo localizar o surgimento do anarquismo na Grécia antiga, de modo atemporal, mas sim, indicar possíveis bases deste pensamento.

destaca que com a Revolução Industrial foi possível que, durante o século XIX, o capitalismo se desenvolvesse e globalizasse. Neste mesmo período, os Estados Modernos se consolidavam levando à expansão imperial. Estes processos são paralelos ao crescimento da imigração de trabalhadores, desenvolvimento das tecnologias em geral, em especial transportes e comunicações. Correa ainda acrescenta: “A promoção do racionalismo e a circulação de valores modernos, que ganham relevância com a Revolução Francesa, também são aspectos a serem levados em conta, assim como a reorganização das classes sociais e seu protagonismo em conflitos nas cidades e nos campos” (CORREA, 2013, p. 15).

No século XIX também vimos a consolidação dos Estados modernos, constituídos de estruturas centralizadas, burocráticas e hierárquicas (CORREA, 2013, p. 15). Através do racionalismo, baseado nos ideais do Iluminismo, buscou-se romper com as explicações religiosas e metafísicas. O Estado moderno passou por uma "laicização", em que se pretendia substituir a moral religiosa por uma suposta moral científica. Pela violência e repressão, mas também pelo desenvolvimento de tecnologias que permitissem o governo dos indivíduos de forma menos explícita, mas mais profunda e permanente, os Estados modernos impõem a obediência generalizada para a classe trabalhadora, a fim de potencializar a força produtiva dos indivíduos.

A fim de se fortalecer, o Estado capitalista utilizara-se de diversas tecnologias do poder “que determinam a conduta dos indivíduos, os submetem a certo tipo de fins ou de dominação, e consistem em uma objetivização do sujeito” (FOUCAULT, 1995, p.48). Nesse sentido, a organização do trabalho fabril também deveria contribuir e, portanto, estar alinhada aos interesses e exigências da expansão do capital. É neste período, então, que se desenvolvem as várias técnicas de administração científica, dentre elas o taylorismo, que objetivam “a adaptação do trabalho às necessidades do capital”. (BRAVERMAN, 1987, p. 83). A partir dessa visão, “na fábrica, a mobilização de um amplo arsenal de conhecimentos e de técnicas coercitivas visa transformar sua estrutura psíquica e incutir hábitos regulares de trabalho, desde as origens da industrialização” (RAGO, 1985, p.18).

O controle do tempo através dos horários de entrada e saída dos operários das fábricas, mas também através do ritmo ditado pela maquinaria imposta nos locais de produção, os regulamentos internos que limitavam os contatos entre os trabalhadores, o desenvolvimento de um arquitetura própria voltada aos valores e interesses burgueses, a difusão dos “valores burgueses da honestidade, da laboriosidade, da vida regrada e dessexuada do gosto pela privacidade, eliminando as práticas populares consideradas

ameaçadoras para a estabilidade e a ordem social” (RAGO, 1985, p.26-27), a instituição de hábitos e costumes para a domesticação do operariado, alinhados ao imaginário da família criado pela sociedade burguesa, o discurso médico-científico da higiene e da eugenia, constituíam-se enquanto tecnologias do poder do Estado para a construção de indivíduos passivos politicamente, mas úteis para a produção do capital e manutenção dos mecanismos de poder.

Foi na resistência ao controle cotidiano por parte dos patrões e agentes do Estado, nas mobilizações nos campos e nas cidades, nas lutas de independência, nas lutas anti- imperialistas e pacifistas, no contato com os ideais libertários, aliados à esperança de uma sociedade sob o reino da liberdade, que surgiu o movimento anarquista.

Muito antes, então, das análises foucaultianas dos mecanismos de controle e poder, os libertários já questionavam as estruturas autoritárias e difundiam “uma outra concepção de poder, que recusa percebê-lo apenas no campo da política institucional” (RAGO, 1985, p. 14). Em resposta a isso, propunham “múltiplas formas de resistência política, que investem contra as relações de poder onde quer que se constituam: na fábrica, na escola, na família, no bairro, na rua”, desvendando, portanto, “os inúmeros e sofisticados mecanismos tecnológicos do exercício da dominação burguesa” (RAGO, 1985, p. 14).

Junto ao desenvolvimento tecnológico e à expansão capitalista e do domínio dos Estados modernos, fluxos migratórios foram recorrentes neste período. Trabalhadores exilados de seus países, seja por perseguições políticas e religiosas, ou por falta de condições de vida e trabalho, emigravam para as novas colônias em fase de industrialização. Estes trabalhadores muitas vezes tinham relações com os movimentos operários de seus países originários e traziam as ideias libertárias aos operários dos países que os recebiam, permitindo, junto à crescente imprensa operária, a circulação dos ideais de uma nova sociedade.

Dentre os discursos de dominação da classe privilegiada, em meados do século XIX, também denunciados pelos libertários, o discurso do determinismo biológico atuava no sentido de convencer as mulheres em relação às suas vocações para a procriação e guardiã do lar, num modelo ideal de família – o da família burguesa (RAGO, 1997, p.5). O papel materno que a mulher deveria cumprir era colocado pelo discurso médico-científico da época como “sentimento inato, puro e sagrado” colocando na maternidade e no cumprimento dos deveres da educação da criança, a realização das mulheres da “vocação natural” (RAGO, 1997, p.79).

bastante caros aos anarquistas. Afirmavam que ambos serviam para a manutenção da dupla moral sexual presente na sociedade, que levava à opressão das mulheres. Sendo assim, é recorrente encontrar nos escritos anarquistas a defesa de que, em uma sociedade emancipada, com plenas condições de igualdade a todos os indivíduos, casamento e prostituição deveriam deixar de existir, de forma que se prezassem relações baseadas no amor livre e na libertação sexual das mulheres.