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1. DESIGUALDADE SOCIAL, AS LUTAS PELA CIDADANIA E A

1.2 Cidadania

O conceito de cidadania tem abordagens diferentes, de diversos autores, que buscam analisar e constituir um desenho sobre esse elemento importante do Estado Democrático de Direito (VIEIRA, 2001). A conceituação mais própria seria a de que a cidadania se refere à pertença passiva e ativa de indivíduos em um Estado-Nação, com direitos e obrigações universais em um específico nível de igualdade (JANOSKI, 1998 apud VIEIRA, 2001).

A teoria de Marshall (1967), em sua análise da constituição da cidadania na Inglaterra, num período histórico que compreende o século XVIII ao século XX, sustenta que “a cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status” (MARSHALL, 1967, p. 76). A cidadania exige um elo de natureza relacionado a um sentimento direto de participação numa comunidade baseado numa lealdade a uma civilização que é patrimônio comum. Compreende a lealdade de homens e mulheres livres, imbuídos de direitos e protegidos por uma lei comum (MARSHALL, 1967).

Marshall divide a cidadania em três partes/elementos: civil, política, social. A cidadania civil diz respeito aos direitos necessários à liberdade individual, direito à propriedade, a cidadania política refere-se ao direito de participar das decisões e a cidadania social engloba o direito a um mínimo de bem-estar. Ele situa “cada um dos períodos formativos dos três elementos da cidadania num determinado século – os direitos civis no XVIII, os políticos no XIX e os sociais no XX” (MARSHALL, 1967, p. 70). O autor entabula reflexões em torno do impacto da cidadania na desigualdade social e faz referências às classes sociais dentro dessa perspectiva.

A classe social [...] é um sistema de desigualdade. E esta também, como a cidadania, pode estar baseada num conjunto de ideais, crenças e valores. É, portanto, compreensível que se espere que o impacto da cidadania sobre a classe social tomasse a forma de um conflito entre princípios opostos. Se estou certo ao afirmar que a cidadania tem sido uma instituição em desenvolvimento na Inglaterra pelo menos desde a segunda metade do século XVII, então é claro que seu crescimento coincide com o desenvolvimento do capitalismo, que é o sistema não de igualdade, mas de desigualdade. Eis algo que necessita de explicação. Como é possível que estes dois princípios opostos possam crescer e florescer, lado a lado, no mesmo solo? (MARSHALL, 1967, p. 76).

Para Marshall (1967) não há dúvida de que, no século XX, a cidadania e o sistema de classe capitalista estão em guerra. Buscando responder à questão que ele se coloca, analisa que “a cidadania, mesmo em suas formas iniciais, constituiu um princípio de igualdade, e que, durante aquele período, era uma instituição em desenvolvimento”

(MARSHALL, 1967, p. 79). Naquele período de tempo, os homens eram livres, em teoria, capazes de gozar de direitos, a cidadania se desenvolveu pelo enriquecimento do conjunto de direitos que eram capazes de gozar. Porém, explica, esses direitos não estavam em conflito com as desigualdades da sociedade capitalista; eram, ao contrário, necessários para a manutenção daquela determinada forma de desigualdade. A explicação, então, reside no fato de que o núcleo da cidadania, nesta fase, se compunha de direitos civis. “E os direitos civis eram indispensáveis a uma economia de mercado competitivo” (MARSHALL, 1967, p. 79).

Os direitos políticos da cidadania, ao contrário dos direitos civis, são repletos de ameaça potencial ao sistema capitalista. Já os direitos sociais, seriam o resultado extremo de estabelecer condições sociais nas quais todo homem estivesse contente com o padrão de vida que esperasse receber da cidadania (MARSHALL, 1967).

O autor também explana sobre os deveres de cidadania. Ele salienta que os deveres devem ser colocados ao lado dos direitos. Não necessariamente ocorre dessa forma, e de um modo perspicaz ele interpela um efeito que hoje observamos em nosso país. Marshall (1967) superou tempo e espaço para descrever o fenômeno que perpassa nossa sociedade na desresponsabilização com o que é público e coletivo.

Se se invoca a cidadania em defesa dos direitos, as obrigações correspondentes da cidadania não podem ser ignoradas. Estas não exigem que um indivíduo sacrifique sua liberdade individual ou que se submeta, sem motivo, a qualquer exigência feita pelo governo. Mas exigem que seus atos sejam inspirados por um senso real de responsabilidade para com o bem-estar da comunidade (MARSHALL, 1967, p. 104).

Os sujeitos lembram-se do que é individual, seus direitos, que satisfazem suas necessidades, porém, em contraponto, não reconhecem suas responsabilidades dentro do organismo social, não se entendem efetivamente parte de um organismo maior que funciona com o respaldo de cada uma de suas peças sociais, em não se tendo pertencimento, a cidadania não encontra modo de se desenvolver.

Minha terceira pergunta se referia ao equilíbrio em mudança entre os direitos e deveres. Os direitos se multiplicaram e são precisos. Cada indivíduo sabe bem aquilo que pode reivindicar. O dever cujo cumprimento é óbvio e necessariamente mais imediato para a realização do direito é o dever de pagar impostos e contribuições de seguro. Visto que estes são compulsórios; nenhum ato de vontade e nenhum sentimento forte de lealdade entram em jogo. A educação e o serviço militar são também compulsórios. Os outros deveres são vagos e estão incluídos na obrigação geral de levar a vida de um bom cidadão, prestando tanto serviço quanto possível para promover o bem-estar da comunidade. Mas a comunidade é tão ampla que a obrigação se torna remota e ideal. De importância fundamental é o dever de trabalhar, mas o efeito do trabalho de um indivíduo sobre o bem-estar da sociedade total é tão infinitamente pequeno que ele dificilmente acreditará que possa causar algum mal pelo não-cumprimento do referido dever (MARSHALL, 1967, p. 109).

José Murilo de Carvalho (2002) analisa a cidadania através do processo histórico brasileiro e alega que aqui as formações foram diferentes da Inglaterra, assim como foi no mundo, cada país teve a formação e aquisição ou não da cidadania de um modo diferente. Ele também assegura que, ao contrário do que alegam os críticos que acusam Marshall de etnocentrismo, Marshall não impôs o seu esquema interpretativo ao mundo, ele apenas analisou o processo histórico de seu país e, por sua teoria ter tomado forma e ser usada por muitos teóricos, alguns o acusam de ter colocado o caso inglês como universal, o que segundo Carvalho (1996) ele não fez.

Apesar de a análise estar circunscrita ao contexto da Europa, particularmente a Inglaterra, a relação estabelecida por Marshall entre a igualdade e a manutenção de um sistema de desigualdades são instrumentos fundamentais para a compreensão de fenômenos sociais ao longo da história, como por exemplo, a estruturação da cidadania em seu modelo clássico. O esquema interpretativo de Marshall levou a importantes avanços na discussão teórica e nos estudos históricos sobre a cidadania, destaca Carvalho (1996).

O processo histórico brasileiro, atravessado pelo saque do território com a espoliação da terra dos povos indígenas, a exploração de mão de obra escrava, os governos ditatoriais, foram fatores que cadenciaram os direitos de cidadania num

compasso para frente e para trás de acordo com os acontecimentos políticos. Desse modo, a formação da cidadania no Brasil que hoje temos notícia e história9, já afetada por um percurso inicial que negava qualquer tipo de direito e presenciou a tomada do direito à terra dos que aqui secularmente habitavam, seguiu um caminho em determinados períodos históricos “de baixo para cima”, onde o Estado impunha direitos compulsórios na população, como no episódio da Revolta da Vacina, causando na população uma reação que Carvalho (1996) nomeou de “cidadãos negativos”.

Através dos percalços históricos brasileiros, a cidadania segue em constante formação, em momentos de retrocesso, outros de conquistas. A própria Constituição de 1988 (BRASIL, 2008), conhecida como Constituição Cidadã, um marco de conquista na legitimação do fim da ditadura, não deu conta de garantir os três eixos de cidadania à população brasileira (CARVALHO, 2002) e é criticada por alguns autores por ter se estruturado em propiciar os direitos da população sem ter previsto também os deveres, para assim constituir uma nação (BUARQUE, 2017). A verdade é que temos, no Brasil, uma cidadania frágil, que oscila, e que no contexto atual brasileiro, vive outra ameaça.

Em vias de uma tentativa de significado, visto que não temos de modo algum aqui a arrogância de uma definição, talvez possamos esboçar, dentro do conteúdo sobre cidadania que perpassa os teóricos que buscaram ela apreender, que a cidadania está relacionada à democracia, é um processo, uma construção e que além dos direitos e deveres, diz respeito a um sentimento de lealdade, de identidade, de pertencimento e de memória viva de uma tradição cívica que é vivida e compartilhada por todos.

9 Acima fizemos referência à “formação da cidadania no Brasil que hoje temos notícia e história” porque

surge uma questão. Ficou uma reflexão que pergunta se na organização dos povos indígenas, os verdadeiros donos dessa terra, a cidadania que hoje tanto perseguimos, já não era uma premissa básica a todos, desde o momento que viam pela primeira vez a luz. Na falta de espaço e tempo aqui para essa análise, deixamos o desafio para próximos estudos e pesquisas.

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