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1. DESIGUALDADE SOCIAL, AS LUTAS PELA CIDADANIA E A

1.3 Terapia Ocupacional e Questão Social

Como já abordado, a questão social (CASTEL, 2015) é resultado da exploração do trabalho no sistema capitalista, as lutas em torno dela, especialmente pelos recursos necessários para lidar com a desigualdade advinda desse modo de produção, dependem de preceitos democráticos do Estado (LOPES, 1999). Temos no Brasil uma democracia representativa, onde os cidadãos elegem alguém para representá-los e a ele delegam todos os encargos, se eximindo da responsabilidade de participação política e social. Não exercem um controle social sobre esses encargos, não fiscalizam o andamento das políticas públicas, e reclamam de ações que afetam diretamente suas vidas sem saber quem foram os corresponsáveis por estas ações (NAVARRO, 2017). Nesse contexto, a cidadania, elemento essencial que faz a democracia seguir em funcionamento, não tem um espaço real, permanecendo em um imaginário coletivo, onde os direitos são reivindicados de forma precária e regressiva, e os deveres são negligenciados (SOUZA, 2017).

Conforme o Código de Ética e Deontologia da Terapia (COFFITO, 2013), especialmente em seu Art. 9°, constituem-se deveres fundamentais do terapeuta ocupacional:

VIII - contribuir para promover a universalização dos direitos sociais, o respeito e a promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, oportunizando no âmbito de sua atividade profissional, o acesso e o exercício dos mesmos;

IX - contribuir, com seu trabalho, para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, preenchendo e encaminhando formulários oficiais de notificação compulsória ou quaisquer dessas ocorrências às autoridades competentes ou outros quando constatadas (COFFITO, 2013).

A questão social, a democracia e a cidadania são elementos postos para o exercício da terapia ocupacional, que é uma profissão que se move, dentre outros, no âmbito da seguridade social. Conforme o artigo 194 da Constituição da República Federativa do Brasil, a seguridade social “compreende um conjunto integrado de ações

de iniciativa dos Poderes Públicos e da Sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (BRASIL, 2008, p. 112).

A profissão caminhou ao longo de uma evolução, através da luta dos próprios profissionais. Mas como isso se deu?

A profissão de terapia ocupacional recriada no Brasil nos anos 1950 era baseada no modelo norte-americano e atendia duas áreas básicas de atuação: a reabilitação física e a ergoterapia dos asilos e manicômios (BARROS; GHIRARDI; LOPES, 2002).

A partir da segunda metade da década de 1970 e do início da década de 1980, os movimentos populares contra a ditadura militar no Brasil se fortaleceram. Diversas lutas ecoam no país, além da luta pela redemocratização, o movimento da Reforma Sanitária que preza uma saúde humanizada (MERHY, 1987), a Luta Antimanicomial e a reforma psiquiátrica que buscam um cuidado em saúde mental em liberdade, condizente com a psiquiatria democrática. Nesse contexto de reivindicações sociais e políticas, os terapeutas ocupacionais também passam a olhar criticamente para o seu trabalho.

No Brasil, a dimensão da cidadania tornou-se elemento central nas reivindicações dos anos 70 e 80 do século XX. No âmbito internacional, os direitos humanos estavam em destaque. Anseios de mudança foram se transformando em diversos movimentos sociais pelo acesso a serviços públicos e pela redemocratização do país: pela anistia, sindical, estudantil, de mulheres, contra a carestia e por melhores condições de vida, por saúde, por educação. Surgiram neste período lutas sociais centradas na questão dos direitos e nos mecanismos de exclusão social (GOHN, 1997). Foi o que ocorreu com os movimentos de crítica às instituições asilares e carcerárias que exigiram mudanças profundas na ação e na compreensão da terapia ocupacional (BARROS; GHIRARDI; LOPES, 2002, p. 99).

Os profissionais atuantes passam a perceber a falta de condições para concretizar o principal objetivo da profissão: a autonomia do indivíduo em suas atividades, ocupações e mundo do trabalho (SOARES, 1991). Na saúde mental, os terapeutas ocupacionais começam a repensar a sua prática de trabalho, lançando um olhar que enfocava mais a dinâmica social das situações. Estes pensares do fim dos anos 1970 e início dos 1980, no

Brasil, estruturaram o questionamento acerca dos hospitais psiquiátricos e outras tantas instituições totais (BARROS; GHIRARDI; LOPES, 2002). Os profissionais percebiam que nem tudo estava relacionado com “patológico”, nem tudo era sintoma de doença. Havia também demandas que pertenciam a uma causa social e geravam uma consequência também do social.

Soares (1991) faz uma análise da função política, do papel da pessoa enquanto cidadã, da alienação do trabalhador e da atuação do terapeuta ocupacional. A autora apresenta um relato da crise na terapia ocupacional na década de 1980. Desde então, a cidadania vai se colocando como princípio orientador das ações para um coletivo de terapeutas ocupacionais atuantes nas problemáticas sociais. Primeiro pela participação em movimentos sociais e depois como parâmetro de um fazer profissional, transformando-se em eixo articulador de sua práxis (LOPES, 2016).

Registramos igualmente a trajetória das propostas e práticas quanto ao lidar com o ‘problema da loucura’, com a ‘doença mental’, no Brasil, desde as primeiras décadas deste século até os anos 80, palco de extraordinária ebulição política neste país, fruto das lutas por redemocratização e pela conquista de direitos de cidadania. Os movimentos de saúde, no bojo destes eventos, discutiam temas como a reforma sanitária; na área dos portadores de transtornos mentais, cuja absoluta falta de direitos individuais era mais um exemplo das muitas arbitrariedades que nas décadas anteriores haviam sido cometidas, realizou-se, em 1987, a I Conferência Nacional de Saúde Mental – um marco fundamental da luta pela reforma psiquiátrica no país (LOPES, 1999, p. 3).

O legado da ditadura militar foi um cenário de intensa desigualdade social. A Constituição de 1988 (BRASIL, 2008) não efetivou de forma plena a demanda dos direitos sociais (CARVALHO, 2002), mas estatuiu o direito universal à saúde, à educação e o direito à assistência social. Conforme Lopes (2016), seguridade social como um direito de todos à saúde, o que implica na atenção a grupos populacionais especiais, à assistência social, não como caridade ou filantropia, mas como direito de todos os

cidadãos da garantia de um mínimo social em termos de renda, bens e serviços e à previdência social digna.

O momento é de buscar efetivar esses direitos assegurados em nossa carta magna, como entendem Bezerra e Trindade:

Desde então, a profissão vem se inserindo em novos campos de atuação e ganhando maior visibilidade, principalmente a partir do processo de redemocratização do país e do envolvimento dos seus profissionais com as lutas sociais. Nessa reconfiguração profissional, o terapeuta ocupacional deixou de ser um profissional exclusivamente da reabilitação física e da saúde mental e garantiu sua inserção em outros programas e políticas da seguridade social, tendo em vista a ampliação dos direitos sociais no país no período pós-constituinte (BEZERRA; TRINDADE, 2013, p. 435).

Após a redemocratização do país em 1985, os movimentos sociais, em luta desde a década de 1970, continuam a demandar direitos e cidadania para a população. Nesse momento histórico, é nítida a desigualdade social da população brasileira, a falta de acesso a serviços de saúde e educação, a falta de acesso a direitos básicos que então são incluídos na redação da Constituição de 1988 (BRASIL, 2008).

A questão social torna-se parte dos embasamentos de atuação de uma certa terapia ocupacional no Brasil, perpassando uma crítica que alguns terapeutas ocupacionais passaram a ter em relação aos fundamentos de sua ação profissional (BARROS; GHIRARDI; LOPES, 2002). Esses profissionais começaram a perceber que a problemática que encontravam diante de si não tinha como ser reduzida à discussão sobre qual terapêutica ou qual programa individual seguir. Desse modo, emerge a indignação de um grupo de terapeutas ocupacionais frente ao asilamento dos usuários nos serviços psiquiátricos - onde a loucura e a miséria permaneciam misturadas; e a inquietação frente ao papel que se esperava desse profissional que era o de trabalhar para que o ambiente fosse tranquilo, com pacientes calmos, sem expressões exuberantes de comportamento usando a ocupação para tal fim (BARROS; GHIRARDI; LOPES, 2002).

as contradições acumuladas pela força do asilamento, pelo poder médico, pela visão redutora do adoecimento e pela gravidade das condições de vida nas enfermarias psiquiátricas fizeram soar mais forte a voz de um questionamento mais abrangente. Muitos terapeutas ocupacionais tornaram-se agentes de mudança e de transformações institucionais no Brasil desde o fim da década de 70 do último século (BARROS; GHIRARDI; LOPES, 2002, p. 96).

Esse cenário brasileiro, de desigualdades, afronta a prática dos terapeutas ocupacionais. Os dois eixos, trabalho e redes sociais de suporte, teorizados por Castel (2015) e suas zonas acerca da inserção social, encontram equivalentes na população brasileira: uma grande parte na zona de vulnerabilidade, e outra bem expressiva na zona de desfiliação, o que faz com que a questão social seja uma demanda no cotidiano de prática dos terapeutas ocupacionais, em todas as subáreas da terapia ocupacional. É um fenômeno que atravessa a população, por conseguinte, está em todos os âmbitos de atuação do terapeuta ocupacional (hospitalar, educacional, ambulatorial, saúde mental, reabilitação física, etc.). Conforme Malfitano (2016) o contexto social é

um elemento que deveria estar presente em toda ação no âmbito da terapia ocupacional. Independentemente do grupo populacional e, consequentemente, subárea que se esteja abordando, parte-se do princípio que o contexto social de vida dos sujeitos é elemento inerente ao trabalho do terapeuta ocupacional (MALFITANO, 2016, p. 117).

O contexto social é condição intrínseca no trabalho do terapeuta ocupacional, já o campo social é o contexto concreto onde a vida acontece, de acordo com as possibilidades e limites impostos pelos fatores econômicos e sociais (MALFITANO, 2016). Em um país atravessado pela desigualdade estrutural como o Brasil, a pobreza corresponde à realidade da maioria da população: é o cenário onde se desenha a questão social.

A visão sócio-histórica demarca a inserção social em uma estrutura econômica desigual, pautada por uma relação com o capital, na qual a ação estatal na dinâmica da sociedade ocorre prevalentemente via políticas públicas. Nesta perspectiva, parte-se do entendimento que a questão social contemporânea requer do Estado moderno respostas às problemáticas apresentadas pela realidade vivida. Reconhecer a

presença de demandas sociais e a necessidade de intervenção estatal sobre elas é condição prévia para se falar sobre políticas sociais, uma das faces das políticas públicas (MALFITANO, 2016, p. 119).

Segundo a autora, as políticas sociais buscam criar condições para que todos os cidadãos sejam incluídos nas relações de troca da sociedade capitalista e representam a incorporação de “necessidades humanas”, de acordo com os “interesses” do sistema (OFFE; LENHARDT, 1984 apud MALFITANO, 2016, p. 119). É um jogo de interesses, dentro da arena política, em que os movimentos sociais são os protagonistas na defesa dos interesses e na luta pelos direitos dos cidadãos, auxiliando a demarcar uma visão ampliada de democracia. Ainda que perpassadas por lutas e resistências, são as políticas sociais uma valiosa ferramenta contra as expressões da questão social.

Para Lopes et al. (2014), a questão social tem sua composição na forma como as pessoas se organizam para produzir em uma sociedade e em um contexto histórico dado. Essa organização tem sua expressão na esfera da reprodução social, ou seja, a questão social está determinada pelo traço próprio e peculiar da relação capital/trabalho: a exploração.

A exploração no modo de produção capitalista gera a pobreza que expressa a questão social. Não é o precário desenvolvimento sócio-econômico que leva à pauperização, mas o próprio desenvolvimento. Não é um problema de distribuição do mercado, mas do lugar que ocupam os sujeitos no processo produtivo (MONTAÑO, 2012).

O desafio para a terapia ocupacional é lidar com as expressões da questão social dentro das suas ações. Atualmente a precarização do trabalho representa a configuração da questão social na dinâmica de sua produção (CASTEL, 2015). Essa nova questão social, traz demandas no trabalho do terapeuta ocupacional em todas as subáreas que atuam. Participação social e trabalho são ocupações e premissas básicas em nosso fazer, bem como o são para avaliar a inscrição no espaço social conforme teorizado por Castel (2015).

Em uma sociedade marcada pelas desigualdades, existe para o terapeuta ocupacional a exigência de habilitar-se para trabalhar problemáticas que surgem dos paradoxos do capitalismo, tendo a cidadania como eixo articulador da ação (BARROS, 2004).

Pensar a questão social, nesse momento, agrega a reflexão sobre o atual cenário político e social brasileiro, onde se entremeia a ocorrência de retrocessos de direitos conquistados ao longo de décadas, retirada de garantias mínimas para o exercício profissional dos trabalhadores, reforma previdenciária, entre outros. Estamos vivendo mais um momento de esquartejamento da cidadania, algo que episodicamente perpassou nosso país ao embalo dos períodos históricos. Alcançamos um patamar de evolução para logo ali na frente regredirmos novamente. A cidadania brasileira é um vai e vem de uma luta constante contra a hegemonia do capital, sua oscilação é definida pelo Estado: quando dirigido por governos submetidos ao capital, os direitos, bem como seu acesso e sua efetivação, decaem consideravelmente.

O direito à vida, a morar dignamente, a ter o básico para viver, para sobreviver. A Constituição Brasileira (BRASIL, 2008) - negligenciada ultimamente pelo próprio judiciário e legislativo - preconiza todos esses direitos básicos à população brasileira.

Pensar a questão social e, mais que isso, propor práticas em terapia ocupacional que abordem essa questão dependem de condições singulares de intervenção, demandam procedimentos metodológicos e percursos de ação de outra ordem, condicionados pela capacidade de analisar e de interferir em fenômenos sociais, cuja natureza é irredutível ao fato individual isolado. [...] Pretende-se, assim, compor ações coletivas voltadas a criar condições de intensificação democrática e de integração social como resposta às mazelas expostas pela esgarçamento do tecido social que decorre também de processos de globalização econômica (GHIRARDI, 2016, p. 71).

Lopes (2016) complementa concluindo que se a especificidade da terapia ocupacional está na busca de possibilitar/fomentar aos sujeitos maior autonomia, participação e inserção social, atuar profissionalmente sem avançar do seu núcleo de saber próprio para um campo interdisciplinar, intersetorial e interprofissional infere em articular técnica e politicamente cidadania, universalização de direitos, políticas sociais;

trabalho; educação, saúde, justiça; moradia; arte; cultura; lazer. “Dito de outra forma: estando e agindo no campo social” (LOPES, 2016, p. 46).

O papel do terapeuta ocupacional deve estar ligado à plenitude da vida das pessoas, buscando que a vida aconteça e não aos interesses do capital. A interação com os sujeitos deve acontecer enquanto sujeitos e não enquanto mercadorias. Estar e agir no campo social. É intrínseco que o terapeuta ocupacional esteja atento à realidade do contexto dos seus clientes, dos usuários de seus serviços, dos destinatários de suas ações, da realidade brasileira e, por consequência, à questão social.

Dentro de um cenário social repleto de precariedades, este trabalho se propôs a estudar as produções na literatura acadêmica da terapia ocupacional no Brasil, que refletissem e problematizassem a questão social, tomada como a desigualdade estrutural nas sociedades capitalistas, parametrizada pela inserção social, ou não, daquele que precisa oferecer sua força de trabalho ao mercado, ou seja, por sua maior ou menor integração ao trabalho/emprego e ao maior ou menor suporte de suas redes sociais.

Pretendemos contribuir com dados que possam se somar às reflexões acerca da produção do terapeuta ocupacional voltada à questão social e agregar informações que permitam o aprofundamento das análises acerca da temática. Num país onde a desigualdade estrutural é presente, a pobreza e a carência de bens materiais são comuns, os terapeutas ocupacionais têm olhado para isso? Lidamos com contextos de pobreza e de dificuldades seja em que subárea for, nesse sentido, o que temos feito? O que os terapeutas ocupacionais têm publicado acerca da questão social? Em que lugar estamos dentro da análise da questão social? Como compreendemos os fenômenos e expressões da questão social? Como atuamos em meio a isso? Essas são indagações que nos colocamos.

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