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3. NOÇÃO DE CIDADANIA

3.3. Cidadania: aspectos jurídicos

3.3.2 Cidadania e direitos humanos

Retomando a teoria desenvolvida por Marshall, conforme vimos no item 3.2.3, lembremos que o conceito de cidadania daquele autor é calcado nos mesmos direitos que fazem parte da teoria dos direitos humanos.

A idéia da cidadania enquanto feixes de direitos civis, políticos e sociais que vão se somando, possui uma relação direta com a bibliografia específica da área de direitos humanos, onde se encontra um discurso de “etapas” na formulação de direitos humanos58 bastante conhecido e que é semelhante ao de Marshall.

Como já explicitamos, os direitos humanos são apresentados como uma lenta construção histórica, com o surgimento de “gerações” de direitos correspondentes ao momento histórico em que se fizeram necessários, sendo comum o apontamento de declarações e documentos representativos que sinalizam a presença real de tais direitos.

Conforme apontamos é recorrente na doutrina dos direitos humanos, o discurso marcando o aparecimento dos direitos em gerações ou dimensões de direitos. A primeira geração corresponderia aos direitos civis ( propriedade, liberdade de expressão, liberdade religiosa, etc) e políticos (direito ao voto).

Os direitos de segunda geração correspondem a demandas sociais face ao Estado correspondendo aos direitos sociais, econômicos e culturais como trabalho, seguridade social, educação e saúde.

Os direitos de terceira geração corresponderiam m aos direitos de solidariedade cuja titularidade ultrapassa o interesse individual ou de um grupo social delimitado, mas a atinge a todos, como é o caso do direito ao meio-ambiente sadio, direito à paz, etc.

Coube ao jurista Karel Vlasak em palestra proferida na Academia de Direito de Estrasburgo em 1979, a menção aos direitos de terceira geração fazendo uma correlação das gerações de direito com a bandeira francesa: os direitos civis e políticos

corresponderiam ao lema liberdade, os direitos sociais ao lema igualdade e os direitos coletivos ao lema fraternidade.

Essa classificação de direitos humanos (gerações ou dimensões sucessivas e complementares), portanto, guarda uma similaridade em relação ao modelo evolutivo do conteúdo da cidadania na sociedade inglesa, proposto por Marshall.

Entretanto, no modelo de Marshall há uma cisão entre os direitos civis e políticos, com o aparecimento primeiro dos direitos civis sucedidos pelos direitos políticos, enquanto é praxe na descrição do surgimento dos direitos humanos afirmar que os direitos civis e políticos formam um único conjunto de direitos sob o manto classificatório de “primeira geração de direitos”.

Ainda em Marshall, os direitos sociais formariam a etapa final da construção do conceito de cidadania, enquanto na teoria dos direitos humanos, esses mesmos direitos formariam a segunda geração, que ainda é sucedida e complementada por uma terceira, envolvendo direitos de titularidade coletiva, como o direito a um meio ambiente equilibrado, não mencionados por Marshall.

Mas o que nos importa destacar é que no modelo de Marshall assume-se que cidadania é o termo geral para nomear o conjunto dos direitos civis, políticos e sociais (“direitos de cidadania”) enquanto na teoria dos direitos humanos, o termo cidadania parece estar ligado mais especificamente aos direitos políticos. Se considerarmos a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a divisão homem/cidadão indicaria que os direitos humanos são destinados a todos os homens, independentemente de origem, cor, condição social, etc; mas os direitos de cidadão (direitos políticos) dependeriam do vínculo jurídico com um Estado.

Para alguns autores da área jurídica, a convivência entre a teoria da cidadania (conforme Marshall) e a teoria dos direitos humanos, é problemática de tal sorte que destacam que há nessa relação uma confusão conceitual que é preciso pelo menos ser mencionada, e que podemos expressar reproduzindo algumas perguntas de Michelângelo Bovero sobre a questão:

Teoria da cidadania e teoria dos direitos do homem devem ser consideradas simplesmente como duas formas lexicais distintas para tratar da mesma substância problemática? São dois dicionários para um mesmo conteúdo conceitual? O léxico da cidadania é simplesmente uma variante anglo-americana recente do léxico clássico-moderno dos direitos do homem? (2002, p. 118)

Como sabemos, cidadania evoca, de maneira fundamental, a vinculação do indivíduo a um Estado-nação. Já os direitos do homem, não estariam sujeitos a uma

vinculação da pessoa a um Estado de forma que não dependeriam da condição de cidadão para serem gozados. Assim, para Bovero, essas teorias possuem uma afinidade ilusória. Sua crítica assenta-se na constatação de que os direitos humanos não dependeriam da cidadania para serem atribuídos, pois são universais, pertencentes a todos os homens e que o uso do termo “cidadania” como gênero, ou um rótulo sob o qual se abrigam todas as esferas de direitos, daria uma conotação de dependência entre direitos e o Estado.

O termo “cidadania” aplicar-se-ia principalmente a uma das espécies de direitos, no caso, direitos políticos, e seria um equívoco conceitual elevar essa espécie à condição de gênero.

A questão levantada por Bovero tem uma singular importância nos países de capitalismo avançado da Europa por conta do fluxo migratório intenso das últimas décadas reacendendo o debate sobre as garantias que esses estrangeiros teriam e se o uso do conceito de cidadania não estaria servindo para excluí-los do gozo de direitos.

Luigi Ferrrajoli, analisando a concepção de “direitos de cidadania” de Marshall, explica que:

Semelhante tese, que está em contradição com todas as constituições modernas- não só a Declaração Universal de Direitos de 1948, senão também com a maior parte das constituições estatais que conferem quase todos estes direitos às “pessoas” e não só aos “cidadãos”- tem sido reavaliada nos últimos anos, precisamente quando nossos acomodados países e nossas ricas cidadanias começaram a ser ameaçadas pelo fenômeno das imigrações em massa. Em resumo, chegado o momento de tomar a sérios os direitos fundamentais, tem-se negado sua universalidade, condicionando todo o seu catálogo à cidadania independentemente do fato de que quase todos, excetuados os direitos políticos e alguns direitos sociais, são atribuídos pelo direito positivo- tanto estatal quanto internacional- não só a cidadãos como também a todas às pessoas. ( 2007, p.40- 41)

Por outro lado, muitos cientistas sociais que trabalham com o conceito de “direitos de cidadania” têm preocupações similares aos juristas e chegam a um resultado teórico e prático semelhante, por um caminho diferente. É que no lugar de, como fazem os juristas que citamos, reservar ao termo “cidadania” um sentido excludente e ao termo “pessoa” um sentido universal, tendem a defender um uso mais universal do próprio termo “cidadania”, conforme podemos inferir da seguinte passagem do sociólogo Liszt Vieira:

A cidadania clássica, baseada na nacionalidade, sempre excluiu os não-cidadãos dos direitos da cidadania, constituindo fator de desigualdade em relação a estrangeiros. Na democracia contemporânea, não é mais possível negar aos estrangeiros os direitos de plena cidadania, mantendo a discriminação de que tradicionalmente são vítimas. Assim como a cidadania foi historicamente

estendida aos não-proprietários, aos trabalhadores, às mulheres, aos jovens, não há razão para negar hoje sua extensão aos estrangeiros residentes no país (...) (2001,p.240)

3.4.“Novas” cidadanias

No universo jurídico, mas principalmente no campo das ciências sociais, há uma recorrência de discursos que afirmam o alargamento do significado de cidadania questionando a percepção usual de que cidadania tem relação apenas com direitos políticos em sentido estrito. Para dar um nome a esse fenômeno, é comum, na bibliografia, a referência ao advento de uma “nova” cidadania.

A “nova” cidadania expressa na literatura consultada não se traduz em um conceito teórico coincidente em todas as suas aparições, de tal sorte que há várias “novas cidadanias”, de acordo, normalmente, com o realce que se queira dar para uma determinada gama de “novos” direitos.

Assim, José Alfredo de Oliveira Baracho (1995), autor que citamos quando discorremos sobre a noção jurídica de cidadania, indica que a nova cidadania não abarca apenas a participação política, mas os mecanismos de acesso ao Poder Judiciário e às garantias constitucionais do processo.

Flavia Piovesan, não se utiliza propriamente do adjetivo “nova” mais aponta para uma “redefinição da cidadania no Brasil” com base na tutela internacional dos direitos humanos onde o conceito de cidadania é alargado “na medida em que passa incluir não apenas direitos previstos no plano nacional, mas também direitos internacionalmente enunciados”. (2003, p.72)

Nesses casos, podemos dizer que a “nova cidadania” se traduz sempre em uma forma de expressar o alargamento do sentido de cidadania em sua faceta de direitos. Mas há outras possibilidades de se enxergar a novidade na temática da cidadania. Como, por exemplo, a identificação “novos” atores no cenário político. Assim, Vera Silva Telles, ao escrever a introdução da publicação resultante do seminário de sugestivo título “novas faces da cidadania”, justifica que:

No horizonte destes debates estão as esperanças- e possibilidades- de uma cidadania ampliada que incorpore sujeitos políticos até muitos recentemente excluídos da arena pública. Em torno dos direitos das mulheres, crianças, negros,

populações indígenas e minorias discriminadas- são estes os personagens que compareceram como atores no seminário. ( 1996, p.1)

Para Fábio Konder Comparato, “a idéia-mestra da nova cidadania consiste em fazer com que o povo se torne parte principal do processo de seu desenvolvimento e promoção social: é a idéia de participação”. (1993, p.92) (o primeiro grifo é nosso; o segundo do autor)

É evidente que a nomenclatura “nova cidadania” pode ser equívoca. Sem considerar a prosaica observação de que aquilo que é classificado como “novo” está sujeito a se deparar com o “novíssimo”, abrindo espaço para outras formas de confusão no entendimento da noção, a expressão “nova cidadania” pode dar a entender que a novidade é um acréscimo de outras perspectivas ao sentido antigo sem excluí-lo, ou então, que esse novo modo de ver substitui a maneira antiga (ou deve substituí-la).

De maneira geral, podemos dizer que os novos sentidos de cidadania, ou a ampliação do seu significado, estão a serviço da: 1) atualização do sentido da noção em termos de conteúdo para abarcar novos direitos; 2) integração de atores sociais tradicionalmente excluídos do universo da cidadania, como as mulheres, negros, homossexuais, etc.

No primeiro caso, se considerarmos a tríade “cidadão-direitos-Estado” como uma espécie de constante a compor a noção de cidadania (pelo menos do ponto de vista da experiência lingüística, como vimos no item 3.1) o foco da expressão “nova” cidadania dirige-se a um alargamento da dimensão “direitos”.

No segundo, o redimensionamento se dá em relação ao próprio “cidadão”, ampliando a base numérica de incluídos na noção.

Mas de forma geral esses dois enfoques encontram-se inter-relacionados, se considerarmos que os movimentos de luta por igualdade e respeito no tocante a gênero e diferenças raciais, de proteção a crianças, idosos, deficientes, sem contar os movimentos ecológicos, entre outros, dão corpo e voz a diversas formas de pressionar e reivindicar direitos que até então não eram considerados pelo discurso dominante .

Assim é que Evelina Dagnino (1995) aponta para a existência de uma “nova cidadania” nas reivindicações dos diversos grupos tradicionalmente excluídos, negros, mulheres, homossexuais e outros, não só conquistando direitos previamente definidos, mas criando novos direitos, que surgem no bojo dessas mesmas lutas.

Na tríade que estamos evocando, “cidadão-direitos-Estado”, o pólo “cidadão” passa a ser qualificado com o nome do grupo do qual se faz parte; na verdade é por meio do grupo que se estabelece a relação dos cidadãos com o Estado.