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4. CIDADANIA E EDUCAÇÃO EM UM CONTEXTO DE DECLÍNIO DA POLÍTICA NO MUNDO

4.3. A perda do sentido público da educação

A educação é a resposta humana à natalidade , ou seja, ao fato de que os seres humanos quando nascem, são novos em um mundo repleto de significações que lhes são desconhecidas e precisam aprender sobre elas com aqueles que são mais velhos.

O significado público da educação enquanto acolhimento dos jovens em um mundo que lhes é preexistente, passa pelo aprendizado da herança cultural comum, sem o que a capacidade de renovação que está latente naqueles que são novos, é impossível.

De acordo com José Sérgio Fonseca de Carvalho :

O acolhimento dos novos no mundo pressupõe, pois, um duplo e paradoxal compromisso por parte do professor. Por um lado, cabe-lhe zelar pela durabilidade do mundo de heranças simbólicas no qual ele inicia e acolhe seus alunos, Por outro, cabe-lhe cuidar para que os novos possam se inteirar, integrar, fruir e , sobretudo, renovar essa herança pública que lhes pertence por direito mas cujo acesso só lhe é possível por meio da educação. (2008, p.266)

Com a interpenetração entre as esferas pública e privada, conforme passa a haver uma dificuldade de clareza nos critérios de definição do que seriam os aspectos públicos a serem privilegiados pela educação, de tal sorte que ganham relevo as preocupações privadas ligadas às necessidades da vida. Basta que mencionemos como exemplos, o grande destaque dado a uma formação educacional que vise à obtenção de êxito nos vestibulares mais concorridos e o preparo para o trabalho.

Como sabemos a qualificação para o trabalho é também uma das finalidades da educação conforme o art. 205 da Constituição de 1988. Entretanto, é notória a absoluta preponderância dada ao aspecto êxito profissional no processo educativo, em um viés competitivo que acompanha o aluno desde o ensino fundamental, ou até antes.

O problema do desemprego juvenil leva a propostas de ampliação de formatos educacionais mais diretamente voltados para o mercado, e menos vinculados à formação dos alunos em virtudes públicas, como o ensino médio técnico, educação à distância e os cursos superiores de curta duração ou de formação de tecnólogos, cujo sucesso nos últimos anos é louvado por setores da imprensa e pelos órgãos oficiais de Educação.

Na verdade, trata-se de uma ênfase geral no sucesso econômico do indivíduo, mais do que uma preocupação com o papel desse indivíduo como cidadão, embora tais interesses privados recebam, não raro, o nome de “cidadania”.

No Estado de São Paulo, podemos exemplificar a repercussão pública de aspectos estritamente privados, por meio de dois projetos de lei.

Trata-se do projeto de lei 604/2007 que determina a inclusão de aulas de “empreendedorismo” no conteúdo curricular das disciplinas de ciências humanas das escolas da rede estadual de ensino e do projeto de lei 834/ 2007 que incluí no currículo da rede pública estadual, a disciplina de “educação financeira”62.

O art. 2º, do projeto 604/2007 prevê que: “entende-se por Empreendedorismo o aprendizado pessoal que, impulsionado pela motivação, criatividade e iniciativa, capacita para a descoberta vocacional, a percepção de oportunidades e a construção de um projeto de vida.”

Na justificativa63 que acompanha o projeto lemos que:

A inclusão do Empreendedorismo nas escolas tem como objetivo inserir os alunos em uma cultura empreendedora, a partir do conceito de sustentabilidade e crescimento. A idéia é torná-los críticos e preparados para a descoberta de vocações, com criatividade e técnicas motivacionais que auxiliem no desenvolvimento de capacidades e habilidades individuais.

62Os projetos de lei podem ser acessados no sítio da Assembléia Legislativa de São Paulo em <http://www.al.sp.gov.br/portal/site/Internet>

63 Reproduzimos mais alguns trechos da justificativa desse projeto, pois são bastante ilustrativos do enfoque pouco integrado a virtudes públicas:

“(...) a capacitação profissional é um tema ainda distante da realidade da sala de aula. São raras as oportunidades para desenvolver a matéria no decorrer da jornada escolar. Como conseqüência, o aluno deixa os bancos escolares em meio a incertezas sobre o seu futuro profissional. E sem ao menos desenvolver todas suas habilidades e competências que lhe ajudarão na superação dos desafios na busca do primeiro emprego. (...)

O despreparo, aliado à desinformação, faz com que os estudantes alimentem dúvidas sobre o projeto futuro, que não se limita à escolha da profissão que pretendem exercer após a conclusão dos estudos. Muitos sonham vencer na vida, mas ignoram o caminho que precisam percorrer.

Diante desse quadro de incertezas, o Empreendedorismo torna-se uma ferramenta relevante para a formação do educando. Possibilita o elo entre a educação formal e o mundo do trabalho, desenvolvendo, nos alunos, a autonomia para a tomada de decisões, definição de planos e a criação de oportunidades.

(...)

Isoladamente, algumas escolas já despertaram para essa realidade. Conforme reportagem da revista Nova Escola, unidades municipais de São José dos Campos (SP) e de Belo Horizonte (MG) desenvolvem o Empreendedorismo no currículo escolar. Uma ação pioneira feita em parceria com a iniciativa privada, para capacitar professores em aulas sobre o tema.

Hoje, cada vez mais o jovem precisa assimilar os ensinamentos do Empreendedorismo para transpor as inúmeras barreiras impostas pela alta competitividade. A missão da escola não se limita à inserção do aluno no mercado de trabalho, mas capacitá-lo para encarar os desafios de forma equilibrada e sustentável.

Ainda segundo a justificativa do projeto, “empreendedor é, acima de tudo, um cidadão que usa da criatividade e da motivação para superar os desafios que a vida impõe.” (grifo nosso)

Note-se que, por esse prisma, o “empreendedor” é o “cidadão” dotado de certos atributos pessoais, mas a conjugação dessas duas facetas do indivíduo configura-se confusa e conflitante, porque, por um lado as virtudes esperadas do cidadão são de natureza pública, envolvem o convívio plural, tolerância, cooperação e de outro, o ideal de formação “empreendedora”, implica, em alguma medida a valorização da competição de tal sorte que, as palavras de Katarina Tomasevski nos parecem muito apropriadas:

É impossível para as crianças aprenderem a competir e a cooperar ao mesmo tempo. Se elas competem umas contra as outras por melhores resultados e maiores notas, é sinal de que em suas escolas e em seus países cooperação permanece uma noção abstrata, e crianças aprendem com base em exemplos concretos, e não por discursos.( 2006, p.78)

A justificativa para o inserção de “Educação Financeira” no currículo da rede estadual, segundo o projeto 834/2007, também seria de natureza privada: “orientar os alunos sobre a montagem de um planejamento das finanças pessoais de modo sustentável.”

Nas transformações da relação entre público e privado, a própria educação torna-se um bem de consumo, uma atividade mercantil que pode ser comparada ao produtivismo empresarial planejado e massificado sem nenhuma consideração sobre o compromisso da educação com a integridade daquilo que é único em cada ser humano, ou seja, a sua singularidade.

A mercantilização da educação já está tão naturalizada que quaisquer comentários críticos à visão empresarial da escola, como a transformação dos alunos em clientes, por exemplo, soam como obscurantistas e primitivos, objeto de ironia condescendente como é o caso de Claudio de Moura Castro, ao comentar que nas denúncias que criticam a educação como mercadoria, “as palavras são usadas como tacapes , na esperança de abater os infiéis”. (2008, p.20).

O autor, que é estudioso da relação entre Educação e Economia, não vê o menor problema em tratar a atividade escolar com os mesmos critérios de produtividade empresarial:

As empresas têm toda a liberdade de definir o seu “produto”. Rolls-Royces? Ladas? Cirurgias cardíacas? Rolex? Relógios de camelô? As escolas também:

ensino para poucos? Ou para muitos? Ensino de violino? Uma vez definido o produto, faz todo o sentido obter o máximo resultado com o mínio de gastos. Isso vale na “fabricação” de hóstias, seminaristas, doutores ou macarrão. Igualmente, é preciso controlar a qualidade e avaliar os resultados. Para isso, há inspetores de qualidade na fábrica e a Prova Brasil na educação.” ( 2008, p. 20)

Evidentemente que esse tipo de análise que nivela a fabricação de macarrão à formação de doutores, pode ser aplicado a aspectos bem restritos do processo educacional, ou seja, a certos conteúdos que possam ser avaliados por meio de exames unificados, como conhecimentos matemáticos e desempenho em leitura e interpretação de textos.

Entretanto, a aplicação de critérios empresariais como o controle de qualidade à educação deve ser vista com cuidado. O controle de qualidade empresarial necessita de uma redução na variabilidade de resultados para que a excelência dos produtos seja garantida, mas no processo de formação educacional importa, em grande medida, justamente o contrário, ou seja, a preservação da diversidade, singularidade e autonomia dos alunos, ou nas palavras de Nilson José Machado:

A qualidade da matéria prima, dos atores e dos processos envolvidos deve revelar-se em um produto final com variações mínimas nas características. Nenhuma empresa lograria qualquer certificado de qualidade se seus produtos, ainda que todos de bom nível, apresentassem um espectro divergente de características, mostrando-se renitentes a classificações e equivalências. Ocorre que, no entanto, que esta diversidade radical é, ou deveria ser, precisamente o caso paradigmático, quando o “produto” esperado é o cidadão ativo, formado pelo sistema educacional.

No universo dos seres humanos, a incomensurabilidade dos espectros de habilidades e competências, a impossibilidade de rotulações ou classificações definitivas, ou relativamente estáveis, a parcial imprevisibilidade associada à administração das emoções e dos sentimentos, às regulações dos humores, tornam a minimização de variações uma meta absolutamente indesejável, que não encontra apoio em qualquer dado de realidade”. (MACHADO, 2001, p. 20- 21)