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CAPITULO 3 DESCOBRIR A CIDADE ATRAVÉS DO TEXTO

3.2. A cidade como palco

Profissionais ligados às artes cênicas começam a ocupar este imenso palco aberto a todas as possibilidades de intervenção artística. Várias companhias teatrais e encenadores no Brasil e no mundo já experimentam realizar suas criações em espaços alternativos. Muitos, inclusive, criam seus espetáculos pensando na cidade como palco para estes acontecimentos. Essa busca por um novo espaço para abrigar as encenações pode ser relacionada com as provocações de Antonin Artaud e seu Teatro da Crueldade. Com sua obra O teatro e seu duplo (2002), Artaud criou um tratado-manifesto de como o teatro seria concebido, escrito e interpretado segundo seus princípios. Como seus experimentos ficaram mais divulgados no campo da teoria, somente trinta anos depois é que começaram a florescer produções inspiradas nas teses artaudianas (ROUBINE, 1998).

O cansaço diante das práticas conhecidas, e talvez um questionamento de um brechtianismo que começava a afundar-se no academicismo, criaram um clima propício à (re) descoberta do Teatro da Crueldade. (...) As tentativas do Living Theatre nos Estados Unidos e, a seguir, na Europa, as buscas de Peter Brook na Inglaterra e de Jerzy Grotowski na Polônia constituem sem dúvida os empreendimentos mais rigorosos e bem sucedidos sob esse aspecto (ROUBINE, 1998, p. 100).

No Brasil, surge, em 1991, a Companhia Teatro da Vertigem. Juntamente com o encenador Antônio Araújo, a companhia transformou vários lugares “mortos” em lugares “vivos” através de suas montagens21. Uma companhia que já é contemporânea na sua forma de criar o texto, atribuindo, aos atores, grande parte de sua criação, por meio de improvisações, vivências e diálogos a partir de suas experiências, impõe também o tão necessário diálogo entre texto contemporâneo e espaço. E esta necessidade de habitar um espaço por meio da dramaturgia contemporânea já estava presente desde as primeiras reflexões sobre o tema entre todos os componentes da companhia e os escritores convidados para dar forma às idéias:

21

O paraíso perdido (1992) ocupou uma igreja; O livro de Jô (1995) foi encenado em um hospital; Apocalipse 1,11 (2000) em um presídio desativado; e sua mais recente montagem BR-3 (2006) percorreu as águas poluídas do rio Tietê em São Paulo.

Isto está ligado diretamente à questão do tema, o que a gente está discutindo com o trabalho. O que acontece tanto no Paraíso, quanto no Jó e agora com o Apocalipse também, é que o tema pede, sugere e inspira um espaço. A partir daquilo que estamos querendo discutir, tratar ou ressaltar. No caso do Jó, o desejo de trazer o tema da peste num primeiro plano nos trouxe ao hospital. Eu não tenho nada contra o palco italiano, mas eu acho que cada espaço traz um sentido, um registro emocional de memória, de história do lugar. O trabalho dialoga com as sensações que o próprio espaço proporciona (ARAÚJO, 1998, p. 16).

Para o grupo paulista, é questão de honestidade com a arte encontrar os lugares ideais para abrigar aquelas histórias, mesmo que fora de um edifício teatral. Neste processo, os atores exploram as possibilidades de trajetórias narrativas, adaptando a cena ao espaço, apropriando-se da arquitetura do lugar, sua materialidade, suas dimensões e sua atmosfera, liberando o imaginário explorado na sala de ensaio para alcançar uma comunhão entre texto e espaço.

O Vertigem ocupou vários espaços com sua dramaturgia contemporânea, sempre dialogando com as angústias e os anseios de seus componentes em relação a suas funções no mundo em que vivem.

Depois de três produções realizadas em espaços alternativos, revelando os traços da história que os textos necessitavam, o grupo resolveu dar outro passo e “invadir” a cidade, ou melhor, as cidades. Para o projeto BR-3, elenco e dramaturgo partiram rumo ao descobrimento de outro Brasil, deflagrando um processo por eles denominado “percurso para dentro”. Brasilândia, bairro da periferia de São Paulo, Brasiléia, cidade localizada no extremo do Acre, e Brasília, capital da nação, foram os lugares escolhidos como base de construção da dramaturgia deste novo espetáculo, encenado no rio Tietê em São Paulo. Nestes lugares o grupo coletou informações, fez registros, desenvolveu oficinas e trocou experiências com as comunidades locais:

É preciso dizer que o projeto nunca pretendeu a reprodução fotográfica ou documental desses três locais. Sempre foi, muito mais, a maneira como nossa sensibilidade e nossa imaginação foram provocadas pelo espaço, (...) o modo como esses espaços nos atravessaram (FERNANDES; AUDIO, 2006, p.17).

Quase como um teatro sagrado revelado por Peter Brook em O teatro e seu espaço (1970), este tipo de processo vem explicitar e analisar a função do ser humano como agente

transformador da sociedade. Um teatro que trabalha com o invisível, mas o invisível que contém todos os impulsos escondidos do homem (BROOK, 1970).

O teatro é a arena onde pode ocorrer uma confrontação viva. A atenção concentrada de um grande número de pessoas cria uma intensidade singular – devido a isso, forças que operam o tempo todo e governam o dia a dia de cada um podem ser isoladas e percebidas com maior clareza (BROOK, 1970, p.104).

Brook, em toda sua carreira, não concebeu um espetáculo em função do espaço, apesar de ter apresentado suas encenações em diversos tipos de edificações, desde grandes e luxuosos teatros como também em espaços alternativos como ruínas e arenas milenares. Mas Brook pensa o palco como um lugar e cabia ao encenador e ao elenco encher aquele lugar de vida, história e reflexão. Se isso não acontecesse o teatro estaria morto, já que

no teatro, toda forma, uma vez nascida, é mortal; toda forma tem que ser reconcebida e sua nova concepção trará as marcas de todas as influências que a cercam. Neste sentido o teatro é relatividade (BROOK, 1970, p. 09).

E isto independe de onde acontece a encenação, o que não quer dizer também que o teatro seja um modismo. Toda mudança, ou toda junção de referência, toda mistura de influência tem que surgir de uma necessidade viva, urgente e com responsabilidade com a arte e com o público.

O teatro contemporâneo precisa cada vez mais da cidade como palco e a cidade se abre cada vez mais a estas experimentações; assim,

as interrelações entre o teatro e a cidade, entre espaço cênico e espaço urbano, podem desencadear ações e movimentos no campo da cultura, fundamentais para a invenção de novas formas de sociabilidade, ao estabelecer uma via direta de comunicação e de interação entre os diversos segmentos da sociedade. O caráter simbólico que emerge de certas regiões, sítios ou monumentos urbanos pode contribuir para o revigoramento de uma cidade, região, bairro, comunidade, ou seja, lugares que emanam a identidade de um povo (CARDOSO, 2008, p.92-93).

O diretor e pesquisador teatral André Carreira criou e desenvolveu com seu grupo (E)xperiência Subterrânea22, criado em 1995 na cidade de Florianópolis em Santa Catarina, o conceito de teatro de invasão. Neste processo, a cidade é o grande estímulo para a aplicação de uma dramaturgia do espaço. Nas experiências do grupo, que trabalha com teatro de rua, a busca é de uma resignificação dos espaços hostis das cidades, transformando a funcionalidade dos lugares e o cotidiano de seus habitantes.

Para Carreira, a ideia de “invasão” não está, necessariamente, ligada a um ato de rebeldia, e se assemelha com a ação cênica como proponho neste trabalho. Ou seja, dar voz e espaço para que o cidadão aja cenicamente não significa que este seja, necessariamente, um ato político ou de rebeldia. Neste sentido,

é possível dizer que estas relações se estruturam como um exercício de leitura da cidade como dramaturgia. A tomada de consciência desse fenômeno implica na reorganização da nossa noção de teatro de rua e de suas repercussões potenciais como fala que irrompe no espaço vivencial das ruas.

Se a cidade é um texto dramático, uma encenação invasora será sempre lida como uma releitura da cidade. Ler a cidade como dramaturgia significa utilizar a lógica da rua percebendo que o fluxo de energia dos usuários é fundamental na formulação das possibilidades de significação das performances teatrais invasoras (CARREIRA, 2007, p. 71).

Aqui, nesta pesquisa, o termo “invasão” surgiu por dois motivos: primeiro, porque, em se tratando de Itambé, os moradores não fazem uso dos espaços públicos de convivência na cidade. Propor uma invasão destes espaços foi uma provocação. Em segundo lugar, é também uma referência ao teatro de invasão proposto por André Carrera.

Mas, de fato, tomei emprestado apenas o termo invasão, já que não tratarei de teatro de rua, nem de experimentos de um grupo profissional, mas, sim, de moradores, cidadãos comuns dispostos a interferir cenicamente na cidade.