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Cidade de Deus: síntese narrativa e contextualização

2. ARTE DO REAL: TEORIAS DO CINEMA E SUAS CONEXÕES

2.1 CINEMA BRASILEIRO DE RETOMADA: VIOLÊNCIA E POBREZA

2.1.1 Cidade de Deus: síntese narrativa e contextualização

Cidade de Deus inicia com um samba como trilha sonora. Na cena inocente dos preparativos de um almoço na comunidade, a simples fuga de uma galinha é o suficiente para gerar, além de diversão entre os personagens, as primeiras cenas de violência. Crianças e adolescentes fortemente armados correndo atrás de uma galinha deparam-se com a polícia. Assim começa uma narrativa circular que envolve a história da criminalidade na comunidade Cidade de Deus no Rio de Janeiro desde os anos 1960, e é a voz off do personagem Buscapé que se encarrega de nos relatar os fatos. O filme é executado a partir de uma montagem alternada onde as histórias dos personagens são contadas de forma separada, até se cruzarem na exposição do conflito central do roteiro. A primeira destas histórias é a do Trio Ternura, formado por Cabeleira (irmão de Bené), Marreco (irmão de Buscapé) e Alicate. O grupo cometia pequenos assaltos e em alguns casos, oferecia à comunidade participação no produto do roubo como na cena em que assaltam um caminhão de gás. Mas a partir de uma investida desastrosa para o roubo de um motel, foi selado o fim do grupo. As mortes causadas por Dadinho (futuramente conhecido por Zé Pequeno), sem conhecimento dos bandidos, causou a repressão da polícia e suas retaliações. Estes foram os primeiros, porém, não os mais importantes bandidos a terem seus feitos contados por Buscapé.

A partir do fim do Trio Ternura, violações à integridade física e moral tornam-se as marcas mais expressivas na narrativa do filme Cidade de Deus. São apresentadas aos espectadores várias sequências de assassinatos, a maioria

deles cometidos pelos traficantes da comunidade, principalmente por Zé Pequeno que, desde criança, demonstra um prazer enorme em matar. Razões muito distintas motivam as mortes. Controle dos pontos de venda de drogas na comunidade, assaltos, vingança, defesa da honra, demonstração de poder, busca de um “estado de ordem” ou simplesmente o prazer por matar. Porém, entre estas motivações, a mais significativa para a narrativa é o controle das “bocas” de venda de drogas e a resolução do conflito entre Zé Pequeno e Cenoura.

A história de Zé Pequeno inicia-se com os delitos cometidos quando ele ainda era menor de idade, sempre com a presença de Bené ao seu lado. Seu desejo de matar, sua intolerância e fúria recebem destaque. Ao completar 18 anos, Dadinho recebe num ritual de umbanda a alcunha de Zé Pequeno e inicia seu processo de dominação da Cidade de Deus pela conquista violenta da “Boca dos Apês”. Práticas de violência tornam-se a essência da narração da história de Zé Pequeno. Em uma das cenas mais marcantes do filme, Pequeno acua entre as paredes de um barraco um grupo de meninos conhecidos por “Caixa-baixa” que praticavam pequenos furtos na comunidade. Muitos fogem, mas dois deles são colocados junto a uma parede e, amedrontados, ouvem a indicativa de que deveriam escolher em que parte do corpo receberiam um tiro em sinal de que eles não poderiam atuar na favela tendo em vista que possuía um dono, Zé Pequeno. Ambos pedem para receber o disparo nas mãos, mas, contrariando-os, Pequeno atira em seus pés. Em seguida, com destaque para closes no choro e no drama das crianças, o traficante ordena que um garoto que andava com ele, conhecido por Filé com Fritas, e aspirante a participar do bando, escolha um dos meninos para matar dando-lhe uma arma na mão. Visivelmente perturbada

psicologicamente, porém intimidada, a criança recebe a tarefa, pois sabia que se não o fizesse, seria ela a vítima e, se fizesse se tornaria merecedora de “conceito”. Dada a situação Filé com Fritas realiza o disparo e mata um dos meninos. A presença da crueldade na representação imagética é densa e aterrorizante, além de dinâmica e contundente.

Em Cidade de Deus o tráfico também tem papel de regulador da vida na favela, de mantenedor da ordem social, de proteção dos moradores. O morador da favela também convive com o traficante “protetor”, “gente boa” que mantém a ordem vigente. Era assim a personalidade de Bené, fiel amigo de Zé Pequeno. O malandro (assim como foi denominado em alguns momentos por outros personagens da trama) acalmava constantemente o ímpeto de Zé Pequeno na busca pelo poder e em sua fúria contra grupos rivais e pessoas que, por algum motivo, o descontentavam. Bené dava presentes sem pudor, evitava tocar em armas, gostava de festas e comprava roupas próprias dos jovens do “asfalto”. Tal aspecto conciliador e protetor evidenciou-se na cena em que promoveu uma festa para anunciar sua despedida da Cidade de Deus e consequentemente da vida criminosa. Em um mesmo lugar, nos conta o narrador da história, Bené foi capaz de reunir grupos bem distintos da comunidade:

Bené era gente fina demais para continuar naquela vida de bandido. Ele era tão gente fina que conseguiu reunir na festa de despedida os bandidos, a rapaziada Black, a comunidade crente, a galera do samba, os cocotas e o Zé Pequeno, que nunca tinha dançado na vida. (Trecho da narração em voz off feita pelo personagem Buscapé).

Mas, na mesma festa, Bené é assassinado por engano quando, na realidade, o alvo era Zé Pequeno. Sem Bené não haveria mais o moderador de conflitos,

estava declarada a guerra. Neste momento surge um personagem crucial à trama, Mané Galinha. Após a festa, Galinha teve sua noiva estuprada por Zé Pequeno enquanto assistia a tudo preso pelos outros membros do grupo. Instantes depois, Pequeno decide ir até a casa de Mané Galinha matá-lo. Não logrou êxito, mas assassinou o irmão de Galinha e outro familiar. Neste momento a violência no filme também passa a ter sua motivação nas vinganças pessoais. Mané Galinha não se contentaria até ver Zé Pequeno morto. Galinha conhece Cenoura e se alia ao traficante para lutar contra Pequeno. A partir deste momento, inicia-se a sequência da guerra entre os bandos da Cidade de Deus. Muitas mortes, muitos confrontos até que o roteiro retoma a cena inicial do filme, início da sequência final da narrativa. Um confronto que envolve desta vez, além das duas gangues, a polícia, e revela os ódios escondidos, as vinganças e os insucessos comuns às trajetórias da maioria dos envolvidos na guerra do tráfico. Mané Galinha é morto por um rapaz que teve seu pai assassinado por ele. Cenoura é preso pela polícia. Zé Pequeno é liberado por policiais corruptos, mas logo assassinado pelos mesmos meninos da “Caixa-baixa” que antes se viram encurralados entre os barracos.

Buscapé registra toda a sequência em fotografias. Com seus registros consegue um emprego de fotógrafo num jornal. A Cidade de Deus estava livre. Livre para a “Caixa-baixa”.

Em Cidade de Deus às vielas com casas sujas e pobres, à violência, às agressões e ao tráfico de drogas somam-se as reproduções imagéticas de uma comunidade abandonada pelo Estado e de uma polícia corrupta comprometida

com o tráfico. Tais processos sociais, comuns à agenda da cinematografia brasileira contemporânea, atuam como mediadores na formação de representações sociais.

O cinema, como os demais meios de comunicação, possui papel importante na formação e disseminação ou difusão dessas representações sociais. Espíndula et al (2006), citando Bauer, Gaskell e Allum (2002), afirmam que analisar o conteúdo veiculado nos meios de comunicação nos possibilita conhecer concepções advindas dos agentes produtores das mensagens, bem como do público receptor daquele material. Por intermédio dos meios de comunicação são expressos os hábitos, os costumes e as culturas que podem evidenciar o pensamento social vigente e permitir avaliar suas implicações. Através do filme Cidade de Deus – bem como em outros do cinema brasileiro contemporâneo – a violência e a pobreza se afirmam como fenômenos de representações sociais que se estabelecem no cerne dos grupos que opinam e compartilham os saberes adquiridos. Delimitar, pois, os conceitos fundamentais da Teoria das Representações Sociais se faz necessário para a exposição e reflexão dos dados da pesquisa.