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CIDADES MORTAS

No documento Contos Completos - Monteiro Lobato (páginas 159-200)

Cidades mortas[27]

1906

A QUE M E M NOSSA T E RRA PE RCORRE TAIS E TAIS Z ONAS, vivas outrora, hoj e m ortas, ou em via disso, tolhidas de insanável caquexia, um a verdade, que é um desconsolo, ressurte de tantas ruínas: nosso progresso é nôm ade e suj eito a paralisias súbitas. Radica-se m al. Conj ugado a um grupo de fatores sem pre os m esm os, reflui com eles dum a região para outra. Não em ite peão. Progresso de cigano, vive acam pado. Em igra, deixando atrás de si um rastilho de taperas.

A uberdade nativa do solo é o fator que o condiciona. Mal a uberdade se esvai, pela reiterada sucção de um a seiva não recom posta, com o no velho m undo, pelo adubo, o desenvolvim ento da zona esm orece, foge dela o capital — e com ele os hom ens fortes, aptos para o trabalho. E lentam ente cai a tapera nas alm as e nas coisas.

Em São Paulo tem os perfeito exem plo disso na depressão profunda que entorpece boa parte do cham ado Norte.

Ali tudo foi, nada é. Não se conj ugam verbos no presente. Tudo é pretérito. Um as tantas cidades m oribundas arrastam um viver decrépito, gasto em chorar na m esquinhez de hoj e as saudosas grandezas de dantes.

Pelas ruas erm as, onde o transeunte é raro, não m atracolej a sequer um a carroça; de há m uito, em m atéria de rodas, se voltou aos rodízios desse rechinante sím bolo do viver colonial — o carro de boi. Erguem -se por ali soberbos casarões apalaçados, de dois e três andares, sólidos com o fortalezas, tudo pedra, cal e cabiúna; casarões que lem bram ossaturas de m egatérios donde as carnes, o sangue, a vida para sem pre refugiram .

Vivem dentro, m esquinham ente, vergônteas m ortiças de fam ílias fidalgas, de boa prosápia entroncada na nobiliarquia lusitana. Pelos salões vazios, cuj os frisos dourados se recobrem da pátina dos anos e cuj o estuque, lagarteado de fendas, esboroa à força de goteiras, paira o bafio da m orte. Há nas paredes

quadros antigos, crayons, figurando efígies de capitães-m ores de barba em colar. Há sobre os aparadores Luís XV brônzeos candelabros de dezoito velas, esverdecidos de azinhavre. Mas nem se acendem as velas, nem se guardam os nom es dos enquadrados — e por tudo se agrum a o bolor râncido da velhice.

São os palácios m ortos da cidade m orta.

Avultam em núm ero, nas ruas centrais, casas sem j anelas, só portas, três e quatro: antigos arm azéns hoj e fechados, porque o com ércio desertou tam bém . Em certa praça vazia, vestígios vagos de “m onum ento” de vulto: o antigo teatro — um teatro onde j á ressoou a voz da Rosina Stoltz, da Candiani...[28]

Não há na cidade exangue nem pedreiros, nem carapinas; fizeram -se estes rem endões; aqueles, m eros dem olidores — tanto vai da últim a construção. A tarefa se lhes resum e em especar m uros que deitam ventres, escorar paredes rachadas e rem endá-las m al e m al. Um dia m etem abaixo as telhas: sem pre vale trinta m il-réis o m ilheiro — e fica à inclem ência do tem po o encargo de aluir o resto.

Os ricos são dois ou três forretas, coronéis da Briosa, com cem apólices a render no Rio; e os sinecuristas acarrapatados ao orçam ento: j uiz, coletor, delegado. O resto é a mob: velhos m estiços de m iserável descendência, roídos de opilação e álcool; fam ílias decaídas, a viverem m isteriosam ente um as, outras à custa do parco auxílio enviado de fora por um filho m ais audacioso que em igrou. “Boa gente”, que vive de aparas.

Da geração nova, os rapazes debandam cedo, quase m eninos ainda; só ficam as m oças — sem pre fincadas de cotovelos à j anela, negaceando um m arido que é um m ito em terra assim , donde os casadouros fogem . Pescam , às vezes, as m ais j eitosas, o seu prom otorzinho, o seu delegadozinho de carreira — e o caso vira prodigioso acontecim ento histórico, criador de lendas.

Toda a ligação com o m undo se resum e no cordão um bilical do correio — m agro estafeta bifurcado em pontiagudas éguas pisadas, em eterno ir e vir com duas m alas postais à garupa, m urchas com o figos secos.

Até o ar é próprio; não vibram nele fonfons de auto, nem cornetas de bicicletas, nem cam painhas de carroça, nem pregões de italianos, nem ten-tens de sorveteiros, nem plás-plás de m ascates sírios. Só os velhos sons coloniais — o sino, o chilreio das andorinhas na torre da igrej a, o rechino dos carros de boi, o cincerro de tropas raras, o taralhar das baitacas que em bando rum oroso cruzam e recruzam o céu.

Isso, nas cidades. No cam po não é m enor a desolação. Léguas a fio se sucedem de m orraria áspera, onde reinam soberanos a saúva e seus aliados, o sapé e a sam am baia. Por ela passou o Café, com o um Átila. Toda a seiva foi bebida e, sob form a de grão, ensacada e m andada para fora. Mas do ouro que veio em troca nem um a onça perm aneceu ali, em pregada em restaurar o torrão. Transfiltrou-se para o Oeste, na avidez de novos assaltos à virgindade da terra

nova; ou se transfez nos palacetes em ruína; ou reentrou na circulação europeia por m ão de herdeiros dissipados.

À m ãe fecunda que o produziu nada coube; por isso, ressentida, vinga-se agora, enclausurando-se num a esterilidade feroz. E o deserto lentam ente retom a as posições perdidas.

Raro é o casebre de palha que fum ega e entrem ostra em redor o quartelzinho de cana, a rocinha de m andioca. Na m or parte os escassíssim os existentes, descolm ados pelas ventanias, esburaquentos, afestoam -se do m elão- de-são-caetano — a hera rústica das nossas ruínas.

As fazendas são escoriais de soberbo aspecto vistas de longe, entristecedoras quando se lhes chega ao pé. Ladeando a casa-grande, senzalas vazias e terreiros de pedra com viçosas guanxum as nos interstícios. O dono está ausente. Mora no Rio, em São Paulo, na Europa. Cafezais extintos. Agregados dispersos. Subsistem unicam ente, com o lagartixas na pedra, um pugilo de caboclos opilados, de esclerótica biliosa, inerm es, incapazes de fecundar a terra, incapazes de abandonar a querência, verdadeiros vegetais de carne que não florescem nem frutificam — a fauna cadavérica de últim a fase a roer os derradeiros capões de café escondidos nos grotões.

— Aqui foi o Breves. Colhia oitenta m il arrobas!...

A gente olha assom brada na direção que o dedo cicerone aponta. Nada m ais!... A m esm a m orraria nua, a m esm a saúva, o m esm o sapé de sem pre. De banda a banda, o deserto — o trem endo deserto que o Átila Café criou.

Outras vezes o viaj ante lobriga ao longe, rente ao cam inho, um a ave branca pousada no topo dum espeque. Aproxim a-se devagar ao chouto rítm ico do cavalo; a ave esquisita não dá sinais de vida; perm anece im óvel. Chega-se inda m ais, franze a testa, apura a vista. Não é ave, é um obj eto de louça... O progresso cigano, quando um dia levantou acam pam ento dali, rum o a Oeste, esqueceu de levar consigo aquele isolador de fios telegráficos... E lá ficará ele, atestando m udam ente um a grandeza m orta, até que decorram os m uitos decênios necessários para que a ruína consum a o rij o poste de “candeia” ao qual o am arraram um dia — no tem po feliz em que Ribeirão Preto era ali...

A vida em Oblivion

1908

Os três livros

A cidadezinha onde m oro lem bra soldado que fraqueasse na m archa e, não podendo acom panhar o batalhão, à beira do cam inho se deixasse ficar, exausto e só, com os olhos saudosos pousados na nuvem de poeira erguida além .

Desviou-se dela a civilização. O telégrafo não a põe à fala com o resto do m undo, nem as estradas de ferro se lem bram de uni-la à rede por interm édio de hum ilde ram alzinho.

O m undo esqueceu Oblivion, que j á foi rica e lépida, com o os hom ens esquecem a atriz fam osa logo que se lhe desbota a m ocidade. E sua vida de vovó entrevada, sem netos, sem esperança, é hum ilde e quieta com o a do urupê escondido no som brio dos grotões.

Trazem -lhe os j ornais o rum or do m undo, e Oblivion com enta-o com discreto parecer. Mas com o os j ornais vêm apenas para m eia dúzia de pessoas, form am estas a aristocracia m ental da cidade. São “Os Que Sabem ”. Lem bra o prim ado dos Dez de Veneza, esta sabedoria dos Seis de Oblivion.

Atraídos pelas terras novas, de feracidade sedutora, abandonaram -na seus filhos; só perm aneceram os de vontade anem iada, débeis, faquirianos. “Mesm eiros”, que todos os dias fazem as m esm as coisas, dorm em o m esm o sono, sonham os m esm os sonhos, com em as m esm as com idas, com entam os m esm os assuntos, esperam o m esm o correio, gabam a passada prosperidade, lam uriam do presente e pitam — pitam longos cigarrões de palha, m atadores do tem po.

Entre as originalidades de Oblivion um a pede narrativa: o com o da sua educação literária.

Prom ovem -se três livros venerandos, encardidos pelo uso, com as capas suj as, consteladas de pingos de vela — lidos e relidos que foram em longos serões fam iliares por sucessivas gerações. São eles: La Mare d’Auteuil, de Paul de Kock, para o uso dos conhecedores do francês; uns volum es truncados do Rocambole, para enlevo das im aginações fem ininas; e Ilha maldita, de Bernardo Guim arães, para deleite dos paladares nacionalistas.

O dono prim itivo seria talvez algum padre m orto sem herdeiros. Depois, à força de girarem de déu em déu, esses livros forraram -se à propriedade individual. Quem , por exem plo, desej a ler o Rocambole diz na rodinha da farm ácia:

— Onde andará o Rocambole?

Inform am -no logo, e o candidato tom a-o das m ãos do detentor últim o, ficando desde esse m om ento com o o seu novo depositário. Processo sum aríssim o e inteligente.

Quando se esgotou a m inha provisão de livros e, ignorante ainda da riqueza literária da terra, deliberei decorrer ao estoque local, dirigi-m e a um dos Seis. O hom em enfunou-se de legítim o orgulho ao dar-m e os inform es pedidos.

— Tem os obras de fôlego, poucas m as boas, e para todos os paladares. Gênero pândego, para divertir, tem os, “por exem plo”, La Mare d’Auteuil, de Paul de Kock. Im pagável!

— Obrigado. De Kock, nem a tuberculina.

— Tem os o célebre Rocambole, “gênero im aginoso”; infelizm ente está incom pleto; faltam uns dezessete volum es.

— Não m e serve o resto.

— E tem os um a obra-prim a nacional, a Ilha maldita, do “nosso” Bernardo Guim arães.

Parando aí o catálogo, era forçoso escolher.

No concerto dos nossos rom ancistas, onde Alencar é o piano querido das m oças e Macedo a sensaboria relam bória dum flautim piegas, Bernardo é a sanfona. Lê-lo é ir para o m ato, para a roça — m as um a roça adj etivada por m enina de Sion, onde os prados são amenos, os vergéis floridos, os rios caudalosos, as m atas viridentes, os píncaros altíssimos, os sabiás sonorosos, as rolinhas meigas. Bernardo descreve a natureza com o um cego que ouvisse contar e reproduzisse as paisagens com os qualificativos surrados do m au contador. Não existe nele o vinco enérgico da im pressão pessoal. Vinte vergéis que descreva são vinte perfeitas e invariáveis am enidades. Nossas desaj eitadíssim as caipiras são sem pre lindas m orenas cor de j am bo.

Bernardo falsifica o nosso m ato. Onde toda a gente vê carrapatos, pernilongos, espinhos, Bernardo aponta doçuras, insetos m aviosos, flores olentes.

Mas com o m ente m enos que o Paul de Kock ou o truculento Ponson, pai do Rocambole, escolhi-o.

Veio o livro. Volum e velho com o um m onum ento egípcio e com o ele revestido de inscrições. Cada leitor que passava ia deixando o rastro gravado a lápis.

“Li e gostei”, dizia um , “Li e apreciei”, afirm ava certa senhorita. Inscrição quase em cuneiform e rezava “Fulano leu e apreciou o talento do grande escritor brasileiro”. Outro versificava: “Já foi lido — Pelo Walfrido”. Tal m oça notara parcim oniosam ente: “Li” e assinou. Um am igo da ordem inversa pôs: “Li e m uito gostei”.

Houve quem discordasse. “Li e não gostei”, declarou um fulano. O patriotism o literário dum anônim o saiu a cam po em prol do autor: “Os porcos preferem m ilho a pérolas”, escreveu ele em baixo.

Monogram a com plicadíssim o subscrevia isto: “O Rocambole diverte m ais”. E assim , por quanto espaço em branco tinha o livro, m argens ou fins de capítulo, as apreciações se alastravam com levíssim as variantes ao sóbrio “Li e gostei” inicial. Havia nom es bem antigos, de pessoas falecidas, e nom es das m eninas casadeiras da época.

Os intelectuais de Oblivion bebiam à farta naquela veneranda fonte. Em Bernardo abeberavam -se de “estilo e boa linguagem ”, conform e afirm ou um ; no Rocambole truncado exercitavam os m úsculos da im aginativa; e no Paul de Kock, os eleitos, os Sum os (os que sabiam francês!) fartavam -se da grivoiserie[29] perm itida a espíritos superiores.

Essa trindade im pressa bastava à educação literária da cidade. Feliz cidade! Se é de tem er o hom em que só conhece um livro, a cidade que só conhece três é de venerar. Veneração, entretanto, que não virá, porque o m undo desconhece totalm ente a pobrezinha da Oblivion...

Os perturbadores do silêncio

1908

O SIL Ê NCIO E M OBL IVION é com o o frio nas regiões árticas: um a perm anente. Não se com preende a segunda sem o prim eiro. Ele a com pleta; ela o define.

Durante a noite aquele silêncio faz-se inteiriço com o a escuridão. Por m ais que se apurem , os ouvidos nada ouvem a não ser um vago e rem oto ressoar, que lem bra m iríade de grilos m icroscópicos em im perceptível surdina chiadeira.

Durante o dia, porém , a integridade do silêncio em Oblivion sofre lesões. Uns tantos rum ores, sem pre os m esm os e periodicam ente repetidos, constelam - no de quebras de continuidade. O velho inim igo do Silêncio, o Som , a espaços berra dentro dele gritos sediciosos, tal o relâm pago que m om entaneam ente destrói o im pério das trevas. Mas o Silêncio logo subj uga e absorve o intruso.

À frente desse grupo de irreverências está o sino da igrej a. Repicando m issa aos dom ingos ou chorando a defunto, alegre ou fúnebre, é o Sino o m ais violento perturbador do Silêncio em Oblivion.

Outra, é a capina trim ensal das ruas: o raspar das enxadas perturba o silêncio com a insistência do coaxar do sapo-ferreiro.

Outra, é o fim das aulas. Quando soam quatro horas o portão do Grupo Escolar borbota um fluxo de m eninos rom pidos em algazarra, a berrar, a cantar — e adeus silêncio.

Outra, e esta deveras notável, é o carrinho da Câm ara.

O carrinho da Câm ara constitui o veículo m ais im portante de Oblivion — que além dele só conta m ais um , o Zé Burro, sólido preto-m ina em pregado no transporte das coisas pesadas. E é o principal por várias razões ponderosas, entre as quais a de ser ele todo de ferro, ao passo que o outro é de carne. Verdade que o carrinho só tem um a roda e o preto tem duas pernas. Mas com o a roda do carrinho é bem centrada e as pernas do Zé são cam baias, aquela superioridade desaparece e o carrinho instala-se de vez no prim ado.

Mas esta questão de prim azias não vem ao caso. O caso é a perturbação do Silêncio determ inada pelo carrinho, fato que se dá da seguinte m aneira. Com o o carrinho tem pouco serviço e passa a m or parte do tem po a cochilar no depósito, a ferrugem , insidiosa inim iga da inação, sub-repticiam ente vem pintar de verm elho o eixo das rodas, de m odo que, m al sai à rua o veículo, o pobrezinho do eixo grita com o um gotoso, gem e, range, ringe — perturbando lam entavelm ente o Silêncio de Oblivion.

Quando Isaac Factótum — um m ulato retaco, grosso e curto com o certas taturanas — recebe ordem para ir a tal parte form icidar um olheiro de saúvas, o rolete de hom em m ete as garrafas de form icida, a enxada e o fósforo dentro do carrinho e, im agem da Com penetração, sím bolo da Convicção Inabalável, parte nhem-nhim, nhem-nhim, através das vias principais da cidade, em busca do m al- aventurado olheiro.

De sobrecenho carregado, Isaac leva o olhar atentam ente fito à frente — para “evitar algum desastre”. Nas ruas desertas apenas um ou outro cachorrinho se estira ao sol. Isaac, a vinte passos, divisando o vulto de um , para, ergue a m ão em viseira, firm a os olhos.

— Diabo! Am ode que é o Joli do Pedro Surdo? —, e com um a pedra o espanta: — Sai, porqueira! Não ouve o carro? Não tem m edo de m orrê m asgaiado?

E, convencido de que salvou a vida a um cristão, Isaac-Garrafa-de-Licor- de-Cacau retom a os varais e lá segue por Oblivion afora, nhem-nhim, nhem- nhim, com solenidade de dalai-lam a do Tibete.

Às j anelas acode gente. Crianças repim padas no peitoril gritam para dentro: — Mam ãe, o carrinho “evem ” vindo!

Muita m oça nervosa deixa a costura e tapa os ouvidos: — Que inferneira! Não se pode com essa barulhada!

Não obstante, o terrível veículo passa, indiferente à adm iração com o à censura, garboso, todo de ferro e ferrugem , nhem-nhim, nhem-nhim, em purrado pela dignidade infinita de Isaac-Toco-de-Vela.

E enquanto o carrinho da Câm ara não torna ao depósito m unicipal, o Silêncio não reentra na posse dos seus dom ínios.

Vidinha ociosa

1908

APÓLOGO

O VE L HO TORQUATO DÁ RE L E VO ao que conta à força de im agens engraçadas ou apólogos. Ontem explicava o m al da nossa raça: preguiça de pensar. E restringindo o asserto à classe agrícola:

— Se o Governo agarrasse um cento de fazendeiros dos m ais ilustres e os trancasse nesta sala, com cem m achados naquele canto e um a floresta virgem ali adiante; e se naquele quarto pusesse um a m esa com papel, pena e tinta, e lhes dissesse: “Ou vocês pensam m eia hora naquele papel ou botam abaixo aquela m ata”, daí a cinco m inutos cento e um m achados pipocavam nas perobas!...

A MESMICE

Um coronel inglês suicidou-se “tired of buttoning and unbuttoning” — cansado de abotoar e desabotoar a farda.

A vida em Oblivion é um perpétuo “buttoning and unbuttoning” que não desfecha no suicídio.

Salvam -na a botica e o j ogo. A botica, porque nela há um a sessão perm anente de m exerico, e o m exerico é a am brosia dos lugarej os pobres. E o j ogo, porque quem perdeu não pode suicidar-se antes da desforra, e quem ganhou vai alegre, a cantarolar que afinal de contas a vida é boa. Dessa form a escapam todos ao cansaço da m esm ice.

A FOLHINHA

A folhinha inventou-a algum boticário do interior para uso de sua cidade-aldeia, onde correm os dias tão iguais e parecidos que só por m eio dela podem os distinguir um a segunda dum a terça ou quarta-feira.

Um só dia tem feição própria: o dom ingo. Assinala-o a roupa lim pa, a roupa nova, a roupa preta que surge pelas ruas a tom ar sol no corpo de toda gente. Redobram de m ovim ento as praças. Caras novas de gente extram uros dão ares de sua graça. Há m ercado cedo, m issas até as onze; depois, pelo resto da tarde, continuam a assinalar o Dia do Senhor caboclos e negros encachaçados, aglom erados pelas vendas. Vendem elas m ais pinga nesse dia do que durante a sem ana inteira. Todos voltam para casa m ais ou m enos chum beados. Os “de cair” dorm em na cidade. Os de pinga exaltada, no xadrez. E assim transcorre o belo dom ingo sem necessidade de irm os à folhinha para saberm os que dia é.

TOURADAS

Transform aram o antigo velódrom o em circo de touros; m etade das arquibancadas virou Sombra, a m il-réis; e a outra m etade, Sol, a quinhentos. Num cam arote enfeitado de cetim am arelo e verde está um inteligente pegado a laço e im ensam ente bronco. Ao seu lado, um clarim tuberculoso; cada vez que sopra na corneta falta-lhe fôlego para um som com pleto — e o povo ri-se.

Toureiro de verdade há um , o Antônio Coraj oso, em presário, bilheteiro e assessor do inteligente. Mais dois açougueiros vestidos de toreros, com o

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