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Contos Completos - Monteiro Lobato

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Academic year: 2021

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Sobre a obra:

A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o obj etivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêm icos, bem com o o sim ples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de com pra futura.

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo

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MONTEIRO LOBATO CONTOS COMPLETOS

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Copy right © Monteiro Lobato

Sob licença da Monteiro Lobato Licenciam entos (fevereiro/2014)

Todos os direitos reservados. nenhum a parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer m eio ou form a, sej a m ecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc, nem apropriada ou estocada em sistem a de bancos de dados sem a expressa autorização da editora.

Texto fixado conform e as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto legislativo nº- 54, de 1995).

Editor responsável Ana Lim a Cecilio

Editor assistente Erika Nogueira Vieira, Juliana de Arauj o Rodrigues Editor digital Erick Santos Cardoso

Preparação Fábio Bonillo Revisão Bruno Costa

Capa e proj eto gráfico Mariana Bernd Tratam ento de im agens Karm o

Xilogravura da capa Denis Arauj o da Silva (Xiloceasa)

CIP-BRASIL. Catalogação na publicação Sindicato nacional dos editores de livros, RJ

L778c

Lobato, Monteiro, 1882-1948

Contos com pletos / Monteiro Lobato. - 1. ed. - São Paulo : Biblioteca Azul, 2014. il.

ISBN 978-85-250-5678-8

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14-08795 CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

22/01/2014 27/01/2014

Direitos de edição em língua portuguesa adquiridos por Editora Globo S/A Avenida Jaguaré, 1485

05346-902 São Paulo-SP www.globolivros.com .br

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Sumário Capa Folha de rosto Ilustração Créditos Apresentação URUPÊS Ilustrações Os faroleiros O engraçado arrependido A colcha de retalhos A vingança da peroba Um suplício m oderno Meu conto de Maupassant “Pollice verso” Bucólica O m ata-pau Bocatorta

O com prador de fazendas O estigm a Velha praga Urupês CIDADES MORTAS Ilustrações Cidades m ortas A vida em Oblivion Os perturbadores do silêncio Vidinha ociosa Cavalinhos Noite de São João O pito do reverendo Pedro Pichorra Cabelos com pridos O “Resto de Onça” Por que Lopes se casou Júri na roça Gens ennuy eux O fígado indiscreto O plágio

O rom ance do chupim O luzeiro agrícola

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A “Cruz de Ouro”

De com o quebrei a cabeça à m ulher do Melo O espião alem ão

Café! Café! Toque outra

Um hom em de consciência Anta que berra O avô do Crispim NEGRINHA Ilustrações Negrinha As fitas da vida O dram a da geada Bugio Moqueado O j ardineiro Tim óteo O fisco (Conto de Natal) Os negros Barba Azul O colocador de pronom es Um a história de m il anos Os pequeninos A facada im ortal

A policitem ia de Dona Lindoca “Quero aj udar o Brasil...” Sorte grande Dona Expedita Herdeiro de si m esm o O MACACO QUE SE FEZ HOMEM

Ilustrações Era no Paraíso... A nuvem de gafanhotos Tragédia dum capão de pintos Duas cavalgaduras Um hom em honesto O bom m arido O rapto Marabá Fatia de vida A m orte do Cam icego FORTUNA CRÍTICA

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Problem a vital Negrinha Cidades m ortas Caboclism o Guerra ao... caipira O grande Lobato Lobato Monteiro lobato

Créditos das im agens (por ordem de aparição) Notas

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APRESENTAÇÃO

Os imprescindíveis contos de Monteiro Lobato

Beatriz Resende

Este volum e apresenta aos leitores os quatro livros de contos que Monteiro Lobato publicou em vida: Urupês, em 1918; Cidades mortas, 1919; Negrinha, 1922 e O macaco se fez homem, em 1923. A algum as das obras foram acrescentados, em edições seguintes, outros contos. O próprio Lobato, anotou, em alguns dos textos, o ano em que fora escrito.

Todas as obras, portanto, foram editadas durante a Prim eira República, a República Velha que dura da Proclam ação até a Revolução de 1930 e é deste país que Monteiro Lobato se ocupa sob form as diversas em suas provocantes narrativas.

Escrevendo longe da capital, do “Rio-cartão-postal”, do “Rio civiliza-se” nos anos que se seguiram às reform as do prefeito Pereira Passos, o autor tam bém não se deixa levar pelas ilusões dos paulistas da Sem ana Moderna, da Pauliceia Desvairada. Nem a avenida Rio Branco nem o Teatro Municipal de São Paulo representam o que poderíam os cham ar de Brasil real. Mas é este que interessa a Lobato.

No Brasil real dos anos 1920, a república proclam ada por m ilitares era m arcada pelo autoritarism o, o povo continuava excluído das decisões sobre o destino do país, o cam po servia às oligarquias unicam ente fonte de extração de riqueza distribuída em desigualdade extrem a, aos negros pouco lhes servia a abolição recente, partilhando com os pobres as desditas im postas pela ordem

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escravocrata ainda em vigência.

Tom ando o conj unto dos quatro livros de contos, o que torna as narrativas de Lobato originais, atribuindo-lhes um caráter revelatório com parável ao que Euclides da Cunha dá ao sertão e Lim a Barreto aos subúrbios do Rio de Janeiro, é apresentar ao leitor a im ensa pobreza do país, o atraso em que a m aior parte da população perm anecia im ersa, as dificuldades em se im plantar um regim e realm ente republicano, a convivência do atraso com ím petos vanguardistas.

A contundência com que constrói a im agem do país, as im agens que apresenta da gente que o habita, as situações e os conflitos de seus personagens não só provocaram recepção favorável im ediata com o perm anecem im portantes no quadro da cultura brasileira sobretudo pela form a que Lobato, nestes textos, dá à realidade que quer m ostrar, a da ficção.

Nas quatro obras que tem os diante de nós, Lobato não nos fala com o “intérprete do Brasil”, m as com o narrador, com o ficcionista, e é a partir de seu sucesso com o contista que irá aparecer o ensaísta de Ideias de Jeca Tatu e outras obras de reflexão crítica, de pensam ento social e político que irão se seguir.

UMA TEORIA DO CONTO

Para Lobato, o conto é m esm o a narrativa de “causos” e deve se desenrolar levando com ele o leitor atento à sucessão dos fatos. No conto “O ‘Resto de Onça’”, da segunda reunião de textos, Cidades mortas, o autor apresenta sua teoria do conto, a partir de seus m odelos, Maupassant e Kipling.

Quero conto que conte coisas; conto donde eu saia podendo contar a um am igo o que aconteceu, com o fulano m orreu, se a m enina casou, se o m au foi enforcado ou não.

Na nossa literatura daquele m om ento, o escritor opõe à escrita acadêm ica de Alberto de Oliveira, a que falta sal e tem gordura dem ais, as narrativas de Cornélio Pires e Arthur Azevedo onde “há dram a, com édia ou pelo m enos um a anedota original”.

A origem dessas narrativas curtas está nas histórias que ouve, nos relatos que se espalham , em recriações de fábulas ou m itos tradicionais que vão se transform ando nas ficções que se sucedem .

Muito tem po depois, é tam bém sabendo ouvir de m aneira toda especial a gente do interior e seus “causos”, incorporando e recriando sua linguagem , que

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Guim arães Rosa criará sua obra em contos.

No m esm o “O ‘Resto de Onça’”, Lobato m esm o explica bem a im portância desse m ovim ento – quem conta um conto aum enta um ponto – na gênese de suas narrativas curtas:

Contos andam aí aos pontapés, a questão é saber apanhá-los. Não há suj eito que não tenha na m em ória um a dúzia de arcabouços m agníficos, aos quais para virarem obra de arte, só falta o vestuário da form a, bem cortado, bem cosido, com pronom es bem colocadinhos.

Esses “arcabouços m agníficos” podem vir de recursos da literatura rom ântica, sobretudo o contraste entre o grotesco e o sublim e com o apresentado por Victor Hugo em seu Prefácio de Cromwell e realizado em O corcunda de Notre-Dame.

Segundo anotações do autor, “Bocatorta”, incorporado a Urupês, seria um de seus prim eiros contos. No texto, seu Quasim odo é um negro deform ado e assustador, figura horrorizante, que se torna um espécim e de gabinete de curiosidade a ser apreciado por visitantes da fazenda, contrastando com a j ovem filha dos donos que dizem “linda com o um a santa”. A partir da oposição grotesco/sublim e, o conto cria suspense e segue velozm ente até o m om ento em que o grotesco dom ina. Morta a m oça, o ser deform ado, o m onstro de nosso interior, a desenterra para o único beij o possível. Escreve o autor:

Um quadro hediondo antolhou-se-lhes de golpe: um corpo branco j azia fora do túm ulo abraçado por um vulto vivo, negro e coleante com o um polvo.

Com entando o texto em ensaio fundam ental sobre o autor, Silviano Santiago assim define a cena: “Vida, am or e m orte se entrelaçam conflituosam ente, com o num a escultura decadentista”.[1]

Além do gosto pelo grotesco, Lobato tom a em prestado do Rom antism o não a idealização de personagens ou situações – o que é m esm o alvo de suas críticas, com o o índio de Alencar –, m as certos form atos, com o o folhetim , desdobrando-se em episódios narrativos em “Os negros”. Neste conto longo, im portantíssim o por vários tem as caros a Lobato, não falta sequer o recurso ao fantástico, ao incrível fantasioso que dá aquele sal que considera im prescindível ao conto na construção do enredo que vai do am or rom ântico à história de terror.

Em relatos de fait-divers, em episódios rocam bolescos, às vezes m esm o farsescos, tipos vão sendo construídos: o caçador de onça que j á fora

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parcialm ente devorado por um felino em “Resto de onça”, o contador de piadas cuj o dram a é desej ar se tornar sério em “O engraçado arrependido”, o doutorando carioca “cada vez ‘m ais outro’ desem penado, com tiques de carioca, ‘ss’ sibilantes, roupas caras e uns palavreados técnicos de em basbacar” em “Pollice verso”, os filhos m alandros dos fazendeiros quebrados de “O com prador de fazendas”, o infeliz e incom preendido hom em de bem cuj a desgraça vem de um sim ples ato de honestidade em “Um hom em honesto”, e o personagem que o aproxim ará de contos e crônicas de Lim a Barreto – o funcionário público.

O conto tam bém pode ser o relato de “causos” que correm pelo interior, com o em “Mata-pau”, a história de Elesbão, traído pela m ulher, conform e contou seu cam arada. Ali diz Lobato: “Grandes folhetinistas andam por este m undo de Deus perdidos na gente do cam po, ingram aticalíssim a, porém pitoresca no dizer com o ninguém ”.

O conto rem ete, na m em ória do leitor contem porâneo, às “estórias” de Guim arães Rosa, com o a fábula da m ulher que vive com um j ovem , seu filho adotivo: “Viviam com o filho e m ãe, dizia ela; com o m arido e m ulher, resm ungava o povo”.

Outro caso é o conto apresentado pelo narrador que em suas viagens visita um a velhinha que costura à porta de casa um a colcha para o casam ento da neta. Entre idas e vindas fica sabendo pelo “zum -zum corrente no bairro” que filho de um sitiante levara da casa Pingo d’Água, a j ovem , e com ela o sentido da vida da avó.

Neste clássico da nossa literatura que é “Colcha de retalhos”, a em oção que o leitor partilha com o narrador vem do conhecim ento da gente sim ples da roça, da proxim idade que se instala no tom lírico com que constrói a história tão triste, para concluir, vendo m ais um a vez o fato com o um a cena: “Que quadro im ensam ente triste, aquele fim de vida m achucado pela m ocidade louca!...”

Nos contos m ais recentes, acrescentados a volum es anteriores, j unto com a linguagem que se m oderniza, surge tam bém um tom m ais leve que não tem e o côm ico e se aproxim a da crônica com o em “A Facada Im ortal”, datado de 1942, que se passa quase todo em bares da cidade, com o o “Café Guarany, com y grego”, onde “ficávam os horas trabalhando para a Antártica”. No m esm o ensaio citado, Silviano Santiago m enciona o conto com o “verdadeira obra prim a”.

A ESTÉTICA NATURALISTA-NACIONALISTA

Quando Urupês é publicado, Monteiro Lobato j á era im portante nos m eios intelectuais paulistas com o crítico de artes visuais, escrevendo regularm ente nos

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j ornais do estado de 1915 a 1919. Ele m esm o pintor, ainda que não fizesse das artes plásticas ofício, ilustra a prim eira edição de Urupês.

Tadeu Chiarelli, em livro definitivo para a com preensão da obra de Monteiro Lobato e suas propostas estéticas, afirm a que na São Paulo daquela época, “Lobato era o líder da crítica de arte, fazendo som bra a outros críticos tanto na qualidade de seus escritos quanto na influência que exercia no público leitor”.

É nesta condição que publica em O Estado de S. Paulo o artigo “A propósito de Anita Malfatti”, depois republicado em Ideias de Jeca Tatu com o título “Paranoia ou m istificação”. À crítica que faz à artista serão atribuídos efeitos im perdoáveis sobre o que é considerado retrocesso em sua obra posterior.

A partir desde episódio, Chiarelli desenvolve em Um jeca nos vernissages[2] duas afirm ações da m aior im portância. Um a é identificar os princípios da estética de Lobato, princípios estes que se estendem das artes visuais à sua literatura, na intenção de form alizar um program a naturalista-nacionalista para a arte brasileira.

Considerando Lobato o crítico de arte m ais singular surgido em São Paulo nas prim eiras décadas do século XX, Chiarelli aponta no rom ancista um a fidelidade à verdade com o base da estética naturalista. Afirm ando que para Lobato o m oderno em pintura era o naturalism o, e entre nós, especialm ente o de Alm eida Júnior e Wasth Rodrigues, explica:

O naturalism o nacionalista em artes visuais queria ser um a tentativa de superação do atraso e da dependência do país, nesta área, em relação às nações europeias.

A arte m oderna para Lobato era a arte naturalista, preocupada com a captação do am biente, um com entário pictórico do dia a dia.

A outra tese, igualm ente im portante, do estudioso de Monteiro Lobato é que as interpretações dem onizadoras que os prim eiros m odernistas fizeram das restrições de Lobato à pintura da Anita Malfatti, a desautorização de sua condição de crítico de arte e, finalm ente, o não reconhecim ento do papel do escritor na m odernização da arte no Brasil, vêm do que do desej o de form ular um a “História ideal do Modernism o”, pelos que estavam interessados em “construir um a história do Modernism o de m aneira a só evidenciar os seus aspectos positivos”.

Para avaliar m elhor o papel de um a estética naturalista nacionalista com o form a de olhar a sociedade daquele m om ento e, neste sentido, fazer literatura, nos basta ver o quanto está próxim a de tal proposta a prim eira fase da obra

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rom anesca de Oswald de Andrade com a trilogia Os condenados – A trilogia do exílio (que reúne os rom ances Alma, A estrela do absinto e Escada),[3] que se inicia em 1922, num a escritura com pletam ente diversa dos fragm entários rom ances que se seguirão. Em especial no prim eiro rom ance, Alma, Oswald está bem próxim o da proposta de Lobato.

É Oswald quem , em carta escrita vinte e cinco anos depois dos conflitos m odernistas, propõe a Monteiro Lobato: “Esqueçam os a estética e a Sem ana de Arte e estendam os as m ãos à sua oportuna e sagrada xenofobia”.

Na carta, identifica-se com o antigo com panheiro de garçonnière, cuj a ocupação está relatada no diário coletivo O perfeito cozinheiro das almas deste mundo,[4] pelo desej o de proxim idade da realidade com o im pulso de construção literária: “Tem os a rua, dura para trilhar, a m esa sem dosséis para escrever e a m issão dolorosa e sobranceira de dizer o que pensam os”. Mais ainda, naquele outro m om ento, põe-se ao lado do antigo am igo na afirm ação de um a form a de nacionalism o necessária.

Ele (o Jeca) durante trinta anos garantiu a unidade da pátria contra os tubarões loiros da prim eira Holanda, estendeu os tentáculos nacionais pelo trilho continental das bandeiras, lutou com o Bequim ão nas estradas m aranhenses, bateu-se m ais de um a vez nas ruas de Recife, om breou com os negros revoltados de Salvador, com os m ineradores paulistas, com os farroupilhas, trabalhou o sertão e a cidade... fez o Brasil.

É m unido de preceitos forj ados na vivência das artes visuais que o crítico se transform a em escritor em seu prim eiro livro, Urupês. Diante da m aior parte dos contos que com põem o livro, m as lendo tam bém narrativas posteriores, percebem os o quanto a experiência com as artes plásticas im pregna sua escrita.

Tom em os o prim eiro dos contos de Urupês, “Os faroleiros”, e terem os a im pressão de estar diante de um a das inúm eras “m arítim as” que os artistas pintavam na transição do século XIX para o XX: o m ar e um farol distante com sua luz.

Cessam os olhos de rever as im agens que desde a m eninice lhe são habituais. Para os ouvidos só há ali, dia e noite, ano e ano, o m arulho das ondas às chicotadas no enroscam ento da torre; e para a vista, a eterna m assa que ondula, ora torva, ora azul. Variantes únicas, as

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velas que passam de largo, donairosas com o graças, ou os transatlânticos penachados de fum o.

Ou, para outro exem plo, voltem os ao início do com ovente “Colcha de retalhos”:

Por estes dias de m arço a natureza acorda tarde.

Passa as m anhãs em brulhada num roupão de neblina e é com espreguiçam entos de m ulher vadia que despe os céus da cerração para o banho de sol.

A névoa esm aia o relevo da paisagem , desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.

Se chegarm os às descrições dos interiores das casas da roça, com seus potes, suas chitas, seus arrem edos de cozinha, estarem os tam bém bem próxim os de quadros com o “Cozinha caipira”, de Alm eida Júnior, quadro de 1895.

A identificação da literatura de Lobato com a pintura de Alm eida Júnior, que adm ira, se faz não apenas pela estética realista m as tam bém pela escolha de tem as. Gilda de Mello e Souza, em ensaio em que identifica os traços renovadores de artistas precursores do Modernism o, m ostra o quanto Alm eida Júnior renova assuntos e personagens, vinculando as figuras ao am biente e afirm a: “É com ele que ingressa pela prim eira vez na pintura o hom em brasileiro”.[5]

É curioso que a plasticidade da escrita de Monteiro Lobato tenha sido logo percebida por um autor que não se ocupava de coisas das artes visuais, o carioca Lim a Barreto.

Em crônica publicada na Revista Contemporânea de 22 de fevereiro de 1919, Lim a com enta o sucesso de Urupês, de que fala com entusiasm o, destacando as qualidades visuais da estética naturalista-nacionalista do paulista.

A sua roça, as suas paisagens não são coisas de m oça prendada, de m enina de boa fam ília, de pintura de discípulo ou discípula da Academ ia Julien: é da grande arte do nervoso, dos criadores, daqueles cuj as em oções e pensam entos saltam logo do cérebro para o papel ou para a tela. Ele com eça com o pincel, pensando em todas as regras do desenho e da pintura, m as bem depressa deixa um a e outra coisa, pega a espátula, os dados e tudo o que ele viu e sentiu sai

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de um só j ato, repentinam ente, rapidam ente.[6]

Monteiro Lobato teve um papel de fundam ental im portância na vida e obra de Lim a Barreto, não só com o estím ulo intelectual em m om entos em que o escritor desanim ava com o pouco sucesso de sua literatura, m as na divulgação e perm anência da obra do rom ancista. Foi pela decisão de Lobato editor que Lim a Barreto publicou um rom ance, pela prim eira vez, im presso no Brasil. Ao contrário do que acontecera com Triste fim de Policarpo Quaresma, im presso em Portugal às custas do próprio autor, Monteiro Lobato publica Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá em São Paulo. E, ainda que a edição saia “m atadinha”, com o diz Lobato, Lim a Barreto, pela prim eira vez é pago por seu trabalho com o rom ancista.[7]

CENAS DA POBREZA

Outra peculiaridade dessas narrativas curtas é que é principalm ente dos pobres, pertencentes a diversos segm entos da vida na República, que Monteiro Lobato fala.

No universo de sua ficção, com o no país dos anos 1920, não há dinheiro, há poucos em pregos conseguidos sem pre pela estrutura do favor, não há possibilidade de ascensão social. Ao escritor, tam bém fazendeiro e editor, não interessam os personagens elegantes da sociedade em ergente que se m oviam entre as m etrópoles europeias e nossas capitais, assim com o tam bém não vê o país com a lentes frequentes do ufanism o. Sua estética com o sua ética, se ocupa do que falta ao país e a seus habitantes e não com as ilusões da m odernidade, com suas baratinhas, m elindrosas e alm ofadinhas, viagens a Paris e outros luxos partilhados por poucos.

O país de Lobato é realm ente pobre. No cam po e nas cidades do interior, m as m esm o nas grandes cidades, m orre-se de fom e. A luta pela com ida é um a batalha diária. A sobrevivência é conseguida com trocas ou vendas dos obj etos m ais fundam entais, sej am m óveis ou livros de estudante. Aos ex-escravos resta o favor dos antigos donos em troca de trabalhos gratuitos. É isso ou m orrer de fom e. Os funcionários públicos dividem -se em duas categorias: os que assinam o ponto e os que trabalham . Os pequenos funcionários que exercem de fato suas funções encontram toda sorte de dificuldades para m orar e alim entar os filhos.

São pobres, m uito pobres, os que fazem a riqueza dos hom ens na República Velha e ocupam as páginas dos livros de contos de Lobato.

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A estética naturalista-nacionalista serve bem à vontade de pintar os quadros dessa realidade adversa e cam inha j unto à intenção de denunciar desigualdades. O locus de onde fala, a área agrária de São Paulo, reforça sua visão da pobreza. É no estado de São Paulo que se m ultiplicam as cidades decadentes, espaços abandonados pelas m udanças de rum o da produção agrícola, especialm ente o café. No cam po, tam bém fazendas aparecem abandonadas por proprietários quebrados.

No conto “Cidades m ortas”, do livro de m esm o nom e, falando da região do vale do Paraíba, constata: “Ali tudo foi, nada é. Não se conj ugam verbos no presente. Tudo é pretérito”.

Em “Café! Café!”, em que o proprietário que detesta a República, que culpa de toda calam idade, insiste na m onocultura do café, “A fazenda era um a desolação; a penúria extrem a; os agregados andavam esfom eados, as roupas em trapo, im undos, m as a trabalhar ainda”.

O inspetor agrícola do conto “O luzeiro agrícola” não sabia o que era pé de café, m as em outros tem pos fora um poeta. Naquela fase da vida de preocupações literárias, diante de sua “m agreza de Fagundes Varela”, diziam “Não é a poesia, não, coitado, é fom e...” até o dia em que m ete a tesoura às m elenas e às custas de pistolões busca em prego. “Cansado de ouvir estrelas em j ej um , de am ar a lua no céu sem possuir queij o na terra, acatou a voz do estôm ago e quebrou a lira – para viver.”

Em “Duas cavalgaduras”, conto de 1923 de O macaco se fez homem, o estudante am igo dos livros que vive no Rio de Janeiro, “na dolorosa m iséria de rapaz pobre, solto sem padrinhos na voragem carioca”, tam bém enfrenta a fom e:

O estôm ago, porém , é de Sancho. Não digere contem plações. Exige pão. E a fom e, um dia apresentou ao estudante o seu inexorável ultimatum: m ata-m e ou m ato-te.

Um só recurso lhe restava: reduzir a pão duro seus am ados livros.

Nem m esm o a em igrante alem ã do caso dos quatrocentos m il-réis narrado em “Dona Expedita” (de Negrinha) está livre das dificuldades em conseguir garantir a sobrevivência, no sonho de um em prego dom éstico por quatrocentos m il-réis, disputado com dona Expedita, senhora da pequena burguesia em pobrecida que anunciava em j ornal seus préstim os de “tom adeira de conta” ou dam a de com panhia, “graus levem ente superiores à crua profissão norm al de criada com um ”.

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É bem interessante o personagem recorrente do funcionário público. Longe da capital onde os empregados do governo frequentem ente gozam de situação m ais confortável ou, ao m enos, m ais segura, tam bém estes beiram a m iséria.

O estafeta de “Um suplício m oderno” (Urupês) é antes um a vítim a do que um beneficiado pelo Estado.

O governo, por m alévola indicação dum chefe político, hodierno sucedâneo do “fam iliar” do Santo Ofício, nom eia um cidadão estafeta do correio entre duas cidades convizinhas não ligadas por vias férrea.

Esfalfado pelo trabalho que exerce sem condições m ínim as que garantam seus deslocam entos, o estafeta com eça a definhar de canseira e fom e. Move-se ininterruptam ente entre os quilôm etros que separam rem etente e destinatário: “além das calam idades fisiológicas, econôm icas e sociais chovem -lhe em cim a as m etereológicas”.

O patrão-governo pressupõe que ele é de ferro e suas nádegas de aço (...) pressupõe ainda que os cem m il-réis do salário são um a paga real de lam ber as unhas. E basta um a falha, um atraso e o poderoso governista, entre um a viagem à Europa e outra, assina-lhe a dem issão “a bem do serviço público”.

Afinal, com o constata Venâncio, fiscal da “Câm ara Municipalzinha de Itaoca” que resolve tentar, inutilm ente, ser fazendeiro, “ser em pregado público de inferior categoria e por m al dos pecados dem issível: será isso program a que seduza alguém ?”.

Com vinte contos ganhos num bilhete prem iado, o fiscal com pra um sítio. O esforço pouco adianta quando os parentes invadem a fazendinha para poder com er à vontade. A partir daí é a falência e a volta para Itaoca antes de m orrerem de fom e. Diante da fragilidade dos recursos econôm icos, com o dinheiro que vem e vai, não há loteria que resolva a vida m esm o da baixa classe m édia, restrita, na Prim eira República, quase unicam ente aos funcionários públicos.

Na m esm a crônica citada em que Lim a Barreto elogia Urupês, nosso rom ancista e funcionário público, m axim alista e com bativo em suas crônicas, falando de Problema vital, livro de ideias de 1918, em que Lobato vê o hom em

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rural com o um doente, vítim a do descaso do governo em relação ao saneam ento básico, cobra do escritor paulista proposta m ais radical diante situação dos que dependem a econom ia agrária nos anos 1920.

Onde está o rem édio, Monteiro Lobato? Creio que é procurar m eios e m odos de fazer desaparecer a “fazenda”.

Precisam os com bater o regim e capitalista na agricultura e latifúndio, dividir a propriedade agrícola, dar a propriedade da terra ao que cava a terra e planta e não ao doutor que vive na “Casa Grande” ou no Rio ou em São Paulo. Já é tem po de fazerm os isto e é isto que eu cham aria o “Problem a vital”.[8]

Escritos em m om ento de especiais dificuldades econôm icas vividas pelos hom ens do cam po, é nos dois últim os contos de Urupês, “Velha praga”, de 1914 e “Urupês”, do m esm o ano, publicado inicialm ente em brochura de quarenta páginas, que surge o personagem que tom ará form as diversas na obra de Lobato, alavancando a venda de seus livros: o Jeca Tatu.

Em “Velha praga”, a praga do cam po, as queim adas, é com parada à praga da guerra. E sintetiza com am argor: “Infelizm ente, no Brasil subtrai-se; som ar ninguém som a”, e o caboclo é “um a quantidade negativa”. Apresentado, naquele prim eiro m om ento, com o parasita da terra, o caboclo é: “espécie de hom em baldio, sem inôm ade, inadaptável à civilização, m as que vive à beira dela na penum bra das zonas fronteiriças”. Refratário aos m ovim entos do progresso, vive “encoscorado num a rotina de pedra, recua para não adaptar-se”.

Em “Urupês”, o m esm o Jeca com sua lom beira, preocupado em “esprem er todas as consequências da lei do m enor esforço”, surpreendentem ente, levanta-se de sua posição habitual, de cócoras em frente ao fogo para “quentar”, pitando sua palhinha, e, de tem pos em tem pos, e vai votar e vota no Governo. Não tem sequer a noção do país em que vive, “o sentim ento de pátria lhe é desconhecido”, m as obedece ao chefe que guarda seu “diplom a” de eleitor e quando é chegado o m om ento vota no “hom em que m anda em nós tudo”.

É sobretudo a denúncia da subm issão do Jeca aos interesses do Governo que em recom pensa o despreza, j unto à convicção de que a falta de saneam ento básico é a causa de sua “lom beira”, que irá transform ar o Jeca Tatu em personagem sím bolo da identidade nacional que Monteiro Lobato estava interessado em construir. Em Ideias de Jeca Tatu, de 1919, reunião de trinta e cinco artigos publicados em j ornais, Monteiro Lobato m uda sua visão desse

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protótipo de brasileiro. Em carta a seu correspondente constante, Godofredo Rangel, em 1917, Lobato escreve: “Virei a casaca. Estou convencido de que Jeca Tatu é a única coisa que presta neste país”.[9]

Quando Rui Barbosa, então candidato à presidência, cita Urupês e o Jeca em conferência feita no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, o destino do livro está definitivam ente traçado. As vendas disparam , em m enos de um ano três edições são vendidas e Lobato, j á editor, prepara um a terceira de sete m il exem plares.

Com o costum a acontecer, no Brasil, para um autor, vender é o m aior de seus pecados. Oswald de Andrade, em sua língua ferina, anota em O perfeito cozinheiro das almas deste mundo:

Na salinha da Revista m etralhada de estalidos de Rem ington, Lobato tira talões de recibo e grita para o Caiubi – 10 Urupês, 30 Sacis, 40 Mulas-sem -cabeça. Nacionalism o e com ércio. O país que lê.[10]

OS NEGROS: RACISMO OU DEFESA?

Não sem razão, “Negrinha”, conto de 1920, faz parte da seleção dos Cem melhores contos brasileiros do século, organizada por Ítalo Moriconi.

Em texto com ovente, sensível e contundente, a ternura com que a m enina negra ― “boa para dar uns cocres” ― é criada pela ficção de Lobato, provoca um daqueles m om entos de leitura de que j am ais esquecem os. Com ovente com o os órfãos de Charles Dickens, Oliver Twist e outros, a personagem negrinha garante à narrativa lugar de destaque sem pre que se falar em conto entre nós.

Negrinha era um a pobre órfã de sete anos. Preta? Não, fusca, m ulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.

Nasceu na senzala, de m ãe escrava, viveu pelos cantos escuros da cozinha “sobre velha esteira e panos im undos”, escondida da patroa que não gostava de crianças. Dona Inácia, m estre em j udiar de crianças, vinha dos tem pos não distantes da escravidão, fora dona de escravos e “nunca se afizera ao regim e novo”, essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha a polícia!, com o dizia.

A função da filha de escrava na casa era servir com o rem édio para suas irritações e ím petos de sadism o: “Treze de Maio tirou-lhe das m ãos o azorrague, m as não lhe tirou da alm a a gana”.

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Não é, porém , dos sofrim entos físicos a que é subm etida que Negrinha m orre, m as sim da consciência da desigualdade de sua condição. Ao descobrir que as crianças brancas podiam brincar, que as m eninas tinham bonecas, percebe subitam ente que não é um a coisa, delira e m orre, “na esteirinha rota, abandonada de todos, com o um gato sem dono”.

O m om ento do conto em que, diante de um a boneca, a m enina sem nom e se descobre criança com o as outras é o libelo m ais contundente que poderia ser escrito naquele m om ento contra as desigualdades raciais.

Negrinha, coisa hum ana, percebeu nesse dia da boneca que tinha alm a.(...) Sentiu-se elevada à altura de ente hum ano. Cessara de ser coisa – e doravante ser-lhe-ia im possível viver a vida de coisa. Se não era coisa!

Basta a leitura de Negrinha para com preender toda a tolice que envolve as críticas feitas a m om entos de sua literatura em que reproduz o linguaj ar racista de seus contem porâneos. As falas evidentem ente irônicas da boneca Em ília, por exem plo, são o eco da sociedade racista, classicista, escravocrata que atravessa o século XX e chega até hoj e convencida de espaços com o as universidades não se devem abrir aos pobres, aos diferentes e vêm na ainda tím ida política de cotas um a heresia e nas condenações penais por racism o um excesso.

Não é a fragilidade de Negrinha a única que com ove o escritor, outros personagens reiteram a atenção que o escritor dava à situação dos negros nos anos 1920.

Se as expressões datadas contam inam o início do conto “O j ardineiro Tim óteo” com o “o bom Tim óteo, um preto branco por dentro”, o personagem do negro, artista nato, capaz de um a sensibilidade im possível aos dom inantes, vai sendo construída de form a quase lírica: “Verdadeiro poeta, o bom Tim óteo”.

O artista que há naquele hom em sim ples se revelava pelas flores que cultivava e colhia, nos arranj os que preparava, nos canteiros que fazia, com flores caipiras, para ele as m ais bonitas. Só a j ovem filha dos fazendeiros com preendia seu gosto, m as a venda da fazenda traz a m odernidade. E os novos donos são “gente da m oda, am igos do luxo e das novidades”. Aqueles j ovens am antes da “arte m oderníssim a”, estão dispostos a pôr “aquele m acaco a arrasar tudo” e cham am : “Ó tição, vem cá!”.

O senso artístico do j ardineiro negro contrasta, no conj unto dos contos, com a rudeza dos donos de terra, com a em páfia dos j ovens bacharéis, com a tolice das m eninas enfeitadas. Quando Tim óteo se recusa a destruir os j ardins que cultivara com suas flores brasileiras, não lhe resta escolha, deixa a fazenda, o que

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significa ir de encontro à m orte. Para ele não há saída, não há alternativa, talvez haj a um dia para gerações que virão e poderão vingá-lo.

Lá agoniza ao pé da porteira. Lá m orre. E lá o encontrará a m anhã enrij ecido pelo relento, de borco na gram a orvalhada, com a m ão estendida para a fazenda num derradeiro gesto de am eaça:

— Deixa estar!...

Em “Os negros”, quem conduz a narrativa folhetinesca do caso relatado é Pai Adão, “um negro velho; de cabelos ruços”. O velho, cheio de sabedoria, sabe bem o quanto sua liberdade vale, m esm o na situação de absoluta pobreza que vive. Em diálogo ao lado do com panheiro Jonas, o narrador conta:

O excelente negro sorriu-se, com a gengiva à m ostra, e disse: — Pois é apeá. Casa de pobre, m as de bom coração. Quanto a ‘de com er’ com idinha de negro velho, j á sabe...

— Angu? — chasqueou Jonas. O negro riu-se:

— Já foi o tem po do angu com ‘bacalhau’... — E não deixou saudades, heim , tio Bento? — Saudades não deixou, não, eh!eh!

— Para vocês, pretos, porque entre os brancos m uitos há que choram aquele tem po de vacas gordas. Não fosse o Treze de Maio e não estava agora eu aqui a arrebentar as unhas neste raio de látego, que encruou com a chuva e não desata. Era servicinho de paj em .

O folhetim vai se desdobrar no relato de verdadeira história de terror relatando o infortúnio de um j ovem im igrante português que se apaixona pela filha do fazendeiro. Pobre, subalterno, “era nada”. Correspondido, terá o inocente rom ance facilitado pela m ucam a confidente da j ovem Isabel. Entre o pobre e a escrava desenvolve-se a cum plicidade que pode unir os excluídos. De Liduína, a m ulata, diz o portuguesinho que fala pela voz de Jonas nos delírios em que incorpora o personagem do passado: “Pobre criatura! Tinha alm a irm ã da m inha e foi ao com preender sua alm a que pela prim eira vez alcancei o horror da escravidão”.

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vai igualar pobre e escravo, com apoio dos que assistem e partilham da violência. O rapaz é em paredado vivo e a escrava de dezenove anos é assassinada a chicotadas por “carrascos que retalharam seu corpinho de criança com os rabos do bacalhau”.

É dura a intervenção do narrador:

A sociedade, as leis, os governos, as religiões, os j uízes, as m orais, tudo que é força social organizada presta m ão forte à Estupidez Onipotente.

Monteiro Lobato, crítico de arte, escritor, editor arroj ado, intelectual envolvido com as questões fundam entais do país, nacionalista e adm irador da doutrina fordistas am ericana, defensor da nacionalização do petróleo, criador da literatura infantil entre nós, atravessa os tem pos com o expressão da situação dicotôm ica entre a inovação e o conservadorism o que continua constituindo o nosso país.

Indispensável ler seus contos para com preender nosso país e conhecer a verdadeira história do Modernism o no Brasil.

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URUPÊS

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Os faroleiros

— NAVIO?

Dava azo à dúvida um a luz verm elha a piscar na escuridão da noite. Escuridão, não direi de breu, que não é o breu de sobej o escuro para referir um negror daqueles. De cego de nascença, vá.

Céu e m ar fundia-os um só carvão, sem fresta nem pique além da pinta verm elha que, súbito, se fez am arela.

— Lá m udou de cor. É farol.

E, com o era farol, a conversa recaiu sobre faróis. Eduardo interpelou-m e de chofre sobre a ideia que eu deles fazia.

— A ideia de toda gente, ora essa!

— Quer dizer, um a ideia falsa. “Toda gente” é um m onstro com orelhas de asno e m iolos de m acaco, incapaz dum a ideia sensata sobre o que quer que sej a. Tens na cabeça, respeito a farol, um a ideia de rua, recebida do vulgo e nunca recunhada na m atriz das im pressões pessoais. Erro?

— Confesso-m e capaz de abrir a boca a um auditório de casaca, se m e desse na telha discursar sobre o tem a; m as não afianço que o farol descrito venha a parecer-se com algum ...

— Pois eu te asseguro, sem fazer pouco no teu engenho, que tal conferência, ouvida por um faroleiro, poria o hom em de olho parvo, a dizer com o o outro: “Se percebo, sebo!”.

— Acredito. Mas perceberia m elhor um a tua? — retorqui abespinhado. — É de crer. Já vivi um a inesquecível tem porada no farol dos Albatrozes e falaria de cadeira.

— Viveste em farol?!... — exclam ei com espanto.

— E lá fui com parsa num a tragédia noturna de arrepiar os cabelos. O escuro desta noite evoca-m e o trem endo dram a...

Estávam os am bos de bruços na am urada do Orion, em hora propícia ao esbagoar dum dram alhão inédito. Esporeado na curiosidade, provoquei-o.

— Vam os ao caso, que estes negrum es clam am por espectros que o povoem . É calam idade à Shakespeare ou à Ibsen?

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— ???

— ... a Vida, m eu caro, a grande m estra dos Shakespeares m aiores e m enores.

Eduardo com eçou do princípio.

— O farol é um rom ance. Um rom ance iniciado na Antiguidade com as fogueiras arm adas nos prom ontórios para norteio das em barcações de rem o e continuado séculos afora até nossos possantes holofotes elétricos. Enquanto subsistir no m undo o hom em , o rom ance “Farol” não conhecerá epílogo. Monótono com o as calm arias, em brecham -se nele, a espaços, capítulos de tragédia e loucura — pungentes gravuras de Doré quebrando a m onotonia de um diário de bordo. O caso dos Albatrozes foi um deles. Gerebita m eteu-se no farol aos vinte e três anos. É raro isso.

— Quem é Gerebita?

— Sabe-lo-ás em tem po. É raro isso porque no geral só se m etem nas torres hom ens m aduros, quarentões batidos pela vida e descrentes das suas ilusões. Deixar a terra na quadra verdolenga dos vinte e seis anos é apavorante. A terra!... Nós m al dam os tento da nossa profunda adaptação ao m eio terreno. A sua fixidez, o variegado de aspectos, o bulício hum ano, a caridade, os cam pos, a m ulher, as árvores... Conhecem os faroleiros m elhor do que ninguém o valor dessas teias. Enlurados num bioco de pedra, tudo quanto para nós é sensação de todos os instantes neles é saudade ou desej o. Cessam os ouvidos de ouvir a m úsica da terra, rum orej o de arvoredo, vozes am igas, barulho de rua, as m il e um a notas dum a polifonia que nós sabem os que o é, e encantadora, unicam ente quando a segregação prolongada nos ensina a lhe conhecer o valor. Cessam os olhos de rever as im agens que desde a m eninice lhes são habituais. Para os ouvidos só há ali, dia e noite, ano e ano, o m arulho das ondas às chicotadas no enrocam ento da torre; e para a vista, a eterna m assa que ondula, ora torva, ora azul. Variantes únicas, as velas que passam de largo, donairosas com o garças, ou os transatlânticos penachados de fum o. Figura a vida de um hom em arrancado à querência e assim posto, qual triste galé, dentro dum a torre de pedra, grudada com o craca a um ilhéu. Terá poesia de longe; de perto é alucinante.

— Mas Gerebita...

— Um a leitura de Kipling despertara-m e a curiosidade de conhecer um farol por dentro.

— O Perturbador do tráfego...

— Parabéns pela argúcia. Foi j ustam ente a história do Dowse o ponto inicial do m eu dram a. Esse desej o incubou-se-m e cá dentro à espera da ocasião para brotar.

Certo dia fui espairecer ao cais — e lá estava, de m ãos às costas, a seguir o voo dos j oão-grandes e a notar a gam a dos verdes luzentes que a som bra dos barcos ondeia na água represada dos portos, quando um a lancha abicou, e vi

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descer um hom em de feições duras e pele encorreada. Ao passar por um m agote de catraeiros um deles chasqueou em tom insinuativo:

— Gerebita, com o vai Maria Rita?

O desem barcadiço rosnou um palavrão calibre, e seguiu cam inho, de sobrecenho carregado. Interessou-m e aquele tipo.

— Quem é? — indaguei.

— Pois quem há de ser senão o faroleiro dos Albatrozes? Não vê a lancha? De fato, a lancha era do farol. A velha ideia deu-m e cotoveladas: é hora! Fui-lhe no encalço.

— Senhor Gerebita!...

O hom em entreparou, com o adm irado de ouvir-se nom ear por boca desconhecida. Em parelhei-m e com ele e, enquanto andávam os, fui-lhe expondo os m eus proj etos.

— Não pode ser — respondeu —; o regulam ento proíbe sapos na torre. Só com ordem superior.

Ora, eu tenho corrido m undo, sei que m arosca é essa de ordens superiores. Meti a m ão no bolso e cochichei-lhe o argum ento decisivo. O faroleiro relutou uns instantes, m as corrom peu-se m ais depressa do que esperei. Guardou o dinheiro e disse:

— Procure Dunga, patrão da Gaivota Branca, terceiro arm azém . Diga-lhe que j á falou com igo. De quinta-feira em diante. E bico, vej a lá!

Prom eti-lho caladíssim o, e tornei ao cais à cata de Dunga. Que sim — foi a resposta do catraeiro, ilhéu palavroso, logo que expus o negócio —, j á fizera isso certa vez a “outro m aluco” e sabia prender a língua para não atazanar a vida aos am igos. E com o m e inform asse do faroleiro:

— É Gerebita, de apelido ganho no Purus, onde serviu com o grum ete. Ao depois se m eteu na lanterna, por am or de am ores, o alarve, com o se faltassem elas por aí, e bem catitas. Mulheres! A m im é que não m e em pecem , não, as songuinhas. O dem o que as tolha que eu...

E foi pelas m ulheres além , a dar de rij o, com razões nem m elhores nem piores que as de Schopenhauer.

No dia aprazado, antem anhã, a Gaivota largou de rum o ao farol. Saltei num rude atracadouro de difícil abordagem e encontrei o faroleiro ocupado em polir os m etais da lanterna. Recebeu-m e de boa som bra, largando o esfregão para fazer as honras da casa. Exam inei tudo, dos alicerces ao lanternim , e à hora do alm oço j á entendia de farol m ais que um a enciclopédia. Gerebita deu trela à língua e falou do ofício com m elancólica psicologia. Tam bém contou sua vida desde m enino, a grum etagem no Purus, sua paixão pelo m ar e por fim a entrada para o farol aos vinte e três anos de idade.

— Por que assim tão m oço?

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acrescentou após um a pausa, m udando de tom : — Pois a vida é cá isto que vê. Boazinha, hein? Entretanto, boa ou m á, tem os, os faroleiros, um orgulho: sem nós, essa bicharada de ferro que passeia nas águas fum ando seus dois, seus três charutos...

— Lá vem um ! — interrom peu-se, fisgando com a luneta um a fum aça rem ota. — Bandeira alem ã... duas cham inés... rum o sul... Há de ser um “Cap” — o Trafalgar, talvez. Sej a lá que diabo for, vá com Deus. Mas, com o ia dizendo, sem os faroleiros a m anobrarem a “óptica”, esses com edores de carvão haviam de rachar a toinha aí pelos bancos de areia. Basta cair a cerração e j á se põem tontos, a urrar de m edo pela boca das sereias, que é m esm o um cortar a alm a à gente. Porque então nem farol nem caracol. É a cegueira. Navegam com a Morte no lem e. Fora disso, salva-os o foguinho lá de cim a. Pouco antes de m inha entrada para aqui houve desgraça. Um cargueiro da Brem en rachou o bico ali no Capelão... Quem é o Capelão? Ah! ah! ah! O Capelão... Pois o Capelão é o raio da terceira pedra a boreste. São três deste lado, a Menina, que é a prim eira, a Curutuba, que é a do m eio. A crim inosa é o Capelão, que reponta m ais ao largo e só m ostra a coroa nas grandes vazantes. Cá a bom bordo ainda há duas, a Virgem e a Maldita, onde bateu o cargueiro Rotterdam.

— E aquela lisinha, acolá?

— Um a coitada que nem nom e tem . É m ansa, está m uito perto da terra, não faz m al a navio. Ali m ora um anequim ,[11] bichanca de tam anho do diabo, que gosta de virar canoas. Mas, aqui para nós, m oço, isso é em brom ação. Peixe m ora em todo o m ar, não tem toca com o bicho de terra. É abusão de pescador. Quando há m ar, não se enxerga nada por ali; m as se a água é serena e vem vindo a vazante, vai aparecendo um lom bo de pedra lisa com j eito de peixe. Passa um pescador atolam bado, vê aquilo de longe. “É anequim ! É anequim !” e toca a safar, com o m edão na alm a. Se acontece em bravecer a água, e dá tem poral, e a canoa vira: “Que é de Fulano?”. Tá, tá, tá, foi o anequim ! Toda gente pega, feito m ulher velha. “Foi o anequim do farol!” Ora aí está com o são as coisas. Há m uito anequim e tintureira por aqui. Onde é m ar sem cação? Mas dizer que um tal m ora aqui ou ali, isso é em brom a.

E na sua pinturesca linguagem de m arítim o, que às vezes se tornava prodigiosam ente técnica, narrou-m e toda a história daquelas paragens m alditas. Falou de com o, segundo a tradição, se foram batizando os arrecifes; falou dos crim es de cada um ; das hecatom bes periódicas de aves noturnas que, cegadas pela luz, batem de peito contra os vidros da lanterna, j uncando o chão de corpinhos latej antes; das m edonhas torm entas nas quais o farol estrem ece com o a tiritar de pavor. De que não falou Gerebita naquele inesquecível dia?

— E o aj udante? Tem -no cá? — perguntei.

O rosto do m eu faroleiro m udou de expressão. Vi de relance que eram inim igos.

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— É aquele estupor que lá pesca — disse apontando da j anela ao vulto im óvel, acocorado num penedo. — Está a apanhar garoupinhas. É Cabrea. Mau com panheiro, m au hom em ...

Entreparou. Percebi que m ascava um a confidência difícil. Mas a confidência denunciou-se apenas. Gerebita sacudiu a cabeça e m urm urou com o de si para si:

— Está cá de pouco, e é o único hom em no m undo que não podia cá estar. Já reclam ei do capitão do porto, j á m ostrei o perigo. Mas, qual!...

Estranha criatura, o hom em ! Insulados do m undo naquela frágua, am bos náufragos da vida, o ódio os separava... Não faltavam no farol, entretanto, acom odações para as fam ílias dos seus guardiães. Por que não as tinham ali? Seria um bocado de m undo a lenir as agruras do em paredam ento. Interpelei-o; Gerebita retrucou-m e de m odo enviesado.

— Fam ília não tenho, isto é, tenho e não tenho. Tenho, porque sou casado, e não tenho porque... Histórias! Estas coisas de fam ílias é bom que fiquem com a gente.

Notei de novo que a pique dum a revelação m ascava o segredo por desconfiança ou pudor. Suas feições endureceram . Som bras m ás anuviaram -lhe a fisionom ia. E m ais torvo ainda m e pareceu quando Cabrea entrou sobraçando um balaio de pescado. Tipo de m á cara, passou em direitura à cozinha sem nos volver um olhar. Mal se sum iu, Gerebita exclam ou: “Raio do diabo!”, assentando num caixote expiatório um m urro de fender pinho. Depois:

— O m undo é tão grande, há tanta gente no m undo, e cai-m e aqui j ustam ente o único aj udante que eu não podia ter...

— Por quê?

— Por quê?... Porque... é um louco.

Entre o prim eiro e o segundo “porque” notei transição radical. Dúbio o prim eiro, o segundo afigurou-se-m e resoluto, com o ilum inado pelo clarão dum a ideia brotada no m om ento.

Desde esse dia nunca m ais o faroleiro abandonou o tem a da loucura do outro. Dem onstrava-m e de m il m aneiras.

— E aqui onde até os sãos perdem a tram ontana — argum entava ele — um j á assim rachado de telha aos três por dois rebenta com o bom ba no fogo. Eu j ogo que ele não vara o m ês. Não vê seus m odos?

Metade por sugestão, m etade por observação leviana, razoável m e pareceu a profecia; e com o sem cessar Gerebita m alhasse na m esm a tecla, acabei por convencer-m e de que o casm urro aj udante era um fadado ao hospício, com pouco tem po de equilíbrio nos m iolos.

Um dia Gerebita abordou a questão nestes term os:

— Quero que o senhor m e resolva um caso. Estão dois hom ens num a casa; de repente um enlouquece e rom pe, com o cação esfom eado, para cim a do

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outro. Deve o outro deixar-se m atar com o carneiro ou tem o direito de atolar a faca na garganta do bicho?

Era por dem ais clara a consulta. Respondi com o um rábula positivo: — Se Cabrea enlouquecesse e o agredisse, m atá-lo seria um direito natural de defesa — não havendo socorro à m ão. Matar para não m orrer não é crim e — m as isto só em últim o caso, você com preende.

— Com preendo, com preendo — respondeu-m e distraidam ente, com o quem lá segue os volteios dum a ideia secreta; e depois de longa pausa: — Sej a o que Deus quiser — m urm urou entre si, suspirando e recaindo em cism as.

Deixei-m e ficar à j anela a ver cair a noite. Nada m ais triste do que as ave-m arias no erave-m o. A treva espessava as águas e absorvia no céu os derradeiros palores da luz. No poente, um leque aluarado enrubescia nas varetas, com dedadas sangrentas de nuvens a barrá-lo de listrões horizontais.

Triste...

A ardósia do m ar; as prim eiras estrelinhas entreluzindo a m edo; o m arulho na pedra, tchá, tchá, com passado, eterno... A alm a confrangeu-se-m e de angústia. Vi-m e náufrago, retido para sem pre num navio de pedra, grudado com o desconform e craca na pedranceira da ilhota. E pela prim eira vez na vida senti profundas saudades dessa coisa sórdida, a m ais reles de quantas inventou a civilização — o “café”, com o seu tum ulto, a sua poeira, o seu bafio a tabaco e a sua freguesia habitual de vagabundíssim os “agentes de negócios”...

Correram dias. Minto. No vazio daquele dessaborido viver no erm o o tem po não corria — arrastava-se com a lentidão da lesm a por sobre chão liso e sem fim . Gerebita tornara-se enfadonho. Não m ais narrava pinturescos incidentes da sua vida de m aruj o. Aferrado à ideia fixa da loucura de Cabrea, só cuidava de dem onstrar-m e os seus progressos. Fora desse tem a sinistro, sua ocupação era seguir de olhos os navios que repontavam ao largo, até vê-los sum irem -se na curva do horizonte.

Velas, poucas alvej avam , tirante barquinhas de pescadores. Mas um a que surgisse lá nos levava os olhos e a im aginação. Com o se casa bem com o m ar o barco de vela! E que sórdido baratão craquento é ao pé dele o navio a vapor!

Escum as, corvetas, pequeninos cutters, fragatas, lugres, brigues, iates... O que lá vai passado de leveza e graça!... Substituem -nas, às garças leves, os feios escaravelhos de ferro e piche; a elas, que viviam de brisas, os negros com edores de carvão, bicharocos que m ugem roncos de touro enrouquecido.

Progresso am igo, tu és côm odo, és delicioso, m as feio... Que fizeste da coisa linda que é a vela enfunada? Do barco à antiga, onde ressoavam canções de m aruj a, e todo se enleava de cordam e, e trazia gaj eiro na gávea, e lendas de serpentes m arinhas na boca dos m arinheiros, e a Nossa Senhora dos Navegantes em todas as alm as, e o m edo das sereias em todas as im aginações?

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hotéis flutuantes com garçons em vez de “lobos do m ar”, incaracterísticos, cosm opolitas, sem donaire, sem capitães de suíças pitorescos no falar com o seiscentos m ilhões de caravelas. O fum o da hulha suj ou a aquarela m aravilhosa que desde Hanon e Ulisses vinha o veleiro pintando sobre a tela oceânica...

— Se paras o caso dos loucos e te m etes por intermezzos líricos para uso de m eninas olheirudas, vou dorm ir. Volta ao farol, rom anticão de m á m orte.

— Eu devia castigar o teu prosaísm o sonegando-te o epílogo do m eu dram a, ó filho do “café” e do carvão!

— Conta, conta...

Certa tarde Gerebita cham ou m inha atenção para o agravam ento da loucura de Cabrea, e aduziu várias provas concludentes.

— Queira Deus não sej a hoj e!... — Tens m edo?

— Medo? Eu? De Cabrea?

Queria que visses a estranha expressão de ferocidade que lhe endureceu o rosto!...

A conversa parou aí. Gerebita chupava cachim badas nervosas, fechado de sobrecenho com o quem rum ina um a ideia fixa. Deixou-m e, e logo em seguida subiu. Com o anoitecesse, recolhi-m e pouco depois e deitei-m e. Dorm i e sonhei. Sonhei um sonho guinholesco, agitadíssim o, com lutas, facadas, o diabo. Lem bro-m e de que, agredido por ubro-m facínora, desfechei contra ele cinco tiros de revólver; as balas, porém , grudaram -se à parede e deram de ressoar dum m odo que m e despertou. Mas acordado continuei a ouvir o m esm o barulho, vindo de cim a, da lanterna.

Pressinto a catástrofe esperada. Salto da cam a e aguço o ouvido: barulho de luta. Corro à escada, galgo-a aos três degraus e no topo esbarro com a porta fechada. Tento abri-la: não cede. Escuto: era de fato luta. Rolavam corpos pelo chão, fazendo retinir os vidros da lanterna, e ouvia-se um resfolego surdo, entrem eado de em bates contra os m óveis. Trevas absolutas. Nenhum a réstia de luz coava para a escada.

Minha situação era esquerda. Ficar ali, inútil, quando portas adentro dois hom ens se entrem atavam ? Perm anecia eu nessa dubiedade, quando choque violento escancarou-m e a porta. Um clarão de sol chofrou-m e os olhos. Senti nas pernas um tranco — e rodei escada abaixo de cam bulha com dois corpos engalfinhados. Ergui-m e, tonto, e vi em rebolo no chão os dois faroleiros.

Atirei-m e à luta em auxílio de Gerebita.

— Dois contra um ! — gem eu Cabrea, sufocado. — É covardia! Pela prim eira vez lhe ouvi a voz — e hoj e noto que nada nela denunciava loucura. No m om ento pensei diversam ente, se é que pensei algum a coisa.

Gerebita, com grande assom bro m eu, tam bém m e repeliu. — Não! Não! Eu só!

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Nisto, um pegão de nortada, varrendo a torre, trancou a porta do lanternim com estrondo. Envolveu-nos de novo a escuridão.

E com eça aqui o horror... Os rugidos que ouvi, os arrancos e sacões form idáveis da luta nas trevas, a m inha ansiedade... Pavorosos m inutos de vida que não desej o renovados.

Perdi a noção do tem po. Durou m uito aquilo? Não sei dizer. Só sei que a tantas ouvi escapar-se ao peito de Gerebita um urro de dor, e logo em seguida um a im precação — “Desgraçado!” — cuj as derradeiras sílabas m orreram num trincar de dentes atassalhando carnes. Cabrea grugulej ou uns roncos que se casaram com o arquej ar do peito de Gerebita, e a luta esm oreceu.

Sem palavras na boca, cegado pela escuridão, eu só ouvia, fora, os uivos da nortada, e ali, aquele arquej o do vencedor exausto caído à beira do vencido. Com os olhos da im aginação eu via esse quadro, que com os da cara enxergava tanto com o se os tivera envoltos em veludo negro.

Não te conto os porm enores do epílogo. Obtive luz e o que vi não te conto. Im possível pintar o hediondo aspecto de Cabrea com a carótida estraçalhada a dente, caído num lago de sangue. Ao seu lado Gerebita, com a cara e o peito verm elhos, a m ão sangrenta, estatelava-se no chão, sem sentidos. Os m eus transes diante daqueles corpos m artirizados, àquela hora da noite — daquela terrível noite negra com o esta e sacudida por um vento do inferno!...

Na m anhã seguinte Gerebita pousou-m e a m ão sobre o om bro e disse: — O m ar não leva daqui os corpos à praia e o m undo não precisa saber de que m orreu Cabrea. Caiu n’água — m orte de m arinheiro, e o m oço é testem unha de que m atei para não m orrer. Foi defesa. Agora vai j urar-m e que isto ficará para sem pre entre nós.

Jurei-o lealm ente, tocando de leve a m ão m utilada. E ele, num acesso de infinito desalento, quedou-se im óvel, a olhar para o chão, m urm urando insistentem ente:

— Eu bem avisei. Não m e acreditaram . Agora está aí, está aí, está aí... Nesse m esm o dia veio buscar-m e Dunga. Mal a Gaivota largou, narrei-lhe a m orte do faroleiro, rom anceando-a: Cabrea, louco, a despenhar-se torre abaixo e a sum ir-se para sem pre no seio das ondas.

Dunga, assom brado, susteve no ar os rem os. — Pois m orreu? E louco?

— Está claro!

— Claro que lhe parece, que a m im ... — Conhecia-o?

— Não conhecia outra coisa. Desde que furtou Maria Rita... — Que Maria Rita?

— Pois Maria Rita, m ulher do Gerebita, então não sabe? Que ele seduziu, hom essa.

(55)

Abri a m inha m aior boca e arregalei o que pude os olhos. — Com o sabe disso?

— É boa! Sei porque sei, com o sei que aquela gaivota que ali vai é um a e que este m ar é m ar. Maria Rita era um a m orena de truz, perigosa com o o dem o. O tolo do Gerebita derreou-se de am ores pela bisca e lá casou. E vai ela, a songuinha, m al o hom em saía no Purus, m etia em casa Cabrea. E nesse j ogo viveram até que um dia fugiram j untos para outras terras. O pobre Gerebita se não acabou de paixão é que era teso. Mas entrou para o farol, o que é tam bém um m odo de m orrer pro m undo. Pois bem . A bola vira, o tem po corre, e vai, senão quando, quem m ete o Governo no farol em lugar do defunto Gavriel? Cabrea! Cabrea que tam bém andava descrente da vida porque Rita lhe fugira com terceiro. Coisas do m undo. Diz-m e agora vossoria que o hom em enlouqueceu, e rolou do penedo, e lá o rói o peixe. Está bem . Antes assim , que do contrário era em ponta de faca que aquilo acabaria...

Calei-m e. Há situações na vida que as ideias em baralham de tal form a que é de bom conselho deixarm o-las se assentarem por si. Eis com o...

— ... o m eu grande am igo Eduardo foi em pulhado por um assassino vulgar! — Perdão. O fato de se não m anej arem floretes não tira àquele pugilato o caráter de duelo.

— “Cavaleria rusticana”, então? — E por que não?

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O engraçado arrependido

1917

FRANCISCO TE IXE IRA DE SOUZ A PONT E S, galho bastardo duns Souza Pontes de trinta m il arrobas afazendados no Barreiro, só aos trinta e dois anos de idade entrou a pensar seriam ente na vida.

Com o fosse de natural engraçado, vivera até ali à custa da veia côm ica, e com ela am anhara casa, m esa, vestuário e o m ais. Sua m oeda corrente eram m icagens, pilhérias, anedotas de inglês e tudo quanto bole com os m úsculos faciais do anim al que ri, vulgo hom em , repuxando risos ou m atracolej ando gargalhadas.

Sabia de cor a Enciclopédia do riso e da galhofa de Fuão Pechincha, o autor m ais dessaborido que Deus botou no m undo; m as era tal a arte do Pontes, que as sensaborias m ais relam bórias ganhavam em sua boca um chiste raro, de fazer os ouvintes babarem de puro gozo.

Para arrem edar gente ou bicho, era um gênio. A gam a inteira das vozes do cachorro, da acuação aos caititus ao uivo à lua, e o m ais, rosnado ou latido, assum ia em sua boca perfetibilidade capaz de iludir aos próprios cães — e à lua.

Tam bém grunhia de porco, cacarej ava de galinha, coaxava de untanha, ralhava de m ulher velha, choram ingava de fedelho, silenciava de deputado governista ou perorava de patriota em sacada. Que vozeio de bípede ou quadrúpede não copiava ele às m aravilhas, quando tinha pela frente um auditório predisposto?

Descia outras vezes à pré-história. Com o fosse de algum as luzes, quando os ouvintes não eram pecos ele reconstituía os vozeirões paleontológicos dos bichos extintos — roncos de m astodontes ou berros de m am utes ao avistarem -se com peludos Homos repim pados em fetos arbóreos — coisa m uito de rir e divulgar a ciência do senhor Barros Barreto.

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de m ansinho e — nhoc! — arrem essava um bote de m unheca à barriga da perna m ais a j eito. Era de ver o pinote assustado e o “Passa!” nervoso do incauto, e logo em seguida as risadas sem fim dos outros, e a do Pontes, o qual gargalhava dum m odo todo seu, estrepitoso e m usical — m úsica de Offenbach.

Pontes ria parodiando o riso norm al e espontâneo da criatura hum ana, única que ri além da raposa bêbeda; e estacava de golpe, sem transição, caindo num sério de irresistível côm ico.

Em todos os gestos e m odos, com o no andar, no ler, no com er, nas ações m ais triviais da vida, o raio do hom em diferençava-se dos dem ais no sentido de am olecá-los prodigiosam ente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se não torcesse em risos a hum anidade. Bastava sua presença.

Mal o avistavam , j á as caras refloriam ; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam -se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora!, eram cascalhadas, eram rinchavelhos, eram guinchos, engasgos, fungações e asfixias trem endas.

— É da pele, este Pontes! — Basta, hom em , você m e afoga!

E se o pândego se inocentava, com cara palerm a: — Mas que estou fazendo? Se nem abri a boca...

— Quá, quá, quá — a com panhia inteira, desm andibulada, chorava no espasm o suprem o dos risos incoercíveis.

Com o correr do tem po não foi preciso m ais que seu nom e para deflagrar a hilaridade. Pronunciando alguém a palavra “Pontes”, acendia-se logo o estopim das fungadelas pelas quais o hom em se alteia acim a da anim alidade que não ri.

Assim viveu Pontes até a idade de Cristo, num a parábola risonha, a rir e fazer rir, sem pensar em nada sério — vida de filante que dá m om os em troca de j antares e paga continhas m iúdas com pilhérias de truz.

Um negociante caloteado disse-lhe um dia entre frouxos de riso babado: — Você ao m enos diverte, não é com o o m aj or Carapuça que caloteia de carranca.

Aquele recibo sem selo m ortificou seu tanto ao nosso pândego; m as a conta subia a quinze m il-réis — valia bem a pelotada. Entretanto, lá ficou a lem brança dela espetada com o alfinete na alm ofadinha do am or-próprio. Depois vieram outros e outros, estes fincados de leve, aqueles até a cabeça.

Tudo cansa. Farto de tal vida, entrou o hilarião a sonhar as delícias de ser tom ado a sério, falar e ser ouvido sem repuxo de m úsculos faciais, gesticular sem prom over a quebra da com postura hum ana, atravessar um a rua sem pressentir na peugada um coro de “Lá vem o Pontes!” em tom de quem se esprem e na contenção do riso ou se aj eita para um a barriga das boas.

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