• Nenhum resultado encontrado

O pensamento autoritário brasileiro desenvolvido entre os anos de 1920 e 1940 – excetuando-se aí as idéias católicas e fascistas como vimos anteriormente - se caracterizou com base em seu apelo à ciência enquanto fonte legitimadora de suas idéias. A maioria das propostas autoritárias vigentes no início do século XX se apresentava como um discurso prioritariamente científico e não unicamente político. Logo, este último pólo do pensamento autoritário brasileiro foi denominado cientificista uma vez que procurou fundamentar suas proposições em bases científicas1.

Segundo esta corrente, o Brasil do início do século XX era marcado pelo distanciamento das ideologias em voga com a índole de seu povo. A política praticada no país decorria da importação de modelos políticos-institucionais da Europa, inadequados à realidade nacional; principal e quase que única causa das condições de atraso e crise vivenciadas pelo país. Em face deste diagnóstico, tais pensadores advogavam a adoção de uma nova postura política por parte do governo que fosse mais realista, mais condizente com as condições e tradições do povo brasileiro. Pleiteavam a elaboração de um pensamento político social centrado na análise objetiva da realidade brasileira capaz de fundar uma nova ordem. Caracterizavam, assim, a ciência, principalmente a sociologia, como veículos centrais para a compreensão objetiva da sociedade e conseqüente desenvolvimento do país2. 1 Beired, 1999, p. 23. 2 Idem, pp. 80-85.

Segundo Ricardo Silva, os pensadores autoritários utilizavam a sociologia como um caminho para oferecer um novo instrumental de ação ao governo e para sua conseqüente legitimação3. A sociologia não era apenas a ciência do social, mas também a ciência da ação estatal. Os métodos sociológicos eram aqui identificados como portadores do poder e, ao mesmo tempo, da função de revelarem as leis fundamentais que regiam a sociedade brasileira, de modo a conduzir à instauração de uma política objetiva. Assim sendo, para o pólo autoritário científico o conhecimento sociológico não se limitava ao universo das ciências, tendo também uma função prática: definir os rumos políticos do país. Somente através de uma análise sociológica da sociedade brasileira se instauraria um governo afeito a sua natureza e, portanto, legítimo.

Essa idéia fez com que o apelo e a realização de uma investigação sociológica constituíssem o ponto chave das obras deste pólo do pensamento autoritário. Conforme Silva:

A sociologia e a ciência política passaram a ocupar o status de saber indispensável aos jovens intelectuais que almejavam reconhecimento e afirmação. (...) Além de propiciar o instrumental analítico para que os governos orientem sua ação, a Sociologia também auxilia na função legitimadora das políticas estatais, pois aquilo que os governantes fazem pode ser justificado/ racionalizado em termos de uma “necessidade” sociológica inevitável, e não mero arbítrio destes governantes. Na verdade, quanto mais completa e perfeita fosse a aplicação do método sociológico na derivação das políticas estatais, tanto menor seria o espaço de arbítrio de quem governa. (Silva, 2004, p.142).

Logo, esse último pólo da direita nacionalista brasileira teve na ciência a chave de legitimação de suas proposições de Estado. Foram denominados autoritários cientificistas uma vez que sua retórica alimentou-se da sociologia da época4.

Ademais, é necessário ressaltar que o cientificismo deste pólo foi possível na medida em que, nesse período, a sociologia tinha por objeto central a questão da organização estatal do Brasil. Os estudos sociológicos então realizados comungavam das mesmas preocupações e objetivos do debate político-intelectual travado no início do século

3

Silva, 2004, p. 141.

4

Referimo-nos aqui à sociologia positiva, sobretudo ao positivismo de Comte e a seu lema “Ordem e Progresso” amplamente difundido no Brasil. Segundo Comte, a solidariedade e a continuidade são as condições fundamentais à existência e ao desenvolvimento da humanidade. Responde, assim, às demandas e conflitos sociais exaltando a necessidade de coesão, harmonia natural e bem-estar coletivo, bem como caracteriza o progresso como a constante especialização dentro de um todo orgânico desenvolvido. Logo, para Comte, o desenvolvimento deveria aperfeiçoar os elementos da ordem e não de sua destruí-los; propósito ao qual esses ideólogos autoritários claramente se alinhavam. (Ribeiro, 1982).

XX. Isto possibilitou tanto a incorporação de explicações já elaboradas pela sociologia ao discurso autoritário, como também permitiu o simples uso da imagem desta ciência à legitimação de suas propostas. Foi, portanto, com base na correspondência da temática da sociologia com a desses pensadores que seu apelo à ciência pôde-se estruturar5.

O autoritarismo científico, em linhas gerais, defendia a instauração de uma nova ordem política que se caracterizava pela: 1) preeminência do Estado sobre a sociedade civil; 2) preeminência do Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário; e 3) preeminência das elites técnicas sobre as elites políticas6. Como os demais pólos da direita nacionalista, também objetivava a hipertrofia do poder do Estado, com a diferença de que apelava à ciência social na tarefa de sua justificação. Ou melhor, os pensadores autoritários científicos assim se definiram e se diferenciaram do restante da direita por caracterizarem e, conseqüentemente, legitimarem o Estado autoritário enquanto resultado lógico e único das tradições e condições da sociedade brasileira.

Mais a frente veremos mais detalhadamente como se estruturou este cientificismo junto ao pensamento autoritário brasileiro, assim como as justificativas apresentadas à introdução do Estado autoritário. Contudo, faz-se necessário antes destacar que embora essa divisão da direita nacionalista (católicos, integralistas e cientificistas) que utilizamos seja amplamente aceita entre diversos pesquisadores do pensamento autoritário brasileiro, as interpretações dela resultantes não são únicas. Ainda que os estudiosos de pensamento social brasileiro partilhem da mesma classificação da direita dos anos 30, eles não comungam do mesmo ponto de vista a respeito dos ideais propostos por esses grupos, principalmente no que se refere às análises do pólo cientificista. Diversas são as nomeações conferidas a este grupo, resultado dos distintos julgamentos realizados sobre quais seriam os objetivos orientadores de suas elaborações.

Segundo Ricardo Silva, a literatura que estudou o pensamento autoritário brasileiro pode ser agrupada em quatro modelos de interpretação “(...) que buscam mostrar a especificidade da ideologia autoritária, alternativamente, como: uma ideologia de classe; um autoritarismo desmobilizador; um autoritarismo instrumental; uma ideologia de Estado” (Silva, 2004, p. 29). Esta classificação aponta para dois aspectos centrais de diferenciação desta literatura: 1) discordam em relação a quais seriam os objetivos

5

Idem, p. 140.

6

implícitos à defesa do Estado autoritário nos pensadores estudados, e 2) divergem quanto ao grau de autoritarismo proposto.

Frente a esta constatação, faz-se necessário empreender um rápido estudo das características de cada um desses modelos de interpretação do pólo científico, com vistas a apontar com o qual estamos aqui trabalhando.