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4. O CINECLUBE E A CIDADE III: A FASE DA ACI E AS REDES DO

4.1 O cineclubismo na Casa do Jornalista

O Clube de Cinema de Fortaleza chegou ao início dos anos 1960 com uma legitimidade consolidada no meio intelectual em decorrência de intensa atividade de projeção cinematográfica, a realização dos primeiros cursos de iniciação cinematográfica63, mostras, festivais, ciclos, avant-première, a exibição de filmes inéditos na cidade e, pela presença de críticos de cinema oriundos de seu quadro social nos jornais. A constância das atividades, que sofrera raras interrupções, o transformara num espaço de intensa sociabilidade intelectual para o consumo cinematográfico. Em cerca de dez anos de atividades o CCF havia realizado 198 sessões, exibindo cerca de 250 títulos diferentes, entre longas e curtas-metragens.

As interrupções ocorriam pela falta de filme disponível para as projeções ou por questões climáticas, como os períodos chuvosos. No IBEU “„as instalações ficavam ao ar- livre, em espaço bem disposto, nos fundos do prédio‟. Local a céu aberto, sob a luz das estrelas. Na noite de chuva era impossível realizar sessões.” (LEAL, 2011, p. 291).

No final do ano de 1960, o CCF transfere a sede, com biblioteca e secretaria, e passa a realizar suas projeções no amplo e moderno auditório do 4º andar da recém- inaugurada Casa do Jornalista, edifício sede da Associação Cearense de Imprensa. Auditório com 340 poltronas e contando com ventilação natural. Desembarcava ali com uma bagagem de mais de 500 livros especializados em cinema, além de coleções de revistas e outros periódicos, e dois projetores Bell & Howell de 16 mm doados pelo Uniter States Information (USIS). Oferecida com “hospedagem free”, contou desde o início com a simpatia do meio jornalístico da cidade. (LEAL, 2011, p. 292). A permanência do CCF na Casa do Jornalista, com suas exibições domingueiras para sócios e convidados, palestras, cursos e mostras se estendeu até o final da década de 1960.

Inaugurada em agosto de 1959, a Casa do Jornalista passou a ser “parte significativa do perfil urbano do Centro de Fortaleza.” Erguida na esquina entre as ruas Floriano Peixoto e Perboyre e Silva, “olhando em diagonal para a Praça do Ferreira, o prédio

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Uma das principais estratégias para a difusão do projeto de cultura cinematográfica do CCF foram os cursos de iniciação cinematográfica para associados e para o público em geral. Alguns exemplos são o I Curso de

Iniciação Cinematográfica, de 1958; o Seminário de Iniciação Cinematográfica, de 1959, e; o Curso para Dirigentes Cineclubistas, de 1964.

compõe um trecho da cidade que foi palco de sem número de acontecimentos culturais, sociais, históricos e econômicos”. Ainda de acordo com Ângela Barros Leal (2011, p. 217): “Por fora, a Casa do Jornalista é um marco da memória fortalezense, tão dada a lacunas e esquecimentos. No seu projeto preserva o estilo de uma época em que as edificações com sete andares eram chamadas de „arranha-céu‟”.

Segundo Leal (2011, p. 209), o jornalista Antônio Girão Barroso, que ocupava o cargo de Diretor de Assuntos Cultuais da ACI, convenceu o restante da diretoria presidida por Perboyre e Silva, que o novo auditório fosse destinado, entre outras atividades, para a exibição de projeções cinematográficas sob a responsabilidade do experimentado CCF.

Havia uma relação muito próxima entre o cineclubismo e o campo do jornalismo, especialmente com a ACI, pois vários cineclubistas exerciam a prática jornalística. Seja na crítica cinematográfica ou noutras sessões dos jornais. Além do influente sócio Girão Barroso, Darcy Costa era associado da ACI desde o ano de 1953, quando escrevia crítica de cinema no jornal O Estado. No período em que foi chefe de redação do jornal Gazeta de Notícias, Darcy foi eleito para o Conselho Superior da Diretoria da ACI nas gestões de 1969, 1971, 1973 e 1975, gestões presididas por Antônio Carlos Campos de Oliveira, o mesmo presidente durante a década em que o CCF funcionou na ACI.

Instalado na ACI, o CCF preservaria sua independência como cineclube, ainda que muitos membros estivessem associados nas duas entidades. Situação que levou Leal (2011, p. 282) fazer importante reflexão:

Difícil será dizer se havia mais jornalista-cinéfilos ou mais cinéfilos praticante do jornalismo, já que os mesmo nomes que assinavam matérias jornalísticas entre as décadas de 1950 e 1970 pertenciam àqueles dirigiam o primeiro Clube de Cinema cearense, o segundo desse tipo criado no Brasil.

No mesmo momento em que reforçava ligações com o campo do jornalismo, os cineclubismo passaram progressivamente a despertar interesse pelo cinema brasileiro. Da segunda metade da década de 1950 em diante, o movimento cineclubista se aproximaria do cinema brasileiro, criando espaços alternativos de exibição com grande poder de repercussão para os cineastas ligados a um modelo de produção mais independente. Um dos casos emblemáticos foi a relação do diretor Nelson Pereira dos Santos com o cineclubismo. O lançamento nacional de Rio, 40 graus (1955), seu filme de estreia, foi realizado pelo Clube de Cinema de Porto Alegre, em janeiro de 1956. O filme de 1955, já havia sido liberado pela

Censura Federal e estava com distribuição planificada pela Columbia Pictures, quando, surpreendentemente, foi interditado pelo chefe de polícia do Rio de Janeiro. O CCPA engajou-se em luta pela liberação do filme, permitida por liminar da justiça estadual. O empenho dos cineclubistas e o amplo debate do filme fizera com que o diretor acompanhasse pessoalmente o lançamento. Começava ali uma “grande amizade” do cineasta com os cineclubistas gaúchos e brasileiros. (LUNARDELLI, 2000, p. 157).

Em outubro de 1959, Nelson Pereira dos Santos, que era ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), esteve em Fortaleza acompanhado do diretor de produção Frank Justo Acher. O diretor viajava pelo Nordeste a procura de locações para a filmagem das cenas exteriores do filme Vidas Secas64, baseado no romance de Graciliano Ramos.

O CCF que não dispunha de recursos para pagar passagens, hospedagem e outros custos para realizar palestras para os cineclubistas e outros interessados em cinema, aproveitava a ocasião para convidar o diretor a palestrar para os cineclubistas e outros interessados em cinema, no auditório da Associação Cearense de Imprensa (ACI). Este episódio marca duplo movimento do CCF: aproxima-se da entidade jornalística que lhe cedera o auditório, e de importante personagem da renovação do cinema brasileiro.

Entusiasmava aos críticos e cineclubistas a possibilidade de gravações de um filme do diretor “por demais conhecido daqueles que acompanham o cinema nacional sério e bem intencionado” no Ceará. Levando o CCF convidar “os sócios, bem como intelectuais da terra, jornalistas e entusiastas em geral a palestra de Nelson Pereira dos Santos na Casa do Jornalista (ACI).” Com o título de “Rumos do Cinema Nacional”, após o que “o diretor patrício levará a efeito um pequeno debate sobre aspectos vários do Cinema.” (PARA..., 1959, p. 7). A apresentação do palestrante ficou a cargo de Darcy Costa.

A cobertura de Miranda Leão mantinha o entusiasmo com o diálogo que o cineasta abria aos críticos e cineclubistas da cidade. “Demonstrando sólidos conhecimentos da situação atual do cinema verde-amarelo, Nelson Pereira dos Santos dissertou também sobre técnica cinematográfica, contando, inclusive, como se iniciou no metier.” Falou sobre as

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Grande clássico do cinema brasileiro, Vidas Secas foi filmado no sertão de Alagoas cerca de dois anos depois, em 1962. O “tour” nordestino de Nelson Pereira dos Santos em 1959-1960 resultou em Mandacaru Vermelho (1960), filmado em Juazeiro da Bahia. Conforme Maria do Socorro Carvalho (1999, p. 212), a imprensa de Salvador afirmava que com o filme Mandacaru Vermelho teria início o que denominaram “Operação Cinema no Nordeste”. O projeto de Vidas Secas teve que ser substituído porque, prestes a começarem as filmagens, “formaram-se chuvas no céu. De repente chuvas torrenciais começaram a cair”. Modificando a paisagem de seca para “pradarias verdejantes”.

dificuldades técnicas na gravação de Rio, quarenta graus, seu único filme exibido em Fortaleza até aquele momento. Os cineclubistas aproveitaram a ocasião e negociaram a “vinda de Rio, Zona Norte [1958] e O Grande Momento [Roberto Santos, 1958, produzido por Nelson P. dos Santos]. Este celuloide, diga-se de passagem, poderá ser exibido ainda este ano no CCF, segundo promessa formal feita por NPS [sic]”.

Após a palestra, as cerca de quarenta pessoas presentes iniciaram os debates, “tendo participado, além de outros, o professor Darcy Costa, Antônio Girão Barroso, João Costa e Aluísio Costa”, este último um dos atores de Rio, 40 graus. Miranda Leão (1959e, p.7) resumiu o conteúdo do encontro entre o cineasta e os cineclubistas da seguinte maneira:

Em suma, acha Nelson Pereira dos Santos que o nosso cinema, apesar de todas as dificuldades por que tem passado, deve sobretudo refletir nossa cultura, nossos problemas, e que deveríamos buscar na vasta literatura brasileira o manancial inesgotável para a feitura de bons filmes. [...] Finalmente, malgrado tudo isso, crê que devemos fazer Cinema brasileiro agora, ou não faremos mais nunca.

De acordo com Francisco Inácio de Almeida (2015), na época um jovem cineclubista, estudante de Direito e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o CCF participava do debate político da sociedade através do cinema, das escolhas dos filmes e da criação de espaços de discussão:

O CCF foi formando uma geração de pessoas pela discussão. Primeiro pela seleção de filmes que o Darcy Costa fazia. Outra coisa, o Darcy era muito aberto e sem nenhum preconceito. As pessoas propunham e ele acolhia com a maior boa vontade. Muitas vezes eram filmes de gente mais de esquerda e o Darcy não tinha o menor problema, era uma coisa muito tranquila, excepcional. Outra coisa importante do CCF era o reconhecimento que ele tinha no Brasil inteiro. O meu querido amigo Nelson Pereira dos Santos, quando veio à procura de locais para filmar o filme "Vidas secas", procurou a gente no CCF. O Darcy arranjou um transporte para ele ir no interior- veja como o Darcy era um figuraça- para ver o local.

Comparativamente, se no caso de Fortaleza não surgiu uma geração de diretores de cinema, como por exemplo, na Bahia da época do Clube de Cinema da Bahia, liderado por Walter da Silveira e da qual salientou-se a figura de Glauber Rocha, o movimento cineclubista cumpriria papel importante função de atualizar a cidade no campo do cinema e da cultura de uma maneira geral.

Em meados dos anos 1950, surgiu uma crítica sobre o cinema brasileiro, diferente dos críticos das décadas de 1930 e 1940 que “nem se quer consideravam a existência de tal cinema”. Questionava-se a dependência do mercado brasileiro aos filmes importados, a

submissão dos cineastas à linguagem do cinema hollywoodiano, temas que posteriormente serão encampadas pelo Cinema Novo (SIMONARD, 2006, p. 27-28).

De acordo com Heloísa Starling (Apud RIBEIRO, 1997, p. 21) “os primeiro anos da década de sessenta correspondem ao que talvez tenha sido a mais intensa fermentação ideológica e política da história de um país que então se politizava – ou se „conscientizava‟, para usarmos a palavra mágica da época.” Ampliando-se entre especialmente entre os intelectuais uma vontade ativa de participação entre os diversos setores da sociedade e “um sopro generoso de mudanças agitava o país”. Neste contexto de maior participação dos intelectuais no campo político e, de um interesse especial pelo cinema no país, o CCF que até então mostrara pouco interesse pelo cinema brasileiro, exibindo em dez anos e cerca de duzentas sessões apenas dois filmes de longa-metragem nacionais, no final da década entusiasma-se pelos desenvolvimentos do “moderno cinema brasileiro”.

A retrospectiva do ano cinematográfico do ano de 1959, publicada no jornal

Unitário, apesar de lamentar o predomínio das chanchadas, destacava que vieram para

exibição na cidade, ainda que com pouca propaganda e pouco tempo em cartaz, filmes como

Ravina (1958), de Rubem Biáfora e Rebelião em Vila Rica (1958), de Renato Santos Pereira,

“filmes bem aceitáveis”. Miranda Leão e o GEC do CCF65 consideraram Estranho encontro

(1958), de Walther Hugo Khoury, “ponto alto do nosso cinema”. O filme de Khoury foi o primeiro filme brasileiro escolhido um dos 12 melhores na votação anual. (LEÃO, 1960, p. 8).

De uma perspectiva global, a aproximação do cinema brasileiro foi um movimento compartilhado pelo cineclubismo no Brasil, estando relacionado à organização de entidades federativas, como Centro de Cineclubes de São Paulo, por exemplo. Para o crítico de cinema e militante da Cinemateca Brasileira, Jean-Claude Bernardet (2007, p. 35), durante a década de 1960, processava-se a “Revolução Industrial”, atingindo profundamente todos os aspectos da vida no país, em especial os cineclubes, as universidades e a crítica de cinema. Fenômeno que se relaciona aos “surtos de cinema”, os filmes baianos e cariocas, que formariam o Cinema Novo. Para o crítico, grande parte do público que tinha o olhar voltado para a cultura estrangeira, tomava “consciência” do cinema brasileiro, num rápido “movimento de desalienação”, e os cineclubes rapidamente transformaram-se em lugares privilegiados de exibição e debate.

65 Na eleição dos melhores filmes de 1959 do GEC votaram Darcy Costa, Pádua Ramos, Raimundo Farias, Inácio

Conforme Rose Clair Matela (2008, p. 54), o cineclubismo no Brasil esteve ligado à trajetória do cinema brasileiro de diferentes formas, como nos estudos da cinematografia brasileira e estrangeira, nas discussões sobre a necessidade de formar público para e até mesmo na crítica permanente às formas de produção cinematográfica, além de ter sido um espaço permanente de formação de novos cineastas.