• Nenhum resultado encontrado

LEGENDA 6: O homem que lutou para mudar o Brasil O filme que todo o Brasil espera

4. AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DA OBRA CINEMATOGRÁFICA

4.1 O cinema brasileiro da pós-ditadura

Lamarca foi lançado em 1994 e O que é isso, companheiro? em 1998. Os dois filmes situam-se em um momento particular da trajetória trilhada pelo cinema produzido no país, que ficou comumente conhecido como período da Retomada. Este termo não deve ser entendido sob o ponto de vista da recuperação de uma determinada proposta estética, mas sim da reconstrução desta atividade que se encontrava intensamente prejudicada pelo momento histórico e cultural que o país vivia no início da década de 1990249.

Refiro-me ao fato de que o país encontrava-se recém-saído de vinte e um anos de ditadura militar, passara pela conturbada transição para a democracia (com a morte do presidente Tancredo Neves, eleito ainda por via indireta, em 1985), com a crise econômica do governo Sarney, e com a eleição direta do presidente Fernando Collor, em 1989, o qual, em 1992, sob acusação de corrupção, foi destituído em processo de impeachment. Antes de sua saída, porém, Collor tomou medidas que atingiram de forma quase letal os rumos do cinema brasileiro, naquele momento: em 1990, o presidente rebaixou o Ministério da Cultura à categoria de Secretaria e extinguiu todos os órgãos de promoção e apoio à produção cultural, como o Conselho Nacional de Cinema (CONCINE), a Fundação Nacional de Cinema (FNC) e a Empresa Brasileira de Filmes (EMBRAFILME), esta última a principal fomentadora da atividade cinematográfica no Brasil, desde sua criação, em 1969. Além disso, a reforma implementada por Collor não previa nenhum outro órgão substitutivo para promover ou incentivar as atividades cinematográficas brasileiras. Ricardo Caldas e Tânia Montoro

249

O termo “Retomada”, referindo-se ao cinema brasileiro da década de 1990, é muito questionado por alguns historiadores, críticos e cineastas. A esse respeito, ver depoimento do cineasta Carlos Reichenbach, in CAETANO, Daniel (Org.). Cinema brasileiro 1995 – 2005. Ensaios sobre uma década. Rio de Janeiro: Azougue, 2005, p. 277-289. Sem deixar de considerar a validade de algumas dessas críticas, optei por utilizar o termo na presente pesquisa, primeiramente por se referir a um período onde realmente houve um processo de reestruturação do cinema no Brasil, após um momento de grave crise no setor e a quase total estagnação da sua atividade. Em segundo lugar, porque o termo oferece a possibilidade de situar o leitor em um momento específico da história do cinema brasileiro (a década de 1990), facilitando a narrativa do presente texto.

avaliam da seguinte forma a situação que se instaurou após as medidas tomadas pelo governo Collor:

O cinema nacional ficou sem diretrizes claras para atuar, sem projeto. Com as dificuldades de praxe em relação à infra-estrutura de realização, quase se rompe o frágil relacionamento entre público e espaço de exibição, tanto nas telas de cinema como na televisão. As produções foram interrompidas sem prazo ou perspectiva de volta, filmes prontos pararam de ser distribuídos. Na atmosfera de incerteza do país, a produção cai. […] O cinema brasileiro foi- se apagando ainda mais do imaginário da população.250

Com esta característica de “terra devastada”, como se referiu o ator Paulo Betti ao analisar o momento de elaboração do filme Lamarca251, a produção cinematográfica brasileira ficou entregue às perspectivas das políticas neoliberais como ocorreu, aliás, em todas as outras áreas do governo Collor. Para se ter uma visão mais clara sobre os efeitos das medidas desse governo sobre o cinema brasileiro, basta observar que em 1992 foram produzidos apenas três filmes no país, enquanto o período de 1970 a 1980 contou com uma produção média de noventa filmes por ano252.

A denominada Retomada começou a configurar-se, portanto, alguns anos após a saída do presidente Collor. Apesar da manutenção de práticas neoliberais nos governos subseqüentes, a partir do final do ano de 1992,o governo brasileiro já demonstrava algum interesse em novamente incentivar o cinema brasileiro, o que pode ser constatado com a criação do Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro253, com a Lei n.º 8.313, de 23 de dezembro de 1991 (conhecida como Lei Rouanet e que só passou a ser efetivamente utilizada a partir de 1993) e com a criação da Lei do Audiovisual (Lei n.º 8.695, de 20 de julho de 1993)254. A referida lei previa benefícios de isenção fiscal para o capital privado investido no cinema brasileiro. Com isso, já a partir de 1994 e, principalmente, a partir de 1995, a produção

250

CALDAS, Ricardo Wahrendorff e MONTORO, Tânia. A Evolução do Cinema Brasileiro no Século XX. Brasília: Casa das Musas, 2006, p. 155.

251

Depoimento de Paulo Betti, contido nos Extras do DVD Lamarca.

252

O primeiro dado foi extraído de: ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo. Um balanço crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 26 e o segundo de: CALDAS, Ricardo; MONTORO, Tânia, op. cit.., p. 145.

253

Entre 1993 e 1994, o Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro contemplou um total de 90 projetos (entre curta, média e longa metragem). NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 13.

254

Anteriormente, havia sido criada a Lei nº. 8401/92, de regulação da atividade audiovisual, permitindo o apoio de empresas e pessoas físicas com o benefício do abatimento de imposto. A lei seguinte foi um aperfeiçoamento desta. Ver: CALDAS, Ricardo; MONTORO, Tânia, op. cit., p. 156.

nacional começa sua curva ascendente que caracteriza a Retomada255. Praticamente todo o cinema da década de 1990 foi financiado por meio da Lei do Audiovisual.

O filme Carlota Joaquina, de Carla Camurati, lançado em 1995, é considerado por muitos críticos de cinema como o “marco zero” da Retomada, por ter ultrapassado a marca de um milhão de espectadores. Certamente que esta classificação deve ser flexibilizada, não se restringindo a um filme e a um ano em particular, visto que os frutos da Lei do Audiovisual já se faziam sentir nos dois anos anteriores ao filme de Carla Camurati. Neste sentido, Lamarca, lançado em 1994, encontra-se inserido neste contexto do cinema brasileiro ao qual se convencionou chamar de Retomada.

É importante ressaltar ainda que a referida Lei do Audiovisual foi objeto de muita polêmica entre cineastas e governo brasileiro. Seria, segundo muitos cineastas e críticos de cinema, uma lei típica “do nosso capitalismo selvagem”, visto que coloca nas mãos dos diretores de marketing das empresas financiadoras a decisão do que deve e do que não deve ser produzido cinematograficamente no país256. Não foi por outra razão que esta lei recebeu o crítico apelido de “Lei do Mecenato”257. Luiz Zanin Oricchio, em sua análise sobre o período, procura relativizar estas críticas. Por um lado, concorda que

não se pode ignorar que o cinema que renasce é tributário de uma determinada forma de produção, baseada em renúncia fiscal e controlada, ao menos em parte, pelos departamentos de marketing das empresas investidoras.258

Por outro lado, afirma que a Lei não pode ser considerada “uma camisa-de-força”, pois muitos filmes do período foram feitos sem concessões mercadológicas e ressaltando as características “de autoria” de seus diretores. Ressalta, ainda, que o fato de um filme ter sido produzido de acordo com “razões explícitas de mercado”, não significa que este mesmo filme não represente uma forma se ver o país259. E, seguindo o raciocínio do referido autor, diria que, para uma análise historiográfica de um filme, a existência de “razões de mercado” não o

255

“A produção alcançou de 20 a 30 títulos por ano; entre 1995 e 2002 mais de 200 longas foram realizados e lançados e os espectadores saltaram de 400 mil para 25 milhões.” Idem, Ibidem, p. 157.

256

O cineasta Sylvio Back, por exemplo, afirma que, em função da Lei do Audiovisual, o cinema da Retomada “é um cinema asséptico, um cinema pudico, descarnado politicamente, um cinema sem assinatura, sem autoria... Simplesmente porque a grande maioria dos patrocinadores ‘vigia’ os roteiros, impõe cortes, veladamente provoca a autocensura nos diretores-produtores, incentiva o cinema deemoções baratas ou, o que acontece na maioria das vezes, a empresa ignora o projeto para não se comprometer.”. NAGIB, Lucia. O cinema da retomada... p. 86.

257

Ver: CALDAS, Ricardo; MONTORO, Tânia. A Evolução do Cinema Brasileiro no Século XX..., p. 243.

258

ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo..., p. 29.

259

invalida como objeto de análise, antes nos auxilia a compreender as representações produzidas pelo filme em questão.

Em 1996, mudanças na legislação (especialmente a Lei n.º 9.323, de 5 de novembro de 1996) elevam eleva de 1 para 3% o limite de dedução do imposto para empresas que investissem no cinema brasileiro260. Sintomaticamente, entre 1996 e 1999, assiste-se ao auge da Retomada, com uma produção cada vez mais ampla, e com o início de uma expansão (ainda que tímida) dos filmes brasileiros no mercado estrangeiro. Basta constatar que nos anos de 1996, 1998 e1999 o país teve um de seus filmes indicados para concorrer à categoria de melhor filme estrangeiro na premiação do Oscar, nos Estados Unidos261. Ao mesmo tempo, o público interno volta progressivamente a se interessar pela exibição de filmes brasileiros. Em 1998, mais de 3,6 milhões de pessoas assistiram a filmes produzidos no país (50% mais do que no ano anterior), passando para 7,2 milhões de espectadores, no ano 2000262. É neste momento de progressiva valorização do cinema brasileiro que se insere o filme de Bruno Barreto, O que é isso, companheiro?.

Em 2001, em um contexto político diferenciado, surge a Agência Nacional do Cinema (ANCINE), através da Medida Provisória nº. 2.228263. A ANCINE passa a buscar uma relação mais estreita entre o Estado e os produtores e realizadores do cinema brasileiro, criando uma série de órgãos de incentivo a esta atividade264, para sanar o “vácuo” deixado pelo governo Collor.

Como se pode perceber, o início do século XXI representa para o cinema brasileiro uma nova fase que poderia ser concebida, ao mesmo tempo, como um período de consolidação e de fim da Retomada, na medida em que apresenta algumas características específicas e inovadoras, apesar de evidentes traços de continuidade com o período anterior265. Destaca-se, como característica marcante do cinema brasileiro atual, a

260

Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9323.htm>. Acesso em: out. 2006.

261

Em 1996, com o filme O Quatrilho (Fábio Barreto); em 1998, com o filme O que é isso, companheiro? (Bruno Barreto) e, em 1999, com o filme Central do Brasil (Walter Salles).

262

Dados extraídos de MOISÉS, José Álvaro. Uma nova política para o cinema brasileiro, in Cinema Brasileiro. Cadernos do Nosso Tempo, v. 4, Fundo Nacional de Cultura, Rio de Janeiro, 2001, p. 42.

263

Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2228-1.htm>. Acesso em: out. 2006.

264

Além da ANCINE, sob esta mesma Medida Provisória, são criados o Conselho Superior de Cinema e o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (PRODECINE) e é autorizada a criação de Fundos de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (FUNCINES).

265

Esta periodização que atribui uma “nova fase” para o cinema nacional é sugerida por Luiz Zanin Oricchio que ainda aponta o filme Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) como o “divisor de águas” entre a Retomada (anos de 1990) e a atualidade. ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo...

multiplicidade de representações, incluindo aí tanto a diversidade de temas e gêneros quanto de opções estéticas, como confirmam os estudiosos Ricardo Caldas e Tânia Montoro:

O público, assim como a sociedade contemporânea, fragmentou-se entre gostos e tendências múltiplas […] e tentou corresponder à multiplicidade de visões nas idéias abordadas, nas linhas de projetos, nas linguagens e estéticas escolhidas, nos seus filmes propriamente ditos266.

Sob o ponto de vista exposto pelos autores, procurei analisar as condições de produção dos filmes Cabra-Cega, Zuzu Angel e O ano em que meus pais saíram de férias, levando em conta esta crescente diversidade no interior da atividade cinematográfica enquanto resultado de um reflexo da conjuntura cultural em que vivemos atualmente. Da mesma forma, Lamarca e O que é isso, companheiro?, serão avaliados à luz do período da Retomada.

O objetivo desse panorama sintético sobre o contexto dos períodos de produção e lançamentos dos filmes aqui analisados foi colocar em relevo o modo pelo qual as transformações na conjuntura nacional – principalmente na área política – ocasionaram mudanças significativas no cenário cultural do país e, conseqüentemente, na nossa produção cinematográfica. Depreende-se daí que não há como uma análise histórica de um filme não levar em consideração todo o universo social que o rodeia, pois um filme não existe dissociado de seu contexto de produção.