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2. CINEMA E A TRÍPLICE MÍMESIS

2.2 Cinema e elementos da identidade narrativa

Apresentaremos o conceito de identidade narrativa como estratégia de utilizar o

conceito de ação narrativa e, assim, tratar a relação do autor com o espectador como instância produtora de sentidos das obras fílmicas desta pesquisa. Será válido mostrar como se construiu, ao longo das obras do filósofo Paul Ricoeur, a necessidade deste conceito, suas variações e aplicações que se constituem a narrativa da literatura, mas, pelo mesmo conceito de narrativa tomaremos de empréstimo ao cinema, pois, entendemos que narrativa é a relação básica do nosso objeto audiovisual, como assim é feito na literatura. Adotaremos a condição ativa do público para desbravar a identidade narrativa gerada a partir da condição dialética entre as obras e público. Paul Ricoeur nos dá um entendimento claro sobre este conceito aplicado a narrativa:

O rebento frágil proveniente da união da história e da ficção é a atribuição a um indivíduo ou a uma comunidade de uma identidade específica que podemos denominar sua identidade narrativa. ‘Identidade’ é tomada aqui no sentido de

uma categoria prática. Dizer a identidade de um indivíduo ou de uma comunidade é responder à pergunta: quem fez tal ação? Quem é seu agente, seu autor? Para começar, responde-se a essa pergunta nomeando alguém, isto é, designando-o por um nome próprio. Mas qual é o suporte da permanência do nome próprio? O que justifica que se considere que o sujeito da ação, assim designado por seu nome, é o mesmo ao longo de toda uma vida que se estende do nascimento até a morte? A resposta tem de ser narrativa. Responder à pergunta ‘quem?’, como disse claramente Hannah Arendt, é contar a história de uma vida. A história contada diz o quem da ação. Portanto, a identidade do quem não é mais que uma identidade narrativa. Sem o auxílio da narração, o problema da identidade pessoal está, de fato, fadado a uma antinomia sem solução: ou se supõe um sujeito idêntico a si mesmo na diversidade de seus estados, ou então se considera, na esteira de Hume e de Nietzsche, que esse sujeito idêntico não passa de uma ilusão substancialista, cuja eliminação faz aparecer tão-somente um puro diverso de cognições, emoções e volições (RICOEUR, 2012c, p. 418).

O que nos apresenta Paul Ricoeur é a noção de identidade narrativa potencial para definir aplicabilidade, tanto à comunidade quanto ao indivíduo, por meio da narrativa compartilhada; indivíduo e comunidade se constituem em sua identidade recebendo essas narrativas que se tornam, tanto para um como para a outra, sua história efetiva.

Para delimitar a noção de identidade narrativa, é necessário tornar preciso como o sujeito se toma por uma identidade específica, por meio da mediação e da função narrativa. Para Ricoeur, existem dois grandes conjuntos narrativos: a narrativa histórica e a narrativa de ficção. Ele formulou a hipótese segundo a qual a constituição da identidade narrativa, seja de uma pessoa individual, seja de uma comunidade histórica, era o lugar procurado para a fusão entre o histórico e o ficcional. Neste ponto, identificamos campo fértil para perceber que o movimento das Jornadas agrega tanto uma intensa produção cinematográfica, quanto um conjunto significativo de narrativas ficcionais e documentais, que delimitam os marcos histórico das edições e tornam precisa a narrativa histórica.

Entendemos por intriga, elemento que une a partição mimética, também nos auxilia a extrair das histórias seus modelos narrativos e perceber o desdobramento nas mais diversas obras, no nosso caso, no conjunto de obras fílmicas.

Para Paul Ricoeur a narrativa constrói o caráter durável de um personagem, que se pode chamar de identidade narrativa, construindo o tipo de identidade dinâmica, próprio à intriga que faz a identidade do personagem.

É, pois, em primeiro lugar, na intriga que é necessário procurar a mediação entre permanência e mudança, antes de poder aplicá-la à personagem, A vantagem deste desvio pela intriga é que ela fornece o modelo de concordância discordante sobre a qual é possível construir a identidade narrativa do personagem. A identidade narrativa da personagem só poderá ser correlativa da concordância discordante da própria história (RICOEUR, 2012c, p. 6).

A mediação narrativa sublinha o caráter notável do conhecimento de si próprio: ser uma interpretação de si próprio. Se não é possível um conhecimento direto de nós próprios, nada nos impede uma mediação interpretativa de nós mesmos, através do uso de uma linguagem narrativa.

Iremos nos dedicar a explicar como se dá o caminho usado por Paul Ricoeur para apresentar a identidade narrativa, pois, é com essa base que entenderemos a função de análise da ação narrativa. Na obra Tempo e Narrativa - tomo III, Ricoeur utiliza as últimas considerações para pontuar a identidade narrativa como a primeira aporia da temporalidade. Isso surge da necessidade de insistir que: “nossa hipótese de trabalho

consiste, portanto, em tomar a narrativa com guardiã do tempo, na medida que não haveria tempo passado que não fosse narrado” (RICOEUR, 2012c, p. 411).

Na relação entre a identidade individual ou coletiva, o dilema desaparece se a identidade estendida no sentido de um mesmo (idem) for substituída pela identidade entendida no sentido si-mesmo (ipse). Ricoeur fez uma análise detalhada da diferença fundamental entre os dois usos principais do conceito de identidade: a identidade como mesmidade (latim idem) e a identidade como si-próprio, ipseidade (latim ipse). Ipseidade não é a mesmidade. Ricoeur procura mostrar a profunda diferença entre pensar a identidade pessoal em termos de mesmidade e ipseidade. A mesmidade43 encontra-se

subjacente a noção latina de idem, que expressa a identidade alcançada a partir da permanência substancial no tempo; pelo contrário, o conceito de ipseidade implica um outro tipo de identidade, enquanto ipse, que se constrói a partir da temporalização de si próprio. Para ele, essa diferença não é meramente semântica e, sim, ontológica. O ser enquanto idem e o ser enquanto ipse não são coincidentes, ambos se entrecruzam. O idem traduz a neutralização impessoal de uma existência (o indivíduo não como pessoa, mas como entidade neutra). Esta é uma identidade estática, atemporal, abstrata. O ipse manifesta a presença a si próprio de uma pessoa. Esta é uma identidade dinâmica, temporal, que inclui mudanças.

Para cercar esta discussão cito a análise feita pelo pesquisador Daniel Jacob Sivinski: “A base para escapar ao dilema acima mencionado, para Ricoeur, passa pela Poética de Aristóteles. A noção chave a guiar a esta dialética entre idem e ipse é a de intriga” (2002, p.2). O elemento da intriga que já foi abordado na definição da tríplice mímesis e que vai nos resguardar para o trabalho com o conceito de ação narrativa.

43 Apesar de fazer parte de toda construção do sentido, não iremos nos ater a explicação mais detalhada, para tanto, agregamos ao entendimento sobre identidade como mesmidade o que Ricoeur define como sentidos fundamentais: o primeiro é a forma numérica, isto é, a identidade como unicidade, como reidentificação do mesmo. O segundo sentido dá-se a partir da ideia de semelhança extrema. Quando não somos capazes de discernir a diferença entre dois objetos numericamente diferentes, dizemos que eles são idênticos por semelhança. Mas, o fato de não sermos capazes de discernir a diferença não significa que ela não exista; significa que a identidade por semelhança nunca pode ferir a identidade específica subjacente à identidade numérica. O terceiro sentido é introduzido por Ricoeur como ideia de identidade como continuidade, isto é, o fator tempo como princípio intrínseco de identidade. É a continuidade ininterrupta no desenvolvimento de um ser entre o primeiro e o estado da evolução. Por fim, aparece o quarto sentido, a permanência no tempo, isto é, permanecer apesar do tempo. Não é meramente o reconhecimento de um ser ao longo do tempo, mas, antes de sua projeção numa existência substancial que se esquiva e subtrai ao tempo. O ponto de partida para o entendimento da noção de ipseidade, de si-próprio, dá-se na questão “quem”, distinta da questão “o quê”. Responder à questão “quem” é contar a história de uma vida. A história que é narrada apresenta o agente da ação. Chama-se de “adscrição” (ascription) o assinalar de uma agente a uma ação. Aqui acontece o corte, não meramente gramatical, epistemológico ou lógico, mas ontológico, que separa idem de ipse.

David Pellauer destaca em Ações narradas como fundamento da identidade

narrativa que as ações narradas se referem a algo realizado, com lugar determinado e

função na história, que abra a porta para a ideia de identidade narrativa. “(...) identidade narrativa é parte de nossa identidade pessoal ou social, certamente uma parte muito importante, mas não exclusiva” (2013, p. 75). Não é exclusiva, principalmente porque a relação com a obra é potencialmente aberta e aproxima as intenções do autor com o espectador. O artigo é uma análise ou reflexões sobre os escritos de Paul Ricoeur em Simbólica do mal e Conflito de interpretações. Então a proposta apresentada é a que tomaremos como base que é de mostrar como a identidade narrativa depende da ação narrada, mas também como a ação narrada é, ela mesma, dependente da identidade narrativa.

Todo o exercício de análise passa pela tese levantada na obra Tempo e Narrativa, segundo Pellauer, e sem desconsiderar o que foi posto sobre a ipseidade ou mesmidade, o foco é entender a ação narrativa como mais um conceito operativo na obra. “Duas questões devem guiar minha investigação sobre essa noção: O que Ricoeur quer dizer com ação narrada? Por que essa noção é significativa? ” (PELLAUER, 2013, p. 60).

O que temos abordado durante todo o texto sobre a mímesis é que ela não se limita a reprodução, mas a produção de novos sentidos para a narrativa, ao ponto que a mesma narrativa possa tomar o espaço do objeto narrado. Assim, o movimento superoitista enquanto condição mimética do cenário da época toma para si a condição temporal a estabelecer por meio de suas obras a condição histórica e ficcional. A intriga não somente tece os episódios em cada filme, mas tece a relação entre os filmes. Não por acaso, adotamos como objeto os filmes premiados e destaques das Jornadas, pois, esta seleção também é resultado de uma condição ativa e funcional. “E a ideia de intriga, já podemos antecipar, será o elo que fará a mediação entre ações narradas e identidades narrativas” (PELLAUER, 2013, p. 71).

Pellauer ainda nos permite apreender com maior propriedade a percepção de uma identidade narrativa por uma ação narrada. Isso sim, por meio do discurso narrativo.

Ao contrário dos eventos físicos estudados pelas ciências naturais que são instancias e símbolos de um tipo geral, os eventos narrativos podem ser singulares. (...) Para dizer de outro modo, os eventos narrativos não apenas acontecem, nem simplesmente são feitos por alguém ou para alguém; ao contrário, ao acontecerem, sendo sofridos ou realizados, contribuem para configuração que sintetiza o episódio em uma história contada por meio da intriga (PELLAUER, 2013, p. 72-73).

Partimos então para o entendimento que a ação narrada no processo de construção da identidade cinematográfica já é parte integrante da análise dos filmes por meio da tríplice mímesis. Condição essa, que faz da intriga o meio de imbricação mímesis I,

mímesis II e mímesis III. Segundo Pellauer, a ação narrada é parte importante para dar

sentido as identidades narrativas. Primeiro ele compreende que ação narrada é sempre temporal, desta forma, ela ocorre no tempo e por certa duração e o significado depende das consequências dos fatos esperados ou não. Não por acaso, podemos perceber as identidades narrativas na condição das Jornadas, pois, finca-se no tempo e gerou consequências um leque de produção audiovisual e um legado cinematográfico sustentado por suas identidades narrativas.

Ações narrativas como eventos narrativos transcendem o fato de que alguma coisa acontece. Elas tratam de algo que é feito ou de coisas que acontecem e que têm consequências para a história sendo contada. Assim, estas ações narrativas podem se estender por um período irregular de tempo, neste caso, esses períodos podem eles mesmos estar incluídos em outros períodos, que podem preceder ou suceder ou conter a ação em questão (PELLAUER, 2013, p. 76-77).

Nestas condições, absorvemos essa consideração para pensar que cada obra audiovisual superoitista participante da Jornada, como objeto desse estudo, está inserido em seu tempo específico, mas pode marcar o tempo dentro de outra obra o que amplia a possibilidade da construção de uma identidade narrativa.

Tendo em vista essas considerações, nossa proposta metodológica visa identificar as possíveis formas de apreender as ações narradas por meio da identidade narrativa, tendo a produção mimética das obras audiovisuais que se definem enquanto objeto deste estudo. De maneira geral, a identidade narrativa se torna importante e proveitosa para o entendimento tanto de quem somos quanto do que somos capazes com seres humanos, na medida em que ela considera a possibilidade de uma identidade dinâmica.

Encontramos já neste ponto a ideia de que o si é o ‘mesmo’ si, mas apenas considerando o duplo sentido de mesmidade como identidade nos termos de

idem e ipse, que seriam desenvolvidos em O si mesmo como um outro. Trata- se do si que pode ‘incluir mudança, mutação dentro da coesão de uma vida (PELLAUER, 2013, p. 79).

Como a nossa proposta visa relacionar conceitos teórico-metodológicos das análises sobre tempo e narrativa em que se sustenta o método da tríplice mímesis na forma de se pensar a produção, exibição e circulação das obras audiovisuais no Maranhão por meio da Jornada. Neste contexto, apropriarmos da categoria da identidade narrativa condicionada a ação narrativa destas produções e de que forma se estabelece a

comunicação/interação com seus espectadores. É a partir da análise dessas categorias que sinalizaremos propostas de uma identidade cinematográfica maranhense.

No final de nossa investigação sobre a refiguração do tempo pela narrativa perceberemos que por meio da produção das obras fílmicas define-se uma identidade narrativa de um indivíduo, de um grupo ou de um povo por meio de uma narrativa anterior e posterior e da cadeia de refigurações que disso resulta. Desta forma, a identidade narrativa é a resolução poética do círculo hermenêutico.