• Nenhum resultado encontrado

Cinema, Samba e Improviso: Cadências de Vanguarda no Filme Brasileiro

Vanguarda, Realismo e Improviso

Empenhada em combater o realismo consolidado nas artes visuais e na literatura do século 19, a vanguarda que se articulou no momento seguinte poderá, mais de uma vez, deixar a impressão de ter sido uma ofensiva, em seu conjunto, anti-realista. Na verdade, o multifacetado projeto vanguardista caracteriza-se, em seus desdobramentos, como uma investida contra determinadas convenções relacionadas a um modo específico de representação do olhar que deságua, por fim, na referência da perspectiva renascentista.

Trata-se de concepção que, na dimensão narrativa, procura estabelecer critérios conforme a lógica do senso comum e de certa linearidade cronológica, por vezes um certo apego ao figurativo. Ao passo que se encontra no discurso das vanguardas justificativas que se apoiam em outras visões da realidade. ―Afinal, todo e qualquer realismo é sempre uma questão de ponto de vista, e envolve a mobilização de uma ideologia cuja perspectiva diante do real legitima ou condena certo método de construção artística‖99

.

O impressionismo reivindica para si maior fidelidade ―à pura sensação visual e às propriedades dinâmicas da luz‖ do que o realismo que o antecede. Os cubistas defendem que seu novo espaço pictórico é ―mais compatível com as condições da vida moderna e as novas descobertas da ciência‖. Um pintor, e cineasta, como Fernand Léger dirá que o mundo surreal que emana de suas imagens é mais real do que o real captado e organizado pelo nosso senso comum (XAVIER, 2005, p. 100).

Os filmes dadaístas e surrealistas dos anos 1920 – entre outros, Sinfonia em diagonal (1921/1924), de Vicking Eggeling, Rythmus 21 (1923), de Hans Richter, Ballet mecánique, de Léger, Entr‘acte, de René Clair e Francis Picabia, ambos de 1924, Anémic cinema (1926), de Marcel Duchamp, La coquille et le clergyman (1926), de Germaine Dulac, Un chien andalou (1929), de Luis Buñuel – e chegando a Sangue de um poeta (1930), de Jean Cocteau, evidenciam um outro lado da identificação da

99 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico – a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e

142

vanguarda com o anti-realismo. Esse lado, trabalhado pelo cinema pintado da década anterior (Corradini, Survage) e pela pintura modernista, já se insinua desde a gênese do cinema, com Méliès, e questiona a própria ideia de representação.

A própria atividade artística passa, então, a ser tomada como fonte geradora, e autônoma, das coisas do mundo, que trazem, assim, suas próprias leis de organização. Ao real existente fora da obra, antepõe-se uma complexa chave conceitual a ela imanente que passa a condicionar sua expressão. Ismail Xavier pontua que a ―mediação de uma teoria‖ não impede que, ―no seio mesmo deste aparente irrealismo‖, sejam reintroduzidas ―velhas ideias‖ que permanecem a legitimar o novo estilo e a torná-lo compatível com ―um certo tipo de realidade‖.

Das várias respostas no espectro da vanguarda para o problema da representação do real, sobressaem-se tendências e correntes que – seja em decorrência do choque, da estranheza, ou de variados graus de apuro formal – irão trabalhar com a noção de improviso no cinema, por vezes assumindo abertamente o risco calculado e um sentido de jogo. A purificação do olhar e a refundação da representação são gestos, ainda que de maneiras bem distintas, a serem recobrados como essência dessas várias escolas, geração a geração; desde o chamado cinema poético originado da vanguarda imediata de franceses, russos e alemães ao underground norte-americano e os cinemas novos da Europa e América Latina.

Traços do improviso como a escrita automática de André Breton constituem um dado que desde sempre passa a ser considerado e subsiste no frescor das autorias que assinam, do genérico ao particular, a mise-en-scène do cinema moderno. A propósito, no horizonte do marco cronológico deste estudo, o problema do real como pauta de uma agenda contemporânea dos cineastas modernos aparece de modo diverso entre a produção brasileira e a estrangeira. Na querela de fins dos anos 1960 entre o Truffaut acusado de alienação, refugiado nos temas do amor, e o Godard engajado na trincheira anti-imperialista, que terminaria por afastar em definitivo os dois cineastas, o diretor de Os incompreendidos, em uma de suas respostas ao ataque de Godard, evoca Matisse.

Truffaut observa que, na obra do artista, cuja biografia atravessa sucessivos conflitos mundiais, a guerra inexiste como representação literal por ser então uma ocorrência ordinária. A perspicácia, e maestria plástica, de Matisse estaria no gesto de ter, com seu talento, transformado flores, pássaros e outras amenidades que elegeu

143

como assunto em notáveis odes à beleza e ao amor, um particular libelo anti-guerra. Na moderna cinematografia brasileira, o diagnóstico da realidade social terceiro-mundista e a emancipação do indivíduo desse estágio (condição?) são temas que dominam a produção, ficando os exercícios estritamente formalistas para casos excepcionais, a exemplo de alguns momentos do filme de artista – como a série de curtas em Super-8 Illustration of art, realizada nos anos 1970 pelo artista plástico Antonio Dias. Os oito filmes em recorte neste estudo não escapam de tal panorama.

A câmera, com ou sem tripé, em livre errância, por vezes em locação aberta, para a vida entrar ao sabor do acaso; fotografia em texturização diversa de um padrão controlado, que aceita a luz estourada e uma plástica da sujeira; prevalência de um sentido de composição de cena em detrimento do obrigatório passo-a-passo previamente demarcado no roteiro escrito; diálogos reestruturados ou mesmo criados conforme a ação do intérprete e sua modeladora presença na ativação do personagem; montagem livre, de conceito aleatório ou construtivista, corroendo os protocolos do raccord tradicional.

Na banda sonora, a conviver com as normas convencionais de mixagem e arranjos orquestrados, a presença de efeitos e ruídos ―naturais‖ de captação casual e o emblema das canções populares. Essas, apesar de uma presença subterrânea desde as illustrated songs do primeiro cinema, e da explosão do filme musical desde o advento do sonoro, somente ganham primeiro plano como elemento significante em meados dos anos 1950.

Vale ressaltar que, no campo da expressão musical, há, para além do samba, uma vasta abordagem prática da noção de improviso ou improvisação. Detenho-me, a seguir, por breve momento, em dois exemplos: o jazz norte-americano e o repente nordestino. No caso do jazz, é bastante comum se considerar o paradoxo entre arranjo e improvisação. Ou seja, quanto mais se arranja, menos se improvisa. Mas para o músico do gênero, ―desde os tempos de Nova Orleans‖, o arranjo é tido como uma ajuda e não como uma limitação à liberdade de improvisação.

―A experiência mostra que o instrumentista (...) se sente mais livre e motivado, quando sabe o que fazem os músicos que tocam com ele. (...) Na relação arranjo/improvisação existe uma verdadeira tensão que, quando bem compreendida, é

144

muito frutífera‖, escreve Joachim E. Berendt em O jazz – do rag ao rock100

. Partindo do princípio de que a improvisação, conceito ―bastante amplo‖, é quase uma segunda forma de composição, o autor busca diferenciá-la no jazz e na música erudita europeia, em cada que cada nota escrita pelo compositor é reproduzida fielmente pelo executante. No jazz, cada composição está ligada intimamente com a personalidade musical do seu autor e, quando ela for executada por outro intérprete, a composição é praticamente recriada. Para o que cabe, entre inúmeros exemplos de improvisações tão ou mais conhecidas que as melodias: John Coltrane a improvisar sobre ―My Favorite Things‖, Miles Davis sobre ―All of You‖ ou Coleman Hawkins sobre ―Body and Soul‖.

Um instrumentista que cria um chorus é ao mesmo tempo um improvisador, um compositor e um intérprete. ―Mesmo em termos de arranjo, esses três elementos do jazz têm que estar intimamente ligados‖. Mas na prática do improviso, adverte Berendt, o músico de jazz improvisa baseado numa sequência harmônica da mesma maneira que Bach e seus filhos o faziam quando tocavam uma chacona ou uma ária. Ou seja, ―quase como um co-autor da composição‖ (2007), realizando inúmeras variações em torno do esquema harmônico de chacona e, quando tocavam uma melodia, ela era ornamentada da primeira à última nota. Tão praticada no barroco, é a mesma técnica de ornamentação que usa o músico de jazz – a mesma que usa Coleman Hawkins quando toca, por exemplo, o seu ―Body and Soul‖; comum em trilhas cinematográficas, esse último é um dos temas retomados na banda sonora de A mulher de todos.

No repente nordestino, os cantadores chamam de improviso tanto o ato de pensar uma estrofe nos segundos que antecedem seu canto quanto o de iniciar a peleja sem antes definir o conteúdo do que vão dizer, mantendo-se atentos, sobretudo, à acomodação prosódica no final de cada verso conforme o número de sílabas poéticas da redondilha. Vale dizer que, nos dois casos, o tempo de composição é o tempo da performance. Mas o antropólogo João Miguel Sautchuk, professor da Universidade Federal do Piauí, nota uma diferenciação, estabelecida pelos próprios artistas do cordel, entre os termos ―repentista‖ e ―cantador‖, normalmente tidos como equivalentes.

Acredito que tal diferenciação dê suporte a definição do improviso a partir da prática do repente. Assim:

100

145

É considerado ―cantador grande‖ aquele que segue a oração no planejamento das estrofes, possui bagagem e a utiliza bem na formulação de imagens poéticas – a ênfase aí está na relação com as regras e os modelos incorporados da poesia. Já o ―repentista grande‖ é aquele que se notabiliza por respostas rápidas ao que o parceiro canta e a incidentes no ambiente da cantoria, muitas vezes iniciando suas estrofes sem ter um roteiro certo – recaindo maior peso na relação com a situação do fazer poético (SAUTCHUK, 2012, p. 117).

Para o antropólogo, a distinção fundamental entre o que se está chamando de composição prévia e de improviso (composição ―durante a performance‖) não é o intervalo de tempo cronológico entre composição e apresentação. A distinção estaria na estrutura da situação peculiar de cada um desses polos, ou seja, o improviso ―deve responder a imperativos da situação e seu resultado tem função nas interações do momento‖. À maneira dos jogos de sociabilidade que pressupõem uma maestria prática (Bourdieu), as interações – o embate criativo do repente – estariam mais próximas de uma ―semiologia espontânea que se assemelha mais ao boxe (no qual cada movimento desperta um contramovimento) do que ao paradigma hermenêutico‖ (SAUTCHUK, 2012, pp. 119-120).

Voltando-se especificamente para a teoria da linguagem cinematográfica, e da relação do som com as imagens em movimento, sublinho alguns tópicos desenvolvidos por Noel Burch, Michel Chion e escola soviética que tomo entre as referências na análise dos filmes que integram o corpus deste estudo.

Ao tratar de uma noção dialética de forma cinematográfica, Noel Burch afasta o princípio hegeliano e insiste, ―talvez um pouco abusivamente‖, em uma noção que deriva da música dodecafônica. Trata-se da noção de dialética musical que Jean Barraqué define, a partir de Webern, e que prevê a organização dos diferentes parâmetros musicais em relação uns aos outros (durações de som, timbres e mesmo silêncios) e, ao mesmo tempo, no interior do ―espaço musical‖.

Por analogia, Burch defende que ―existem, de um modo semelhante, parâmetros cinematográficos‖ cuja própria natureza sugere as diretrizes da sua organização dialética, destacando uma série de aspectos relacionados à decupagem: características espaciais e temporais dos raccords; relações entre os espaços; relações plásticas dos planos entre si; tamanho dos planos, ângulo e altura da câmera; direção e velocidade

146

(consideradas no interior do plano) dos movimentos da câmera e dos personagens (BURCH, 1992, p. 73).

―Além, é claro, da duração do plano...‖, destaca o autor:

Mas, com isto, abordamos um problema fundamental, uma vez que sua análise estabelece, definitivamente, os limites de seu paralelismo com a música dodecafônica. Pois, se existem de fato analogias de ordem geral entre as dialéticas da música serial e as do cinema, estas últimas diferem fundamentalmente das primeiras, pois jamais poderão, como aquelas, exprimir-se (redigir-se) em expressões puramente matemáticas. E, no entanto, há um parâmetro cinematográfico que poderia com certeza ser reduzido a termos matemáticos; trata-se da duração absoluta dos planos, expressa em segundos e em imagens. Chegou-se mesmo a sugerir que essas durações fossem transformadas em séries. Entretanto, a experiência do dia-a-dia do cineasta (e as tentativas de organizar as durações dos planos como tal, independentemente de seu conteúdo) tem mostrado que a percepção da duração de um determinado plano está condicionada à sua legibilidade (BURCH, 1992, p. 74).

Com a análise de alguns planos, especificamente em Barravento, O desafio e A mulher de todos, veremos como fica a questão da legibilidade dos mesmos se tomados a partir da referência do que se ouve em cena – canções populares em novos modos de existência a partir da performance improvisada de atores/personagens de um enredo. Partindo do que acredita ser ―a dialética fundamental do cinema‖, a que opõe e une som e imagem, e ao menos empiricamente subentende todas as outras, Burch cita Bresson – ―um som sempre evoca uma imagem; uma imagem nunca evoca um som‖ para atestar o maior realismo do som, ―infinitamente mais evocativo‖, definindo a imagem como não mais que uma estilização da realidade visual.

Apesar de problematizar e relativizar, logo em seguida, a assertiva, Burch, de modo claro, simula uma hierarquia dos elementos para fazer equivaler as potências da informação sonora, jogando enfim com o oposto; ou seja, uma característica também de artificialidade do som. Ele volta a indagar a dicotomia artificial-natural ao observar a natureza geral da noção de acaso, buscando com isso localizar possíveis padrões de interferência entre universos aleatórios e determinados na arte de vanguarda. O teórico franco-americano afirma que essas tendências refletem uma impaciência muito difundida, apesar de confusa, diante de uma tradição solidamente ancorada, a da obra ―fechada‖, em oposição à obra ―aberta‘ que elas representam.

147

Mas, em cinema, o que significam os termos ―acaso‖ e ―obra aberta‖? Em literatura, teatro, pintura, dança e, sobretudo, na música, têm significado, entre outras coisas, a brusca irupção, em um mundo totalmente artificial, de um universo de contigências mais ou menos ―naturais‖, que a priori lhe é estranho. Este fenômeno repete-se no cinema, mas de uma outra forma.101

Na música, há os que submetem a obra a um mundo de contingências totalmente independentes da vontade do compositor e seus intérpretes – como John Cage e seu ―piano preparado‖ com objetos no meio das cordas – e os que preferem o sopro do acaso, uma mera contingência externa – o mesmo Cage jogando ―cara ou coroa‖ para compor ―Music for Changes‖. Já no cinema, o realizador contempla e mostra objetos e materiais não criados por ele, retrabalhando-os e conjugando-os ―sabiamente com outros, de sua lavra, conferindo-lhes enfim o status de obra fechada, arrancando-os do acaso em que se originaram, sem, contudo alienar sua originalidade quando transportados para um outro mundo‖ (BURCH, 1992, pp. 131-133).

No limite de sua conjectura dialética, o autor se refere à abstração (absoluta?) da música ante a materialidade congênita da expressão cinematográfica: ―a oposição entre o mundo perfeitamente abstrato da música e o mundo simultaneamente concreto e abstrato do cinema‖. Oposição necessária em qualquer paralelo entre as duas artes.

Por fim, quando entabula a dicotomia acaso-controle, Burch, a partir da figura de Dziga Vertov, recobra o papel do montador – primeiro a contemplar os extraordinários materiais oferecidos pelo mundo do acaso ao ―poder criador‖ da tesoura. Eis uma imagem extremamente apropriada para se pensar a visão de cinema dos cineastas aqui estudados, bem como as obras em destaque dentro do que me proponho, já que, sem ressentir a evidente importância do filme em toda a sua extensão e completude, busco privilegiar recortes pontuais e uma dimensão específica do fragmento na feição geral de cada trabalho cinematográfico.

Trata-se de premissa básica da montagem soviética na sua reiterada eletividade para o conceito de atrações como fenômeno de sentido particular e expressão tanto autônoma quanto polivalente. Quando os fragmentos passam a ser considerados em si mesmos, a planificação atinge novo status na mesa de corte e o fragmento deixa de ser um detalhe, tornando-se uma representação completa. Cada momento de um filme, os

101

148

planos, os sons, já não se reporta a uma totalidade formada pela obra, embora a ela possa ser articulada, mas a uma ―entidade‖ que lhe diz diretamente respeito.

Na planificação narrativa, tudo que é notado e notável ganha tal condição em relação à própria narração. Na colagem intelectual dos soviéticos, cada fragmento ecoa a sua própria esfera de significação. A montagem consiste então precisamente em associar essas entidades, ou seja, em valorizá-las enquanto tais no próprio momento em que as confrontamos (AMIEL, 2010, p. 50).

Analisar um filme por fragmentos não significa fragmentar seu sentido enquanto obra cuja integridade põe-se ameaçada. Permite, antes, dar a ver maneiras específicas com que o artista audiovisual perfaz o caminho da articulação à expressão. Ao propor diferentes graus de decupagem ao longo do corpus, meu desejo é o de tentar enxergar pontos de vista de determinado cineasta para o objeto canção conforme essa ideia de estrutura musical se posiciona no filme em questão como forma acabada e como intersigno; ou seja, enquanto elemento do discurso dotado de mobilidade semântica e igualmente de atividade sintática.

Em um filme, e em qualquer ambiente discursivo, uma música é sempre uma música. Mas poderá ser ainda motor de transformação e reestruturação dos esquemas de sentido nele imbricados. Às vezes, porém em menor escala e sem necessariamente reivindicar uma natureza de musicalidade, o diálogo e o comentário assumem, como a canção, o posto de coisa a ser observada/ouvida neste exercício de decupagem analítica à medida em que criam condições para uma vigência específica da canção no filme.

Recorro, assim, no gesto de decupagem, tão caro a Burch também como método de aproximação da obra, a alguns conceitos de Michel Chion que podem ajudar a elucidar o papel dessas – canção, diálogo, comentário – e de outras presenças sonoras no conjunto dos filmes estudados. Dos três modos de presença da fala no cinema – fala- teatro, fala-texto e fala-emanação – que Chion aponta, volto a atenção para os dois últimos por entender que suas propriedades ajudam a definir um campo de análise para alguns aspectos indicados nas canções e entorno da filmografia escolhida.

A fala-texto geralmente é uma voz-off ou comentário. Em sua definição, ―a palavra proferida tem o poder de evocar a imagem da coisa, do momento, do lugar, das personagens etc. (...) e pode reinar sozinha‖, quebrando mesmo a autonomia da cena.

149

Costuma ser atribuída a um personagem de destaque na narrativa, e por um tempo limitado. O poder da fala-texto costuma ser acompanhado de uma contrapartida imediatamente visível – a imagem – dotada de concretude e possibilidades sensoriais que lhe escapam (CHION, 2011, pp. 135-136).

A fala-emanação, ao contrário, não estaria ligada ao centro da ação por não poder ser ouvida e/ou compreendida na íntegra. Decorre de diálogos ininteligíveis ou de opções técnico-estilísticas – direção de atores, enquadramentos, planificação – que contrariam a gramática da narrativa clássica, mais identificada com a fala-teatro. Com a fala-emanação, ―a fala torna-se então como que uma emanação das personagens, um aspecto delas próprias, no mesmo plano que suas silhuetas – significativa neste sentido, mas não central para a encenação ou para a ação‖.

Chion refere-se a tentativas de relativizar a fala que me parecem adequadas para os filmes em análise, especialmente para A mulher de todos, Di Glauber e os trechos indicados de Barravento e Bahia de todos os sambas. Relativizar a fala é inscrevê-la numa totalidade visual, rítmica, gestual e sensorial onde a mesma já não representasse obrigatoriamente o elemento central e determinante.

Na prática, a relativização da fala pode significar: relativizar o sentido das palavras, opondo-lhes, na imagem, uma visão paralela ou contraditória; fazer emergir e, depois, afundar a fala numa vaga de ruídos, música ou conversas; fazê-la proliferar e ouvir de tal maneira que se deixa de poder segui-la palavra por palavra ou, pelo contrário, fazê-la ouvir apenas em raras ocasiões. Pode ainda, tecnicamente, consistir

Documentos relacionados