• Nenhum resultado encontrado

4 [PODE SER QUALQUER OUTRO PARTIDO 47 ]: ESTUDO FILOLÓGICO DO MOVIMENTO TEXTUAL EM ME SEGURA QUE VOU DAR UM VOTO

4.1 A CIRCULAÇÃO DO TEXTO ME SEGURA QUE EU VOU DAR UM VOTO

Este texto marca a volta do protagonismo artístico de Bemvindo Sequeira, após a morte de João Augusto, com quem formava uma importante parceria artística desde a sua chegada à Bahia. Ele atuou em todos os importantes trabalhos de João Augusto, o que lhe garantiu sempre um grande espaço na cena teatral da Bahia. Porém, com o falecimento de João Augusto, apesar do reconhecimento de Bemvindo Sequeira como um dos melhores atores da Bahia, ele encontrou dificuldade para manter-se ativo no difícil mercado cultural de Salvador. Bemvindo Sequeira resolveu então, escrever e protagonizar seu próprio texto, uma comédia com temática eleitoral nas vésperas das eleições de 1982. Com esse texto, ele voltou a ocupar a cena teatral baiana como protagonista.

Conforme as datações cunhadas nos testemunhos do texto, os dois scripts de Me segura que eu vou dar um voto são do ano de 1982, sendo que SCRIPT-MSQVDV.01 é datado de junho/julho e o SCRIPT-MSQVDV.02 é datado de julho. Ambos os textos foram submetidos à censura, porém, conforme seção anterior, só foi possível localizar os documentos censórios relativos ao primeiro script, que teve documentação submetida ao aparelho censório no dia 13 de julho de 1982. O primeiro questionamento que se faz é: por que dois textos que têm o mesmo título e datação tão aproximada (junho/julho e julho) foram submetidos à Censura?

A resposta a esse questionamento é simples, basta uma leitura apurada dos dois textos. Lendo os dois scripts, percebe-se que, apesar de ambos possuírem o mesmo título e a datação aproximada, não são textos idênticos. Após separar nos dois textos, os trechos, nos intervalos temáticos, verifica-se que os dois textos apenas possuem 11 trechos idênticos. Nos demais, 27 deles apresentam conteúdos aproximados com algumas alterações, e 22 deles apresentam conteúdos, totalmente, diferentes entre um texto e outro. Para efeito da censura, um mesmo certificado censório só tem validade para um texto idêntico, como já visto na seção anterior, o que não seria o caso do texto em questão. Apesar das inúmeras aproximações e entrelaçamentos, são textos que se diferenciam. Assim, aparece o segundo questionamento: por que esse dois textos, do mesmo autor, com o mesmo título e temática, são diferentes? O que demandaria essa diferenciação entre os dois textos? Para responder tais questões, tem-se que partir para a investigação das formas de circulação desses dois textos.

Numa matéria do Jornal da Bahia, publicado em 7 de agosto de 1982 (UMA HORA...,1982), lê-se:

O espetáculo apresenta-se somente às segundas-feiras em Salvador, porque como diz Bemvindo: “Nos finais de semana estaremos nos apresentando nas capitais e cidades de interior próximas de Salvador. Já estamos marcados para Vitória da Conquista, Feira de Santana, Aracaju, Maceió, Juazeiro e Recife, além de uma semana de apresentações no Rio de Janeiro, a convite do Sindicato dos Artistas de lá”.

Nota-se, no texto da matéria, a intenção do autor de que a peça tivesse circulação por outros espaços teatrais, que não apenas os de Salvador, o que demandaria uma movimentação do texto de acordo com as configurações geográficas e políticas do público a que se dirigiam. A pesquisa em jornais põe em evidência os caminhos que o espetáculo teatral percorreu, através da sua manifestação cênica.

A estreia do espetáculo estava marcada para o dia 2 de agosto de 1982, no Teatro Gamboa, localizado no Largo dos Aflitos, em Salvador,

Figura 7: Anuncio da estreia

Fonte: AGENDA..., 1982b.

Por motivo de problemas técnicos, a estreia no Teatro Gamboa foi cancelada. A peça acabou estreando primeiro em outro estado nordestino, na capital da Paraíba, João Pessoa. A estreia em Salvador foi remarcada para o dia 9 de agosto de 1982, dessa vez no Teatro Maria Bethânia, localizado no Rio Vermelho.

Fonte: AGENDA..., 1982c.

Na coluna Bastidores, do Jornal da Bahia de 15 de agosto de 1982, o sucesso da estreia do espetáculo no Teatro Gamboa é confirmado, “depois de uma estreia com sucesso no Maria Bethânia com ‘Me segura que eu vou dar um voto’, Bemvindo estreou quinta-feira passada na Boate Holmes com o show ‘Procura-se uma estrela’” (BASTIDORES, 1982). Depois de ser encenado em João Pessoa e Salvador, o espetáculo percorreu ainda muitas cidades. Nos dias 28 e 29 de agosto de 1982, o espetáculo foi encenado na cidade de Irecê, no interior da Bahia. Na coluna Artes Cênicas, do Jornal da Bahia de 27 agosto de 1982, Bemvindo Sequeira comenta:

Este final de semana estarei em IRECÊ, com meu espetáculo “Me

segura que eu vou dar um voto”. Comédia sobre a qual não preciso

tecer loas: o Bethânia lotado na segunda-feira passada, atesta o sucesso da produção. Em Irecê estarei me apresentando no cinema local, numa promoção do Zé Mário, companheiro da “terra do feijão”. Sábado e domingo, às 21 horas, o publico de Irecê terá oportunidade de dar boas gargalhadas com esta deliciosa comédia-pacote. Um espetáculo para quem leva a Bahia rindo, e cem vezes mais animado que qualquer debate. (SEQUEIRA, 1982c)

Ainda na sua coluna, Bemvindo comenta que, no dia 30 de agosto de 1982, ele faria sua última apresentação às segundas em Salvador e, entre os dias 9 e 12 de setembro de 1982, o espetáculo seria encenado no final de semana na capital baiana, devido ao sucesso de público. No dia 4 de setembro de 1982, o espetáculo foi apresentado no Teatro da EARTE, em Feira de Santana. No dia 22 de setembro, o espetáculo foi apresentado na cidade de Valença-BA, num evento organizado pela Ala Jovem do PMDB. No dia 26 de setembro, o espetáculo foi apresentado na cidade de Ilhéus-BA. No dia 27 de setembro de 1982, o espetáculo retornou à Salvador para uma

apresentação no Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFBA e, no último final de semana de outubro, entraria em cartaz no Teatro Vila Velha.

Figura 9: Apresentação no DCE/UFBA

Fonte: AGENDA..., 1982a

Um acontecimento trágico e inesperado interrompeu a continuação da temporada do espetáculo Me segura que eu vou dar um voto na Bahia. No dia 1 de outubro de 1982, morreu, em um acidente de helicóptero, Clériston Andrade, candidato a governador da Bahia pelo PDS e mais doze pessoas, dentre elas vários deputados e lideranças políticas do estado da Bahia.

Figura 10: Anuncio morte de Clériston Andrade

Fonte: CLÉRISTON..., 1982)

Após a morte de Clériston Andrade, o clima para piadas de teor político na Bahia não era favorável, inclusive o próprio Clériston e o seu partido, o PDS, eram

alvos de muitas das piadas do texto de Bemvindo, sobretudo no texto do SCRIPT- MSQVDV.01. Assim, no Jornal da Bahia, de 15 de outubro de 1982, na sua coluna Artes Cênicas, Bemvindo Sequeira (SEQUEIRA, 1982a) comenta sobre o episódio e a ida do espetáculo para o Rio de Janeiro:

Terça-feira próxima estarei estreando no Teatro Rival, do Rio de Janeiro, com “Me segura que eu vou dar um voto”. Temporada de um mês, até as eleições. Os amigos que pintarem por lá, pela Cidade Maravilhosa, dêem uma chegadinha no teatro (na Cinelândia) levando-me notícia desta terra de luz, que nos salva a dor. Depois da morte de Clériston, e tantos outros, o astral aqui ficou muito baixo para este tipo de humor.

Dessa forma, o espetáculo que entraria em cartaz no final do mês de outubro no Teatro Vila Velha, muda definitivamente sua rota para o Rio de Janeiro. Bemvindo retorna ao Rio de Janeiro, ainda não definitivamente, onde iniciou sua carreira como artista. O espetáculo ficou em cartaz no Teatro Rival, no Rio de Janeiro, do dia 19 de outubro até o dia 14 de novembro, vésperas das eleições de 1982.

Aqui estou sendo dirigido pela Ângela Leal, atriz e filha do veterano Américo Leal, proprietário do Teatro Rival (na Cinelândia) e experimentado homem do Teatro de Revista. Tenho por responsável, a firma de Fabio Sabag e por produtora, Norma Dumar, amiga e companheira de muitas datas. Embora em Salvador, estivesse quase só em todo trabalho, aqui, dado o caráter extremamente profissional do Rio, o espetáculo ganha uma ficha técnica que envolve mais de uma dúzia de profissionais: na luz, figurinos, divulgação, administração, direção, produção etc. Estreei terça-feira passada, com casa lotada (quatrocentos lugares) e espero repetir por aqui (no Rio) o sucesso de Salvador. A temporada se prolonga até dia 14 de novembro. Dia 15, pego o Boeing e chego em Salvador a tempo de votar, e votar bem, nestes novos tempos que chegam (SEQUEIRA, 1982).

Na circulação da referida peça, percebe-se que o espetáculo encenado em diversos cenários do país, resulta da construção de dois textos não idênticos. Tais textos, tanto o SCRIPT-MSQVDV.01 quanto SCRIPT-MSQVDV.02, são divergentes pelo fato de o autor não usar apenas um texto em todo o percurso de circulação da peça teatral, mesmo mantendo o mesmo título e a mesma temática. Os dois textos mantiveram o mesmo objetivo comum de tratar a temática das eleições de 1982, com seus candidatos e partidos de maneira humorada, sendo que o primeiro, traz uma descrição mais precisa da política soteropolitana; enquanto o segundo, um texto com os

fatos políticos descritos de maneira mais arquetípica, para uma melhor recepção do público das outras praças por onde o texto circulou através do espetáculo.

Esse devir do texto teatral, em Me segura que eu vou dar voto, não se resume apenas aos dois scripts encontrados fincados no suporte de papel, SCRIPT- MSQVDV.01 e SCRIPT-MSQVDV.02. Esse movimento é denunciado pelas rubricas do autor e por algumas declarações suas. Destaca-se, aqui, a rubrica que nomeia esta seção “[pode ser qualquer outro partido]”,

Figura 11: Pode ser qualquer outro partido

Fonte: SEQUEIRA, 1982

como também uma declaração de Bemvindo Sequeira, na sua coluna Artes Cênicas, no Jornal da Bahia do dia 15 de outubro de 1982 (SEQUEIRA, 1982a, grifo nosso),

Terça-feira próxima estarei estreando no Teatro Rival, do Rio de Janeiro, com “Me Segura que eu vou dar um voto” [...] Refiz o texto,

adaptando-o em algumas coisas para o Rio, e lá devo ter ajuda de

algum diretor para umas paradas críticas. Na lista tríplice da minha escolha: Fauzi Arap, Luís Mendonça ou Aderbal Jr.

É importante levar em consideração que o texto dramático é uma obra aberta. No dizer de Rosa Borges dos Santos (2008), “[...] o texto é, no teatro, uma obra aberta, sempre sujeito às transformações de várias mãos, a começar pelas mãos do dramaturgo e do diretor”. E, mesmo com as limitações do momento em que foi escrita e encenada, quer por questões de adequação à legislação censória que exigia que o texto liberado pelo certificado censório fosse idêntico ao texto levado ao palco, quer por questões das limitações do próprio suporte em que está inscrita, esse texto continua aberto. O que se aproxima do que diz Umberto Eco (2003), que mesmo uma obra de arte, acabada e fechada, em seu organismo perfeito, é também aberta e passível a milhares de interpretações. Desse modo,

cada obra de arte, ainda que produzida em conformidade com uma explícita e implícita poética da necessidade, é substancialmente aberta a uma série virtualmente infinita de leituras possíveis, cada uma das quais leva a obra a reviver, segundo uma perspectiva, um gosto, uma execução pessoal (ECO, 2003, p.64).

Seguindo a leitura de Umberto Eco, pensando no texto teatral como um texto destinado à encenação, os textos foram pensados para serem encenados em variadas configurações regionais. Dessa forma, várias leituras eram possíveis, incluindo a possibilidade do deslocamento de personagens e piadas, levando o texto a “reviver segundo uma perspectiva, um gosto” (ECO, 2003, p.64) que variava de acordo com o público a recepcionar o espetáculo. Para Magaldi,

[a]o escrever a peça, o dramaturgo autêntico já supõe a encenação, da qual participa obrigatoriamente o público. Se ele quisesse prescindir da representação, preferiria outro gênero literário. Pode o autor não se importar com acolhida do público, mas nunca deve esquecer que as suas palavras precisam ser encontradas em função de uma audiência (MAGALDI, 2004, p.16).

Some-se a isso, a discussão proposta por Grésillon, Mervaut-Roux e Budor (2013, p.381-383) tempo:

O verdadeiro elemento permanente não é o texto, é o movimento entre o escrito e o gesto, entre o gesto e o escrito, antes, durante, depois da apresentação [...]. Da mesma forma, existe uma grande variedade de respostas à incompletude da encenação: cada noite, o espetáculo renasce, pois os atores são bem vivos e os espectadores sempre diferentes. As apresentações sucessivas não devem, portanto, ser consideradas como ocorrências de um objeto estético acabado, mas como tantas gêneses multiplicadas no.

Em função dessa audiência, dessa recepção, é que esse texto se movimenta gerando uma instabilidade, provocando a subsistência de textos diferentes de um mesmo autor, com o mesmo título, mesma temática e um mesmo eixo textual. Nesse movimento permanente entre o escrito e o gesto e o gesto e escrito, é importante destacar que, embora se leve em conta a ação de outros fatores, este trabalho apenas dá conta do texto escrito para ser lido, presente nos cinco testemunhos dos dois scripts de Me segura que eu vou dar um voto.