• Nenhum resultado encontrado

Não gosto de dar confiança a razão, ela diminui a poesia (BARROS, 2001).

Paloma Silveira, que foi formadora na escola no período de 2011-2013, e pesquisadora do Lelic, gostava da razão, mas nunca diminuiu a poesia nos encontros de formação, num ato ambivalente de dar confiança a razão e a poesia, descreve a formação como momento de pensarmos juntos o vivido e as ações pela escola e educação das crianças,

penso que estamos juntos neste trabalho porque nos possibilita alcançar uma potência maior de criação. Quando criamos, enredados neste coletivo pensante, percebemos que não estamos sozinhos, que a presença do outro é tão fundamental neste processo quanto a minha, que não posso ficar à margem, não posso me abster (SILVEIRA, 2014, p.26).

Formação, em que o pesquisador e muito menos o docente, não ficam à margem, pois têm por princípios a criação, a escuta, a presença e o diálogo permanente com o outro. Durante os encontros, os docentes e o pesquisador

71 conversam sobre vivências da escola e também questões pessoais da vida, num posicionamento ético e estético, num concerto de vozes, acordo entre as vozes não pela concordância homófona, mas por sintonia da escuta, que conduzem a uma melodia que necessita compreender esse mundo como mundo dos outros, no qual enquanto formador é preciso se afastar, Bakhtin (2010, p.102) enfatiza que “preciso me afastar de mim para libertar o herói para o livre desenvolvimento do enredo do mundo”.

Enredo do mundo, enredo de uma formação que Silveira (2014) descreve como momento de pensarmos juntos, e nos questionava “O que fazemos enquanto grupo de estudos e formação, enquanto grupo de professores e professoras aprendizes? Por que estamos juntos em nossas ações pela escola, pela educação das crianças?” (SILVEIRA, 2014, p.26).

As perguntas me instigaram, tanto à pesquisa, quanto à formação: encontro com a escola, as crianças, suas famílias e a comunidade, afirmando a potência do Projeto Civitas, voltado à busca de práticas pedagógicas inventivas, que tanto impulsionassem as crianças a se tornarem autoras de seu pensar, como pudessem mediar oportunidades de aprender, nas quais fosse valorizada a imaginação. Pois o Civitas tem por princípios uma ética da escuta e da convivência e uma estética da imaginação, da invenção e da compreensão criadora que é ativamente responsiva; diante disso o “próprio falante está determinado precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva” (BAKHTIN, 2010, p.272).

O Civitas era também um projeto de formação de professores firmado por convênio entre a prefeitura municipal e a universidade, na qual quinzenalmente o grupo de docentes se encontrava para estudar, conversar e pensar. Remião (2015) diz que o Projeto Civitas vai além do convênio, está sempre em vias de se reconstruir, já que a metodologia pedagógica privilegia a invenção e criação, pois “não há o prenuncio de que existe algo a ser implantado ou aplicado nas escolas e que produzirá determinado efeito ou resultado” (REMIÃO, 2015, p.79). Civitas é movimento, formação em se fazer.

Silveira (2014) destaca na sua tese, que a formação de professores se instaura no movimento, mais exatamente do pensamento de um coletivo docente. Na formação, incide, via de regra, a distância entre o mundo da teoria, com seus conceitos

72 e sistemas, e o mundo onde nossos atos são concretizados, com imprevisibilidade e singularidade. O que cabe numa formação é aproximar estes mundos, invertendo o sentido do pensamento: inquietar-se com a realidade em movimento, provocando a invenção de um modo de agir e pensar, sobre o modo de ver a si mesmo (docentes) e ao outro (crianças, escola).

Apoiada em Axt e Martins (2008), Silveira (2014) esclarece que, no Civitas, a formação se propôs a trabalhar com teorias que apontem ao paradigma ético- estético35, em referência à vida como celebração, à vida em sua dignidade de ser

vivida, que significa uma relação com os sentidos e os valores na formação, percebendo no contexto um encontro dialógico entre pesquisa-formação, que opere com a diferença e a criação, empoderando práticas inventivas, histórias de vida, pontos de vista, sendo princípios (AXT; MARTINS, 2008):

 Forçar, pela experimentação, o pensamento a pensar sobre conteúdos, trazendo-os para o contexto de experimentação dos alunos, para que estes inventem outros modos de pensar e agir, escrevendo/imaginando/desenhando/ falando/fazendo suas próprias narrativas.

 Forçar, pela experimentação, o pensamento a pensar sobre procedimentos, e práticas docentes, enquanto movimentos não fechados, e sim abertos, receptivos ao estranho, ao imprevisto que emerge no contexto, sensíveis ao contexto, de modo que o docente se coloque numa posição de pensador da educação, de teorias, de práticas, refletindo a propósito de o que é imprescindível ser ensinado e aprendido, segundo o que pontua o currículo; constituindo modos de ensinar e aprender com o rigor indispensável, no entanto sem rigidez e aspereza.

Ao forçar, pela experimentação, com rigor indispensável, o Civitas rompe com hábitos de pensamento, rompe com modos de pensar a formação e a educação, pois pulveriza nossos ‘habituais’ argumentos. Para Bachelard (1996), pensar é retificar, é conquistar, é aprender, pois o pensamento desperta outros sentidos de perceber o mundo. E o Pensamento entendido com Arendt, como político, como aquilo que acompanha a vida, uma vez que não pode ser considerada um privilégio de alguns, todavia uma capacidade humana, na qual é preciso pensar e estar na fissura entre o

35 Axt (2016), esclarece que o paradigma ético-estético pode ser compreendido como uma pragmática

que afirma o mútuo compromisso entre uma ética da alteridade e uma estética da existência, no âmbito de uma arquitetura dialógica da linguagem que ressoa o ato responsável; e a não desvinculação dos produtos culturais (teóricos, estéticos...) do ato concreto e subjetivo de agir-pensar-sentir que os produz

73 passado e o presente como força humana que assume os acontecimentos do presente, da experiência viva, dos quais o pensamento pode emergir: o humano tem a possibilidade de reinventar a vida e a si mesmo por estar-sendo com os outros, já que “nosso saber origina-se do saber de outros que o aprendem a partir do nosso” (SERRES, 2004, p.68). A condição do humano, como desafio de criação é de aprender com o outro, uma vida que se reinventa na ação, no fazer e no pensar.

Para Bachelard (2004, p.174), “nosso pensamento se educa”: na formação do Projeto Civitas nosso pensamento se educou ao ser forçado por experimentações poéticas, emergiu um pensamento encarnado profundamente imbricado ao deixar-se fazer e refazer por ritmos que se constituíram coletivamente.

Bakhtin (2010, p.109) acrescenta, dizendo que a “relação consigo mesmo não pode ser rítmica, é impossível encontrar-se a si mesmo no ritmo”, significa que entender o outro é entrar no ritmo dele; contemplar e compreender os ritmos do mundo supõe considerar os mistérios do humano, supõe pensar na concepção que temos de infância. E, para Bachelard (1994, p. 134), “a infância é fonte de nossos ritmos. É na infância que os ritmos são criadores e formadores”. Bakhtin (2010, p.120) enfatiza ainda que o “ritmo abrange a vida vivenciada, nas cantigas de ninar já começam a ecoar os tons”. Tons que ecoaram numa formação, na qual enxergo o outro, que é tomada pelos ritmos que produzem acabamento que entrelaça saber e fazer para experimentar outros modos de conviver.