• Nenhum resultado encontrado

5.2 Ficcionando a viagem com as cartas

5.2.3 Como viajar a Ítaca se o avião quebrou?

No aeroporto o menino perguntou: -E se o avião tropicar num passarinho? O pai ficou torto e não respondeu. O menino perguntou de novo: -E se o avião tropicar num passarinho triste? A mãe teve ternuras e pensou: Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia? Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso?

Ao sair do sufoco o pai refletiu: Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças. E ficou sendo (BARROS, 1999).

A criança busca compreender os acontecimentos do seu contexto, quer saber o que acontece se um avião tropicar num passarinho, e se esse passarinho for triste? A criança também sabe que não é possível viajar com o avião quebrado, exige uma elucidação, pois deseja compreender o fato: na história contada por Érico Veríssimo

118 o avião está quebrado e o Fernandinho consegue viajar. Uma mistura de ficção e realidade, que são fundamentais para construir a empatia, que se fundem na emoção entre Fernandinho e o grupo.

Busco compreender a ideia de ficção com a professora Anna Mirabella (2019): no seminário “Arte e Ficção como desafios para a pesquisa em Ciências Humanas”56,

a historiadora diz que a ficção produz um conjunto de ideias do real e que, na ficção, vivo uma experiência de mundo outro, sem perder o factual, pois a ficção é uma faculdade humana; essa é a relação entre real e ficcional. Parece ser a relação feita pelas crianças ao buscarem compreender “Como você faz pra viajar se o avião quebrou?”, vivem uma experiência de um outro mundo sem perderem a verdade dos fatos.

Mirabella (2019) compreende a verdade de fato, a partir de Hannah Arendt, no ensaio “Verdade e política”57; a complexidade de estabelecer a verdade de fato dá-se

na esfera política, que necessita ser compartilhada e reconhecida. Saber como viajar com o avião quebrado precisa de uma interpretação dos fatos e ser compartilhada e reconhecida pelo grupo. Reconhecimento que aconteceu com as cartas e com a confiança que foi se estabelecendo no percurso de empatia entre o grupo e o personagem ficcional Fernandinho. Verdade de fato do avião adquiriu suas implicações políticas, quando foi colocado num contexto interpretativo, que foi político, compartilhado entre as andanças das cartas.

Bakhtin sustenta a ideia de que a verdade está na interação dialógica entre pessoas que a procuram coletivamente, “a verdade humana deve antes ser encarnada do que permanecer na abstração” (TODOROV, 2010, XXIII). Se a verdade precisa ser encarnada e estar entre as pessoas, ela tem comprometimento político, e deste modo não pode ser uma verdade universal que não apresenta compromisso com o seu interlocutor. Para Bakhtin (2012) é necessário termos verdades contingentes,

56 Seminário que tinha como professor responsável Dr Gilberto Icle e ministrado por Anna Mirabella

(Université de Nantes, França). Tinha como objetivo: analisar elementos da História e das Artes para pensar metodologias para a pesquisa em Ciências Humanas, em especial, em Educação. Teve como súmula: 1ª sessão: Verdadeiro, falso, ficcional. Criar e conhecer na era da pós-verdade. 2ª sessão: Do indício à prova. A narrativa da história de acordo com a micro-história. 3ª sessão: Estéticas do depoimento no “teatro documentário”. 4ª sessão: Figuras e funções da autoficção do pesquisador. 5ª sessão: Alunos e espectadores emancipados. Da crença à tomada de consciência.

57 Saber mais em:

119 moventes, que tem como inquietação o ato, a ação humana realizada no mundo da vida, “o único mundo em que cada um de nós cria, conhece, contempla, vive e morre” (BAKHTIN, 2012, p. 43), em que se reconhece o outro, sua responsabilidade e responsividade por aquilo que produz. No qual podemos cultivar modos de agir e pensar, e é na inquietação das vozes no mundo que criamos as verdades encarnadas, que se pode anunciar a complexidade da relação do real e do ficcional.

Complexidades não são coisas dadas, mas podem transversalmente acontecer na interferência do fazer humano, do seu agir. Nesta mesma perspectiva Mirabella (2019) esclarece que ficção é uma atividade, por isso não é passivo, considera o encontro com o outro e o mundo. Ficção exibe, mostra, condição de enunciação: a ficção diz: Eu sou ficção.

A ficção ser considerada uma atividade o é então pelos fazeres do humano, mediante o que poderemos ver de outra maneira o mundo; provocamos outro saber pela potência de fazer aparecer algo que não existia no mundo. Um pouco do que as crianças faziam cotidianamente: aprendiam a ver o mundo de outro modo: ficcionalmente. Mirabella (2019) ainda reforça a ideia de que é preciso compreender a ficção como experiência de imersão, não pensar como texto ou algo dado, mas antes o que produz emoções, pois precisa de um destinatário, espectador ativo. Um espectador que fica entre dois mundos.

Para a historiadora precisamos da ficção para atestar a verdade. Uma vez que a transposição ficcional permite contar o presente; colocar uma presença. Mostrar algo faz aparecer as ideias que temos perante o mundo e nós mesmos. A ficção não é só uma escolha estética, é verdadeiro testemunho: ao experimentarmos a ficção, nos colocamos a duvidar, a pensar. O humano precisou pensar; mas, antes disso, fazer, ficcionar; precisou da ficção para poder transformar a realidade e ampliar horizontes, projetando outras possibilidades de estar no mundo.

As crianças com o Fernandinho aprenderam a transformar a realidade e a desvelar a verdade. E deste então, aprenderam, ao escrever cartas, que poderiam também, aprender a pensar de outros modos, não em apenas uma verdade única, já que não é possível acessar o real por completo.

Do mesmo modo que as crianças não podiam acessar o real por completo, também não consigo mostrar aqui na escrita o real por completo, trago fragmentos para pensar, ideias para compartilhar e cartas para percebermos o vivido, que se

120 transformou. Durante o ano de interlocução entre o Fernandinho, as professoras e as crianças, o vivido e as cartas foram se modificando, isso não ocorreu nem espontaneamente, e muito menos como um passe de mágica. As relações entre o Fernandinho e as crianças passaram por momentos de estarem se conhecendo, isso acontecia através da escritura das cartas entre ambos.