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2. Pressupostos de aplicação: a boa-fé, a obrigação complexa e os deveres laterais

2.1. A boa-fé

2.1.2. A cláusula geral da boa-fé

Inicialmente, faz-se pertinente salientar a existência de duas acepções quanto à boa-fé, a subjetiva e a objetiva. A primeira relaciona-se com um estado de espírito dos sujeitos de uma relação, enquanto a segunda diz respeito a uma noção de confiabilidade, a uma regra de conduta. Nesse sentido (MARTINS-COSTA, 1999, p. 411).

“A expressão ‘boa-fé’ subjetiva denota ‘estado de consciência’, ou convencimento individual de obrar [a parte] em conformidade ao direito [sendo] aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem.

“Já por ‘boa-fé objetiva’ se quer significar – segundo a conotação que adveio da interpretação conferida ao § 242 do Código Civil alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos, e, bem assim, daquele que lhe é atribuída nos países da common Law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subsuntivo”.

Assim, possível perceber que a boa-fé subjetiva diz respeito a dados internos, que dizem respeito diretamente ao sujeito, funcionando como um estado. Já a boa-fé objetiva trata de elementos externos, atinentes a normas de conduta que preveem um comportamento, uma forma de agir, incidindo, aqui, como princípio (NORONHA, 1994).

Segundo Alípio Silveira (1973, p. 8), “não existe, todavia, um princípio geral e onicompreensivo de tutela da boa-fé na ordem jurídica dos vários países, para ser aplicado mesmo nos casos não previstos pelos legisladores”. Prosseguindo na explanação, o autor aponta que existem legislações que possuem preceitos mais ou menos genéricos sobre a matéria, enquanto outras que não os possuem, estando presente em grupos de disposições especiais (a exemplo do dolo, simulação, etc).

No direito brasileiro, a primeira referência expressa que se tem da boa-fé é o § 1º do artigo 130 do Código Comercial de 1850, o qual estabelece que “a inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiros espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras”.

O Código Civil de 1916, por sua vez, não instituiu a boa-fé como cláusula geral, tendo sido tratada pela maioria dos doutrinadores como um princípio do direito privado brasileiro. Além disso, a legislação material novecentista fazia alusões específicas à boa-fé, as quais,

todavia, eram pela concepção subjetiva do instituto, havendo poucos artigos que explicitavam a noção da boa-fé objetiva.

Já o Código Civil de 2002, conforme já delineado neste trabalho, pautou-se nos princípios da operabilidade, socialidade e eticidade, tendo utilizado, em razão disso, da noção de abertura do sistema para positivar cláusulas gerais e maleáveis, estando entre elas a boa-fé objetiva.

Conforme ensina Nelson Rosenvald (2005, p. 84-85):

O Código Civil de 2002 traduz a experiência jurídica brasileira, traça um quadro de nosso país, ao contrário do Código Beviláqua, inspirado em modelos do século XIX, de outras nações. Este estado de coisas gerou uma crise do modelo jurídico, que se reflete no cotidiano das pessoas, pois as escolas formalistas do direito – incluindo-se aí o positivismo – tratavam o direito como uma concepção exclusivamente técnica, descurando-se de sua vertente ética, de verdadeiro reflexo da cultura jurídica da experiência de uma sociedade (ser) e instrumento hábil a sua transformação (deve ser).

No que concerne à boa-fé, o Código Civil de 1916 não a regrava como cláusula geral, sendo tratada como princípio geral do direito (não positivado) e, em alguns casos, como conceito jurídico indeterminado (na posse e casamento putativo). Alguns artigos isolados do Código Beviláqua refletiam a boa-fé objetiva, como o art. 1.443. Mas não havia uma base social, tampouco constitucional, para a sua efetivação como modelo no direito obrigacional. Modelo fechado e dedutivo não era capacitado a alcançar os anseios éticos que propiciaram o desenvolvimento do modelo. As mesmas razões explicam a ineficácia do princípio da boa-fé nas relações comerciais, não obstante a expressa e pioneira alusão a ela no hoje revogado art. 130 do Código Comercial de 1850.

O gosto disseminado do legislador e da doutrina pela leitura exegética do direito privado e a privação de um real direito constitucional por mais de vinte anos, em virtude de um regime de exceção, foram fatores responsáveis pelo engessamento da boa-fé e as suas raras aparições em textos e decisões anteriores à Constituição Federal de 1988.

Vê-se, então, que no Código Civil brasileiro de 2002, houve a positivação da boa-fé objetiva como cláusula geral, estabelecendo-a como uma das bases de sustentação da relação jurídica contratual.

Não bastasse isso, tem-se, ao lado da expressa disposição na legislação material civil, fundamento constitucional para aplicação da boa-fé objetiva, que foi instituída implicitamente pela Carta Magna de 1988. Assenta-se no objetivo exposto na Constituição de “constituir uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I do art. 3º), que impõe um dever de cooperação entre os indivíduos, inclusive na relação contratual. Além disso, o artigo 170 do diploma constitucional estabelece a justiça social como elemento da ordem econômica. São esses os dois fundamentos constitucionais da boa-fé (SAMPAIO, 2004).

Por fim, destaca-se que, com fundamento em Larenz, Nelson Rosenvald (2005) afirma que o princípio da boa-fé objetiva aponta em três direções: 1) uma primeira, ao devedor, que deve cumprir sua obrigação não apenas obedecendo a letra da lei, mas sim ao sentido e à idéia principal do contrato, de modo que o credor fique razoavelmente satisfeito; 2) uma segunda, ao credor, que deve exercitar seu direito em correspondência à confiança depositada pela outra parte e à consideração altruísta que ela possa pretender; 3) uma terceira, que se dirige a todos os participantes, para que ajam de maneira a atender os fins da relação jurídica obrigacional, com uma consciência honrada.