• Nenhum resultado encontrado

2. Pressupostos de aplicação: a boa-fé, a obrigação complexa e os deveres laterais

2.1. A boa-fé

2.1.3. Funções da boa-fé objetiva

Ampla maioria doutrinária aponta como sendo três as principais funções da boa-fé objetiva: a) a interpretativa, funcionando como cânone hermenêutico-integrativo da relação jurídica obrigacional; b) a criativa, aumentando os deveres jurídicos existentes na obrigação pactuada pelas partes; e c) a limitadora, obstando o exercício abusivo de direitos subjetivos (MARTINS-COSTA, 1999).

Neste sub-item do capítulo trabalhar-se-á somente as principais noções envolvendo as funções interpretativa e limitadora, e, apenas de maneira introdutória, a criativa, porquanto será, posteriormente, objeto de estudo aprofundado em razão de ser um dos fundamentos da própria aplicação da teoria da violação positiva no ordenamento jurídico brasileiro.

Quanto à função interpretativa, mister destacar que há diferenciação entre o que se extrai como consequência da incidência da boa-fé objetiva, e aquilo que advém da interpretação integradora. A interpretação integradora tem como base a explicitação da vontade das partes no momento da constituição da relação obrigacional, enquanto a boa-fé objetiva é mais ampla, funcionando, por vezes, como limitadora de direitos e em todas as fases do vínculo contratual (COUTO E SILVA, 1976).

Nelson Rosenvald (2005, p. 88), ao tratar do assunto expõe que:

[...] Com efeito, a distinção se avulta, pois a interpretação integradora se adstringe somente à investigação e à explicitação volitiva das partes ao tempo da constituição do ato. Já a boa-fé objetiva se estende a uma órbita bem mais ampla, visto que alcança a relação obrigacional em toda a sua complexidade, abrangendo as suas conseqüências – mesmo aquelas não previstas quando de sua gênese –, até o tempo de seu adimplemento.

Nesse mesmo sentido, Karl Larenz opera a distinção entre o contrato em si e a relação contratual que é posta em vigor por meio do contrato. Enquanto a interpretação do contrato se prende à vontade das partes – fundamentos do negócio jurídico –, a regulamentação contratual será examinada em um sentido

que ultrapassará a subjetividade dos contratantes, devendo compatibilizar-se com os princípios dados pelo ordenamento jurídico, a fim de que o contrato receba uma interpretação unitária. Isto só poderá ocorrer pela concreção mediante a boa-fé objetiva.

Acerca da interpretação, Laerte Marrone de Castro Sampaio destaca dois desdobramentos da boa-fé: 1) “o primeiro, na regra de que os contratos devem ser interpretados tomando-se por base o sentido objetivo. Exceto quando o destinatário da declaração conheça a real vontade do declarante, ou devesse conhecê-la, se tivesse obrado com diligência”; e 2) “o segundo ponto a ser observado indica que, no caso do sentido objetivo suscitar dúvidas, há que se preferir o significado que a boa-fé indique como mais razoável” (2004, p. 50-51).

Sampaio continua em sua explicação afirmando que a boa-fé objetiva também tem função integradora, quando se preenche eventual lacuna quando as partes não regulam, no negócio jurídico, todas as situações que irão se deparar no curso da relação obrigacional entabulada.

Sobre a boa-fé funcionando de maneira integrativa, escreve Judith Martins-Costa (1999, p. 429):

Isso porque, observa Giovanni Maria Uda, para que possa ocorrer uma coerente produção dos efeitos do contrato, tornam-se exigíveis às partes, em certas ocasiões, comportamentos que não resultam nem de expressa e cogente disposição legal nem das cláusulas pactuadas. A boa-fé atua, como cânone hermenêutico, integrativo frente à necessidade de qualificar esses comportamentos, não previstos, mas essenciais à própria salvaguarda da fattispecie contratual e à plena produção dos efeitos correspondentes ao programa contratual objetivamente posto.

Na doutrina italiana, estudo ainda atual de Massimo Bianca registra, com integral adequação: “Ainda que referida ao momento executivo, a boa-fé conserva a sua função de integração da relação. A tese segundo a qual a boa-fé não integraria o contrato, mas serviria tão-só para corrigir o rigoroso juízo de formal conformidade de comportamento à lei, não pode ser compartilhada. Ainda que aplicada na fase da atuação do contrato, a boa-fé é sempre uma regra objetiva que concorre para determinar o comportamento devido”.

A boa-fé age também como limitadora de direitos, concedendo “renovado perfil à autonomia privada, conduzindo os direitos subjetivos a limites equilibrados, prestigiando o princípio da solidariedade e, em última instância, a dignidade das partes” (ROSENVALD, 2005, p. 116).

O instituto da boa-fé não admite condutas que vão de encontro ao mandamento de agir lealmente entre as partes. São exemplos de manifestações da boa-fé como limitadora de direitos o adimplemento substancial, bem como as situações em que incidem os institutos da

supressio, da surrectio, do tu quoque e do venirem contra factum proprium (MARTINS- COSTA, 1999).

A respeito do assunto, Laerte Marrone de Castro Sampaio expõe (2004, p. 76-85): A boa-fé responde ainda na relação contratual pelo controle no exercícios dos direitos. O credor, ao fazer valer sua posição de vantagem, não pode agir a seu talante, mas deve proceder com correção e lisura.

[...] A evolução do Estado Liberal para o Social, afirma Wieacker, implicou a relativização dos direitos pela sua função social, bem como a vinculação ético- social desses direitos. Dessa forma, a boa-fé objetiva funciona – ao lado de outros institutos – como critério para a delimitação do exercício de um direito. Na visão de Larenz, a boa-fé é o mais importante limite para o gozo de um direito.

[...] Conforme afirma Larenz, não é possível indicar exaustivamente quando o exercício de um direito infringe a boa-fé.

[...] Finalizando o assunto, indaga-se se a boa-fé traz como consequência o desaparecimento mesmo do direito, ou se apenas constitui um impedimento temporário ao seu exercício. Wieacker, com o apoio de Endemann, Lehmann, Esser e Siebert, manifesta-se pela segunda alternativa, asseverando que o titular não se encontra privado de no futuro exercer seu direito, desde que o faça lealmente. Todavia, adverte que “la simple deslealtad pasajera no será probablemente lo normal”.

De fato, se teoricamente a boa-fé não aniquila o direito, em algumas situações – que tendem a ser maioria – a confiança depositada na outra parte acaba praticamente por inviabilizar que o titular venha a se valer da sua posição jurídica de vantagem. A situação mostra-se quase – para não dizer totalmente – irreversível.

Por fim, como dito anteriormente, far-se-á apenas uma introdução acerca da incidência da boa-fé como criadora de deveres laterais, porquanto o tema será objeto de estudo em tópico próprio no decorrer do trabalho.

A respeito do assunto, salienta-se que a boa-fé objetiva, no desenvolvimento do vínculo obrigacional, cria deveres laterais, os quais advêm da própria incidência do instituto. Isso gera dois efeitos concretos: a) o nascimento de deveres obrigacionais que não possuem fonte na ação volitiva das partes (deveres laterais); e b) o alargamento da noção de relação jurídica obrigacional em decorrência da incidência desses deveres (noção do vínculo obrigacional complexo).

2.2 A relação obrigacional complexa