• Nenhum resultado encontrado

Classificação lingüística das piadas

CAPÍTULO

4. PIADA: CONCEITUAÇÃO; CONSTITUIÇÃO; PRÁTICAS

4.4 Piadas: práticas

4.4.2 Classificação lingüística das piadas

Attardo et al. (1994) propõem uma primeira grande classificação para as piadas: elas se dividiriam em referenciais e verbais. As piadas referenciais dependeriam apenas do significado das palavras, enquanto que as verbais dependem, além do significado, da forma verbal envolvida na confecção da piada. Na tentativa de diferenciar uma da outra, Attardo et al, baseando-se em Cícero ([106 a. C – 43 a. C] 1942), realizaram um teste empírico nas 2000 piadas que selecionaram para realizar seu estudo. O teste consiste em mudar as palavras no disjuntor – poderia-se fazer uma analogia entre esse disjuntor e o gatilho que “aciona” a piada: caso a piada continue engraçada, ela é referencial; se a piada perder a graça, ela será verbal, porque dependerá de palavras específicas na superfície do texto para que se torne engraçada. As que foram classificadas em verbais, foram divididas em sintáticas, lexicais e aliterativas, que, após essa divisão, ainda foram classificadas em:

Piadas verbais

Baseadas na ambigüidade Não baseadas na ambigüidade

92

Lexicais Sintáticas Aliterativas34

(Attardo et al., 1994)

Embora achemos válida a pesquisa de Attardo et al., pensamos que há um certo equívoco no estudo. Primeiramente, porque, a partir de seu gráfico, as piadas primeiro receberiam a classificação de baseadas na ambigüidade e não baseadas na ambigüidade, para, só após essa etapa, serem classificadas em lexicais, sintáticas e aliterativas. Outra questão é o fato de que, a partir do momento em que se analisou piadas que são escritas, ou mesmo que eles houvessem estudado piadas que são “contadas” numa conversação, por exemplo, elas seriam sempre verbais. Cremos que o que os autores estão chamando de piadas verbais poderiam ser melhor denominado de piadas lingüísticas, no sentido de “brincarem” com os níveis lingüísticos, a saber fonológico, morfológico, sintático, etc. Um autor que, a nosso ver, realizou uma classificação com maior sucesso foi Possenti (1991, 1998) quando, na tentativa de propor não uma lingüística baseada no humor, mas que se propusesse a pensar o que há de lingüístico no humor, idealizou uma classificação para piadas.

Em nenhum momento, este autor faz uma separação entre piadas verbais e referenciais, no sentido em que Attardo et al. o fizeram; ao contrário, inclusive por seguir alguns dos preceitos de Raskin (1985) a respeito das piadas verbais, ou seja, realizadas na linguagem escrita ou falada, Possenti deixa claro que pretende analisar piadas escolhidas por “nível”, isto é, fonológicas, morfológicas, lexicais, sintáticas etc. “Tentarei, em cada caso, mostrar os problemas envolvidos, e se verá que nunca há um só, apesar da brevidade dos textos.” Esta ressalva de Possenti é importante, porque trabalhar com humor, em geral, já é visto com certa desconfiança pela Academia, e, quando a tarefa é falar sobre piadas, o descrédito talvez seja ainda pior, porque, ainda segundo este autor, trata-se de textos curtos, e, por isso, crê-se que não constituem dados complexos para análise. Já contestamos esse

93

problema da extensão das piadas em outros momentos, e não o faremos novamente, inclusive porque, como já diria o ditado popular, ambigüidades à parte: “Tamanho não é documento”. O objetivo de Possenti ao trabalhar com as piadas, mostrando que são dados privilegiados para a lingüística, é provar que:

“a) elas mostram claramente que as línguas não são estruturas acabadas, isto é, não é verdade que nelas tudo é opositivo e distintivo; pelo contrário, seu funcionamento exige uma contínua inter-relação entre fatores de ordem gramatical e fatores de ordem cultural, ideológica, cognitiva etc; b) porque as características da língua aparecem nas piadas de forma condensada, o que permite que, com um único dado, abordem-se diversos tipos de problemas.”

Ele amplia a classificação proposta por Attardo et al. e divide as piadas “lingüísticas” em

1) fonológica: - Ave, Eva!35

- Ave, Adão! (Ah! Viadão). 2) morfológica:

- Já comeu maracujá? - Mara, não.

3) lexical:

- Eu nasci naquela casa. - Eu nasci no hospital.

- Por quê? Você estava doente? 4) metalingüística:

- Quem fala errado? Cebolinha ou Mônica? - Cebolinha.

Verbal Jokes

Based on ambiguity Non-based on ambigu ity

Le xica l Syntactic Alliterative

94

- Não. Esse fala “elado”. 5) sintática:

- Sua mãe ta aí. Você não vai receber?

- Receber por quê? Por acaso ela me deve alguma coisa? 6) sociolingüística/ Variação lingüística:

Domingo à tarde, o político vê um programa de televisão. Um assessor passa por ele e pergunta:

- Firme? O político responde: - Não. Sírvio Santos. 7) inferência:

- Que mulher feia! - Que homem bêbado! - Mas amanhã eu to bom! 8) pressuposição:

- Preciso de um emprego. Tenho 15 filhos. - E o que mais o senhor sabe fazer?

9) tradução36:

- Un cannibal, c’est une persone qui va au restaurant et commande...un garçon.

10) contraideologia:

- É verdade que você é solteiro? - É. Eu não tenho mulher.

- Então quem é que manda em você? 11) sentido independente do falante:

- Eu não sou racista. Só que não gosto muito de alemão. Podiam ter acabado com os judeus e fizeram um serviço de preto.

12) discurso não óbvio:

- Esse cara é bobo. Eu como a mulher dele e ele não sabe. Ele come a minha e eu sei.

13) Dêixis

35 Todas as piadas constituem exemplos dados por Possenti (1991, 1998).

95

Duas “Cobras” olhando o céu, numa noite estrelada: - Como nós somos insignificantes!

- Você e quem? (L.F.Veríssimo) 14) Conhecimento prévio

- Sabe quais são as comidas preferidas do Collor? - Quais?

- Antes das eleições, lula e truta. Depois das eleições, tubarão e polvo.

Como o autor já nos havia alertado, sua classificação pretende abarcar, além dos níveis lingüísticos, outros mecanismos que são mobilizados nas piadas. Também, embora o gatilho das piadas se dê no nível lingüístico, fica claro para o leitor que a interpretação destes textos não pode se basear apenas nesse critério, isto é, os limites do lingüístico são extrapolados e o discurso intervém para que possamos compreender o efeito de sentido que a piada quer criar. Como procuramos mostrar durante todo este trabalho, não é possível, nem desejável, nem aceitável que se dicotomize língua e discurso; o que pode acontecer é que se queira privilegiar um aspecto ao invés do outro, mas não dissociá-los.

Antes que falemos sobre a dificuldade que existe em distinguir piada e adivinha, principalmente, gostaríamos de apenas pontuar algumas questões em relação à classificação acima proposta por Possenti. Como já dissemos, a classificação proposta por ele, além de ser extremamente válida, é uma contribuição importante para que cada vez mais se consolide a relação entre a lingüística e o humor; porém, algumas piadas, ou melhor, o enquadre que Possenti deu a elas, não é adequado, a nosso ver.

Primeiramente vêm as piadas lingüísticas, do ponto de vista dos níveis lingüísticos, depois piadas cujo gatilho seria a inferência, a pressuposição, sentido independente do falante, etc. Claramente, podemos observar que há uma quebra na linearidade da classificação proposta. A título de exemplo, gostaríamos de fazer um breve comentário das três classificações mencionadas acima: inferência e pressuposição, por exemplo, estariam melhor classificadas como pragmáticas e, mesmo assim, ainda seria problemático, pois principalmente a inferência constitui uma estratégia cognitiva presente no processamento de todos os textos, em maior ou em menor grau. No caso da piada, para que a compreensão 36 Esse item tem o propósito mais de mostrar as dificuldades de tradução das piadas do que realmente de se

96

desta se concretize, a inferência é um dos principais fatores. Também achamos bastante questionável a classificação de sentido independente do falante, pois, mesmo que entendamos que Possenti se refira a um sentido que o falante não previu, que passou sem que ele o desejasse, a nomenclatura utilizada poderia dar a falsa impressão de que o sentido pré-existe, independe do texto, do receptor e do produtor.

Na piada, mesmo sendo um texto anônimo, a construção dos sentidos não vai se dar de forma diferente de outros textos; a tríade (texto, receptor e produtor) se faz necessária sempre que formos interpretar um texto. Não é que o falante não perceba que está veiculando um discurso racista, o que acontece com textos como o da piada: Eu não sou

racista. Só que não gosto muito de alemão. Podiam ter acabado com os judeus e fizeram um serviço de preto; ou Não tenho nada contra negros, mas não os quero como chefe (Van Dijk, 1992:192). A questão é que estes textos, antes até de serem classificados como semânticos/pragmáticos, devem ser vistos como exercendo “um papel funcional como um lance dentro de uma estratégia global, por exemplo, numa estratégia que combine representações negativas de minorias com auto-representações positivas como cidadão tolerante”. (Van Dijk, 1992:193).