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Piada enquanto um gênero pertencente ao domínio humorístico: conceituação

CAPÍTULO

4. PIADA: CONCEITUAÇÃO; CONSTITUIÇÃO; PRÁTICAS

4.2. Piada enquanto um gênero pertencente ao domínio humorístico: conceituação

Situar o gênero piada dentro das teorias sobre humor apresentadas no capítulo 3 constitui tarefa árdua, uma vez que, dos poucos trabalhos existentes relacionados com humor, menos de um terço situa-se no âmbito lingüístico. Embora o humor venha sendo investigado desde a antiguidade, da parte dos lingüistas não constituiu matéria de grande interesse. O que há escrito sobre humor situa-se, geralmente, no âmbito da Literatura (Bakhtin, 1970), da Antropologia (Bremmer e Roodenburg, 2000) ou da psicologia/psicanálise (Freud, 1905), para citar alguns. Essa dificuldade começa, como já mostramos, na própria definição do que é humor, comédia, chiste, piada, etc. Para nós, interessa-nos caracterizar a piada como um gênero pertencente ao domínio do humor, pelo fato de que o humor permite rir com e contra o outro, seja uma pessoa em particular ou uma instituição, e também porque demanda um trabalho não apenas com o conteúdo, mas também com a linguagem.

Esse recorte está sendo feito para atender aos nossos objetivos nesta dissertação, mas, como pudemos perceber, não é muito ou nada nítido o limite entre os termos citados; por isso, não exatamente nos preocuparemos com a questão da terminologia, porque, se esse problema não foi resolvido até hoje, mesmo com o esforço de vários autores, em diferentes campos do saber, não temos a menor pretensão de fazê-lo nesta dissertação. Classificações sempre são muito questionáveis e perigosas; assim, procedemos a um recorte, tentando, na medida do possível, aproximar e diferenciar teorias e autores que se

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preocuparam em pensar a questão da piada enquanto um gênero humorístico. Muitas vezes eles vão usar termos diferentes, tais como witz, verbal jokes, mop, humour, etc., para o que nós chamamos de piada.

Primeiro tentaremos restringir a amplitude da definição de humor dada por Bremmer e Roodenburg (2000), que o definem como “qualquer mensagem - expressa por atos, palavras, escritos, imagens ou músicas – cuja intenção é a de provocar o riso ou um sorriso”. Como podemos perceber, é uma definição bastante ampla, em que cabem desde os simples trotes, trocadilhos, até piadas, crônicas ou qualquer coisa que provoque o riso, até mesmo uma simples careta.

Dolitsky (1992:37), a partir da definição bakhtiniana de humor como transgressão de regras, classifica as piadas como lingüísticas, pragmáticas e sociais. Segundo ele, “as piadas puramente lingüísticas devem ser baseadas na ambigüidade e no desvio semântico”28. O humorista, nesse caso, transgride a regra conversacional de cooperação de Grice (1982), levando o ouvinte/leitor a uma interpretação “errada”, utilizando-se de uma estratégia despistadora. Já as pragmáticas, baseiam-se na relação entre a palavra e o mundo; este tipo de humor, segundo o autor, “transgride as leis de como nós acreditamos que o mundo funciona.”29 Finalmente, as piadas socialmente construídas baseiam-se na transgressão de regras instituídas socialmente, institucionalmente, regras que se baseiam no “politicamente correto”, e, geralmente, elas têm como tema algum tabu, como são exemplo as piadas étnicas, de gênero, entre outras.

É importante salientar que a transgressão dessas regras não se dá de forma explícita, ao contrário, a piada trabalha muito com o não-dito, do que é inferido pelo ouvinte/leitor. O humorista sabe que a audiência aplicará as regras lingüísticas e pragmáticas para preencher as lacunas deixadas pela piada. Como bem salienta Dolitsky (1992:42) “o problema do não dito é em geral a compreensão de como é possível dizer alguma coisa sem, de fato, aceitar a responsabilidade de tê-la dito; em tal situação, o falante se beneficia tanto da eficácia do discurso como da inocência do silêncio.”30 Como podemos perceber, a partir das considerações feitas acima, a piada pode ser definida pela sua transgressão, já que ora

28 A tradução das citações é de responsabilidade minha. Vale ressaltar que o texto original só vai ser transcrito

quando a citação for literal. “Purely linguistic humor may be based on ambiguity and semantic deviation.”

29

“the laws of how we believe the world turns.”

30 “The problem of the unsaid is understanding how it is possible to say something without, in fact, accepting

the responsibility of having said it; in such a situation, the speaker benefits both from the efficaciousness of speech and from the innocence of silence”.

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transgride as regras que definem a comunicação cooperativa, por exemplo, ora viola um tabu social através de uma referência implícita.

Essa tese de que as piadas violam as máximas de conversação estabelecidas por Grice é questionada por Attardo (1993), porque, segundo este autor, as piadas funcionam em trocas interpessoais/conversacionais, isto é, não podemos dizer que as piadas não sejam cooperativas, já que elas são trocas humorísticas bem sucedidas. O que acontece é que as piadas obedecem a algum tipo de cooperação que não o presente numa troca interacional/comunicativa na qual se pretenda passar algum tipo de informação31. A alternativa, segundo Attardo, para explicar essa aparente violação das regras, seria considerarmos o que Raskin (1985) denominou de comunicação non-bona-fide.

Raskin, na tentativa de estabelecer uma teoria semântica baseada em scripts para estudar o humor, baseando-se, para isso, nas piadas, o define como um ato de comunicação

non-bona-fide; isto é, a função do humor não seria, necessariamente, a de fornecer

informação, mas principalmente brincar, inverter, “transgredir” as normas lingüisticamente, pragmaticamente e socialmente estabelecidas. Assim, a princípio, a piada viola uma das quatro máximas estabelecidas por Grice: o que o leitor vai fazer, ao reconhecer a violação e enquadrá-la dentro do gênero humor, é passar para o modo de comunicação non-bona-fide, isto é, reinterpretar o texto, reconhecendo a violação como um ato proposital. A clássica piada que Raskin e todos os outros que o citam usam, para exemplificar como a piada opera, é a seguinte:

Exemplo (12)

- O doutor está em casa? o paciente perguntou num sussurro rouco.

- Não – sussurrou em resposta a jovem e bela esposa do doutor – Pode entrar.

O que temos aí, segundo ele, são dois scripts, a saber: i) Doutor; ii) Amante. Para que um texto seja considerado piadístico, segundo o autor, este tem que ser compatível, total ou parcialmente, com dois scripts diferentes e estes scripts têm que ser opostos. No caso da piada acima, que aparentemente seria um nonsense para Grice, uma vez que, se o doutor não está, o “paciente” não tem motivos para entrar; se transferirmos essa troca

31 Mesmo assim poderíamos questionar se realmente as piadas não veiculam realmente qualquer tipo de

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comunicativa para um modo non-bona-fide de comunicação, percebemos que, na verdade, o aparente nonsense é explicável a partir do script do amante, do adultério. Assim, não fica configurada uma falta de cooperação entre os falantes, ao contrário, pelo encaminhamento argumentativo presente na piada, isto é, da possível ligação amorosa entre a esposa e o paciente, houve, sem dúvida, cooperação. Talvez essa seja a grande questão: a piada não viola as máximas de forma aleatória; é o trabalho do narrador que vai atribuir a um texto a característica de ser humorístico. A presença do narrador na piada, por meio das expressões “sussurro rouco”; “jovem e bela esposa” são exemplos disso, pois o script do adultério é acionado pelo leitor em boa parte devido a essa contextualização dada pelo narrador, por meio de elementos lingüísticos.