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Sebastião Nunes e a contra-propaganda

3.2. Classificados: corações e mentes

Para comprovar tais apontamentos, vejamos o enunciado do nosso primeiro texto de análise – “Classificados: corações e mentes”:

Avaliando a disposição gráfica do poema ou sua “visualidade diagramática” (OLIVEIRA, 2004, 12), destacamos o anúncio desenvolvido por Sebastião Nunes. O termo “classificados” centralizado compõe o duplo papel de título do poema, em termos literários, e de vinheta ou chamada, se utilizarmos o jargão da comunicação. Tradicionalmente, os classificados são constituídos de pequenos anúncios de oferta e procura de bens, utilidades e serviços, feitos geralmente por particulares e publicados em seção especializada de um jornal ou revista (SILVA, 2005). Na esteira do pensamento de Claus Clüver (2006), podemos dizer que a relação intermidiática nesse texto de Sebastião Nunes ocorre na transição entre gêneros textuais e nas transformações temáticas, visto que o classificado tradicional, presente na mídia comunicativa, é subvertido e transformado em um classificado nada convencional, cujo foco é operar comercialmente bens intangíveis, ou seja, mentalidades e sentimentos. Como sintoma da mercantilização em larga escala que afeta também valores até então inalienáveis ou inegociáveis, corações e mentes recebem, na esfera da sociedade de consumo, o tratamento de produtos ou mercadorias que passam a ser processados como bens comerciais. Considerados como artigos novos ou usados, ‘emoção’ e ‘razão’, ‘retórica’ e ‘lógica’, representados, respectivamente, por “corações e mentes”, entram no embalo propagandístico e passam por um desinvestimento em termos abstratos com o objetivo de fazerem parte do circuito materialista, em um processo de “coisificação” do sujeito e personificação do objeto. Os verbos presentes no linguajar comercial – “compramos, trocamos, vendemos, reformamos, adaptamos” (NUNES, 1995, 36) – sustentam a proposta de condicionar a satisfação do pensamento e do afeto humano à competência aquisitiva da produção capitalista divulgada pela publicidade.

Diferentemente da disposição gráfica convencional, na qual há vários classificados disputando espaço na página de um jornal, o anúncio proposto

ironicamente por Sebastião Nunes encontra-se isolado em meio ao espaço branco. Especularemos várias hipóteses de interpretação do significado desse “vazio desconcertante”. Tal fato pode ter espantado a concorrência que não teve condições de apresentar uma proposta que pudesse derrubar o anúncio de procura comercial de “corações e mentes”, impedindo a existência de outras ofertas naquele classificado. Ou ainda, o anunciante pode ter comprado toda aquela página apenas para divulgar o seu produto com exclusividade naquele espaço dos classificados. Podemos também admitir como hipótese o fato de que os outros anúncios presentes nos classificados conseguiram desencadear os seus efeitos de induzir o leitor/consumidor à procura do produto divulgado, e, por isso, já não se encontram mais presentes na página. Em contrapartida, encontra-se “empacada” a negociação de corações e mentes, proposta pela “agência de grande porte”, o que justifica a permanência solitária deste anúncio nos classificados.

Quando Sebastião Nunes revela, por meio da assinatura do classificado, que a “agência de grande porte” é o anunciante da proposta publicitária de comercialização de corações e mentes, o autor destaca as artimanhas do texto publicitário. Este se fundamenta na associação de uma ou mais ideias que apelam, simultaneamente, para o racional e o emocional das pessoas, com argumentações sedutoras através da palavra. Segundo Marilde Sievert, “é ponto pacífico que a maneira mais segura de induzir o público para a aquisição de qualquer coisa é apelar para as suas emoções” (2003, 21). Propaganda eficiente vende, assim, não só produtos, mas principalmente vantagens, desejos, sonhos que possam ser alcançados por meio do produto, da marca e do serviço anunciados.

Ciente de tais estratégias, Sebastião Nunes, rasurando as fronteiras intermidiáticas e explorando aspectos transmidiáticos, aproveita-se de sua atuação interdisciplinar, como ex-publicitário e poeta, para destacar, às avessas, a partir da

formulação de um classificado literário as coordenadas do caminho publicitário, quais sejam: a persuasão (representada pelo “coração”) e o convencimento (simbolizado pela “mente”). Explica João Anzanello Carrascoza (2002) que um discurso que deseja convencer é dirigido à razão por meio de raciocínio lógico e provas objetivas, podendo atingir um ‘auditório’ universal. O discurso que deseja persuadir tem um caráter mais ideológico, subjetivo e intemporal: busca atingir a vontade e o sentimento do interlocutor por meio de argumentos plausíveis ou verossímeis, visando obter a sua adesão, dirigindo-se assim mais para um ‘auditório’ particular. Convencer é, pois, um esforço direcionado à mente, à Psique; persuadir é domínio do emotivo, próprio de Vênus, deusa do amor, daí a sua proximidade com a arte da sedução. Reside na procura amorosa do consumo sustentada pela publicidade um dos componentes primordiais para o fenômeno descrito por Sigmund Freud (1974) como “economia libidinal”. Diante de tais norteadores, compreendemos a avaliação de Carrascoza, a respeito do exercício retórico de promoção do consumo via propaganda:

não há dúvida entre os estudiosos da comunicação de que a publicidade é um exemplo notável de discurso persuasivo, com a finalidade de chamar a atenção do público para as qualidades deste ou daquele produto/serviço, ou de uma marca em caso de campanhas corporativas. Seu objetivo preclaro é não apenas informar, mas informar e persuadir [...] qualquer peça publicitária intenta alcançar um alto grau de persuasão, uma vez que idealmente deve desencadear uma ação, o ato de consumo, ainda que num futuro impreciso (2002, 18).

A comunicação persuasiva, da qual o marketing faz uso constante, conferiu à publicidade o status de “linguagem da sedução”, segundo Nelly de Carvalho (2002), pois, conforme salienta Sal Randazzo, em virtude do emparelhamento cada vez maior dos produtos quanto às suas capacidades técnicas de atender ao consumidor, “as batalhas mercadológicas realmente importantes estão acontecendo em campo psicológico: uma luta para conseguir uma fatia maior do coração do consumidor” (1996,

45). Os profissionais de marketing reconhecem cada vez mais que para manter e/ou ampliar a fatia de mercado, também é preciso fazer uso de artifícios persuasivos para conquistar a “fatia do coração” do público-alvo. Ao privilegiar por excelência o coração, terreno emocional das adesões sentimentais, em relação à cabeça, espaço da reflexão crítica, o marketing está mais empenhado em persuadir do que convencer.

Os classificados poéticos de Sebastião Nunes trazem à baila conflitos éticos que representam a sociedade em situações-limite. Munida deste propósito, tal literatura se comporta como importante operador de leitura e de compreensão das condutas que hegemonicamente marcam o campo publicitário. Trata-se de uma aguçada crítica a uma sociedade marcada por apelos publicitários. Na esteira do pensamento de Aristóteles (1959), chegamos à conclusão de que os publicitários tendem a abrir mão dos “raciocínios necessários” que sustentam a Lógica para fortalecer o seu discurso persuasivo a partir de “raciocínios preferíveis”. A partir das teses propagandísticas que articulam a promoção de seus feitos e a omissão de suas limitações, o mercado de anunciantes busca no primeiro plano a rentabilidade, deixando a sustentabilidade a reboque daquele objetivo.