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2. A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA REALIDADE: DAS INTERAÇÕES

2.3 CLAUDIA E MARIE CLAIRE E A ESCOLHA DO OBJETO DE

2.3.1 Claudia: #eutenhodireito, mas não sou feminista

Ao seguir a tendência de revistas femininas no exterior, Claudia surge no Brasil em 1961, focada, inicialmente, em mulheres casadas e com filhos. A publicação da Editora Abril nasce em 1961 junto com a indústria de eletrodomésticos e a ascensão da classe média no país (SCALZO, 2004), mas também com a instalação da chamada indústria cultural. A década de 1960 foi o período de transição do cenário político e cultural no Brasil, que determinou a consolidação da indústria cultural no país nas décadas seguintes, especialmente após o golpe de 1964. A rede nacional de telecomunicações, a partir dos anos 1960, ofereceu suporte tecnológico, essencial para que a comunicação pudesse integrar as diferentes regiões do país (RUBIN e RUBIN, 2004). Sobre o surgimento de Claudia, De Luca afirma:

Inicialmente dirigida por Luis Carta, inspirava-se em similares estrangeiras e chegou às bancas em edição de 164 mil exemplares, número bastante significativo para a época. Seu público privilegiado sempre foi a mulher casada e mãe, que consagra(va) seu tempo, sobretudo, aos cuidados da família e com poder para decidir ou, pelo menos, influir na escolha e no consumo de vasta gama de produtos – alimentos, produtos de higiene e beleza, roupas, remédios, móveis, utensílios e eletrodomésticos.” (DE LUCA, 2016, p. 454)

Nesse período, as mulheres são reconhecidas como influenciadoras ou mesmo responsáveis pelos cuidados da família e suas escolhas de consumo, tornando-se um alvo para o mercado editorial. Embora Claudia fosse pautada por matérias de receitas, moda e beleza, já em 1963, a psicóloga e escritora Carmen da Silva passa a assinar uma coluna sobre relação entre homens e mulheres, e a condição de feminino e feminismo. “Sua coluna ‘A Arte de Ser

Mulher’ quebrou tabus e aproximou-se de forma inédita das mulheres, tratando temas até então intocáveis, como a solidão, o machismo, o trabalho feminino, a alienação das mulheres, seus problemas sexuais” (SCALZO, 2004, p. 34). De Luca (2016), ao falar das contradições das publicações femininas na época, lembra que mesmo com a inserção da coluna de Carmen da Silva, “que destoava do tom geral da publicação” (DE LUCA, 2016, 451.), o espaço na revista era insuficiente para dar conta da problemática da questão feminina e feminista no país.

Na década seguinte, as revistas são obrigadas a se adaptarem à nova realidade dos meios de comunicação, pois a televisão se torna popular no país. A partir disso, elas se tornam cada vez mais segmentadas, mesmo no âmbito da divisão de revistas femininas. As editoras passam a tentar atingir públicos cada vez mais específicos. Outros temas como saúde, orçamento doméstico e sexo foram crescendo entre as publicações femininas de acordo com o desenvolvimento sociocultural da mulher brasileira. As publicações já existentes se adaptam à realidade dessa “nova mulher”, enquanto outras, como Nova (título brasileiro da americana Cosmopolitan), surgem para atender a mulher profissional, que cresce no mercado de trabalho, deixando de ocupar apenas o espaço doméstico.

Ainda na década de 1970, o tema sexo “se torna o principal produto editorial” (BUITONI, 2009, p. 115). De insatisfação sexual, à masturbação e orgasmo, a pauta feminista foi ganhando espaço. Buitoni diz que foi nesse período que algumas revistas femininas passavam a escrevem, “com todas as letras, os nomes dos órgãos sexuais femininos, coisa inimaginável nas contidas revistas da década de 1960. [...] As revistas mais comportadas, como Claudia, foram muito cautelosas”. (Idem.)

As mudanças aceleradas na sociedade em meados do século passado fizeram com que as revistas femininas se alterassem, em resposta às mudanças dos papéis atribuídos às mulheres.

Assim, em 1991, Claudia sugeria: ‘Se você precisa [só] de sexo, procure alguém com o qual não queira um relacionamento a longo prazo [...]. Tome a decisão lembrando que se trata apenas de uma experiência agradável (e faça disso uma experiência segura: exija camisinha)’. Não resta dúvida de que, por meio das páginas das revistas, podem-se acompanhar alterações em

termos de valores, padrões e comportamentos socialmente aceitos, tendo em vista que as revistas femininas dialogaram com diferentes perspectivas e projetos, compartilhados coletivamente. (DE LUCA, 2016, p. 457)

Para Buitoni (2009), em meados da década de 1970, a revista Claudia representa “o espírito da década em relação à mulher” (BUITONI, 2009, p. 105). A autora compara a revista Realidade14 com Claudia, mostrando que Realidade apresenta em uma edição uma diversidade de mulheres, o que lhe é autorizado pelo seu perfil editorial caracterizado por reportagens jornalísticas. Enquanto que Claudia, como uma revista feminina, apresenta um universo representativo muito menor: “Ou é a mulher romântica, ou é a mulher ligada ao lar”. Os temas apresentados em Realidade quase nunca surgiram nas páginas da imprensa feminina (BUITONI, 2009, p. 105).

Claudia, entretanto, chegou em um contexto de revistas femininas no Brasil, em que a maioria delas se dedicava a fotonovelas ou a comentários de filmes (BILTTEBRUN, 2018). Nesse sentido, Bittelbrun (2018, p. 88) considera que a revista feminina à época “concedeu, dentro de alguns limites, mais protagonismo às leitoras, ampliando seus possíveis assuntos de interesse e reiterando a importância da mulher, ainda que no âmbito doméstico”. A autora diz ainda que Claudia, como a revista mais antiga do segmento a manter o formato original (Idem., p. 15), dessa forma, se esforçou para representar a mulher de seu tempo:

Seria preciso se agarrar ao que representa a temporalidade moderna em cuidados com o corpo e maneiras de agir, deixando para trás tudo o que seria retrógrado, velho, as formas “não- Claudia”. Mais do que isso, com suas dicas para ser independente, de bem com a vida, a publicação seria um apoio para se chegar às melhores performances de “ser mulher” hoje, o que foi reforçado ainda pelos slogans da revista e pelos exemplos de sucesso que se multiplicariam em capas, editoriais e reportagens. (BILTTEBRUN, 2018, p. 16)

14 A edição nº10 da revista Realidade foi apreendida no terceiro ano da ditadura, em 1967, em

nome da “moral e dos bons costumes”. No exemplar, reportagens amplas sobre a mulher brasileira, uma pesquisa com 1.200 entrevistas para entender a situação da mulher, uma matéria sobre um parto realizado com uma parteira no interior, sobre a “superioridade” da mulher, sua biologia, histórias sobre a maternidade sem um cônjuge, sobre uma mulher diretora de uma empresa ou mesmo sobre uma mãe de santo, entre outras pautas que colocavam a mulher a cima da margem da invisibilidade doméstica. (BUITONI, 2009, p. 104-105)

Bittelbrun e Vogel contam que a revista chegou ao século XXI com tiragem de 500 mil exemplares/mês, com reportagens sobre saúde, estética, comportamento, filhos e profissão, além de depoimentos de celebridades e leitoras.

O direcionamento que enfatiza modelos de vida e padrões de consumo de bens materiais e simbólicos, e mesmo o próprio slogan “Independente, sem deixar de ser mulher”15, incentivando

a emancipação feminina, mas reiterando um certo padrão de feminilidade, evidenciam que, certamente, Claudia lida com questões culturais e ideológicas de maneira bastante complexa, e que endossa uma tendência polêmica acerca do jornalismo realizado por revistas direcionadas às mulheres. (BITTELBRUN; VOGEL, 2010, p. 168)

Em seu mídia kit mais recente16, a marca diz que “fala com 8 milhões de

mulheres”, a partir de 200 mil assinantes da versão impressa (250 mil na versão digital – tablete) e com circulação total de 367 mil exemplares17, além de 1,9

milhões de seguidores em suas redes sociais. Com 88% de leitoras mulheres, 58% entre 25 e 49 anos, e 62% de classe AB, Claudia identifica seu público com o que elas têm: “mais estudos, menos filhos, mais renda”; e o que elas são: “Mais engajadas, menos receosas, mais livres”. Além de: “elas sabem que têm direitos”.

Seu novo lema e “norte para o conteúdo” desde a sua edição manifesto18,

em outubro de 2017, é: #EuTenhoDireito. E desde então, todas as suas capas apresentam esta hashtag.

Uma trajetória feita das pequenas e grandes revoluções brasileiras. A maior plataforma feminina do país, que dá voz e visibilidade a tudo que essas mulheres já conquistaram. Sobre todas as mulheres, suas escolhas e propósitos e o que faz cada uma delas se conectar com seus valores. A marca que entende

15 Este foi o slogan da revista de 2005 a 2008, posteriormente, até 2010, o slogan adotado foi

“Claudia mais que informa, transforma”. Depois disso o slogan passou a ser variado, em 2013, por exemplo, foi “Você inteira” (BITTELBRUN, 2018, p. 16).

16 Mídia kit 2019 da revista Claudia. Disponível em:

<http://publiabril.abril.com.br/marcas/claudia/plataformas/revista-impressa>. Acesso em: 22 mar. 2019.

17 Média de Circulação líquida 192.727, média de assinaturas 170.695 e média de venda avulsa

22.032, segundo dados IVC janeiro a novembro de 2018, disponibilizados no Publieditorial da revista. Disponível em: < http://publiabril.abril.com.br/marcas/claudia/plataformas/revista- impressa>. Acesso em 22 mar 2019.

que dar poder as mulheres é ouvir todas elas e saber respeitá- las. (MÍDIA KIT CLAUDIA, 2019)

Sobre seu conteúdo, a marca apresenta a partir de alguns tópicos agrupados: direitos, escolhas, causas femininas; inspiração, inovação, empreendedorismo; liderança, carreira, dinheiro; relacionamento, família e filhos; autoestima, saúde, beleza; moda e estilo; gastronomia e decoração. Ressaltamos para problematização posterior, durante a análise deste estudo, que ao falar do grupo de conteúdos “direitos, escolhas, causas femininas”. A revista destaca a seguinte afirmação: “CLAUDIA não fala de feminismo, mas de causas femininas. E cada mulher tem a sua”19.

Entretanto, após negar uma identidade feminista, ela finaliza sua apresentação ao anunciante, mostrando o posicionamento da marca perante as mudanças sociais das mulheres:

Cada mulher que ter direito ao que lhe parece mais adequado. Por isso fica difícil representar em uma só face a luta de todas. Não existe um único movimento feminista, mas vários movimentos e momentos de defesa de causas específicas. CLAUDIA acompanha e participa de todos esses movimentos, algo que só a plataforma feminina mais antiga do país pode afirmar. (MÍDIA KIT CLAUDIA, 2019)

Infelizmente, poucas edições com esse posicionamento definido entraram no recorte do corpus desta pesquisa, entretanto, é importante ressalvar as transformações que a revista sofreu até se manifestar de tal forma, bem como fica o anseio de que, a partir dos resultados dessa pesquisa, seja possível confrontar o conteúdo da publicação pós-manifesto no Mídia Kit, e assim identificar se ela, como instituição, apresenta o conteúdo que vende a seus anunciantes e se ampliou as discussões sobre os direitos das mulheres em suas edições posteriores.

19 Mídia kit 2019 da revista Claudia. Disponível em:

<http://publiabril.abril.com.br/marcas/claudia/plataformas/revista-impressa>. Acesso em: 22 mar. 2019.