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Claustro do Convento da Nossa Senhora da Assunção, Faro

A data do início da construção do convento, bem como a data da conclusão dos trabalhos no claustro não colhem consenso entre os investigadores, tal como o seu mecenas: alguns autores atribuem a sua fundação a D. Leonor, terceira esposa de D. Manuel, outros a D. Leonor (da casa de Aviz), irmã do rei D. Manuel e viúva de D. João II. Esta última atribuição, com a qual concordamos, relaciona-se com o facto de no portal da igreja estarem representados um camaroeiro e um pelicano (e a data de 1539): cremos que a colocação de símbolos heráldicos dos fundadores ou mecenas nos edifícios não era um aspecto tratado com leviandade, o que não daria espaços para erros.

Aliás, foi em 1491 que a Vila de Faro começou a fazer parte dos bens da casa da rainha, tendo sido D. Leonor, mulher de D. João II a primeira beneficiada. Este argumento, o da sua fundação pela Rainha D. Leonor, viúva do Príncipe Perfeito é ainda apoiado pela proveniência das oito freiras que o vieram habitar, em 1541, todas oriundas do Convento da Madre de Deus de Xabregas. Há ainda o argumento ligado à coerência em relação às correntes de pensamento religioso da própria D. Leonor, intimamente ligadas ao universo franciscano, de cariz observante, como é o caso. Da fundação desta casa, à sua conclusão, decorreram algumas décadas, como o atestam as características da edificação: a igreja revela-se herdeira ainda do tardo- gótico, enquanto a maioria das estruturas conventuais já revelam tendências clássicas.

Após o impasse da morte de D. Leonor em 1525, o prosseguimento das obras ficou a cargo da rainha D. Catarina, esposa de D. João III, que encarregou Mestre Afonso Pires e o pedreiro António Gomes “sendo este

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mosteiro”103 em 1543. Numa missiva da Madre Superiora dirigida à Rainha, em 1548, sabemos que o claustro ainda não se encontrava concluído, faltando ladrilhar, iniciativa para a qual a Madre pedia dinheiro a D. Catarina.

A edificação deste convento resultou de um círculo erudito que, embora “marginal” porque deslocado dos grandes centros artísticos, não deixou por isso de se assumir como um caso de importância porque se constituiu como um dos primeiros episódios no que respeita à introdução de valores clássicos na arquitectura em território algarvio, actualização estética a que as gárgulas não vão ser alheias – Horta Correia refere mesmo que esta obra só pode ter tido origem na corte, ainda para mais dadas as afinidades com as campanhas castilhianas em Tomar.104

A colocação de gárgulas cingiu-se ao segundo andar do claustro do convento, de planta quadrangular, que revela duas grandes fontes de influência: por um lado, por ser um claustro cujos cantos se encontram cortados, reflecte que o autor da sua traça, Afonso Pires, conhecia bem o Claustro de Santa Maria de Belém e o de Santa Cruz de Coimbra. Por outro lado, o seu alçado, que Vítor Serrão acusa ter um “sabor castilhiano”105

remete-nos imediatamente para Tomar, para o Convento de Cristo e para o Claustro da Hospedaria, em tudo semelhante, até na colocação de gárgulas nos grossos contrafortes. Ora o Claustro da Hospedaria foi edificado entre 1541 e 1543, ou seja, quase em simultâneo com este, que deve ser sensivelmente posterior (concluído talvez entre 1545 e 1548). Esta semelhança no debuxo da crasta pode dever-se ao facto de Tomar ter sido o estaleiro onde D. João III mais se empenhou e acompanhou de perto o

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Citado a partir de NETO, João e GIEBELS, Daniel - Convento da Nossa Senhora da

Assunção, Faro, 1991 e 2005, in DGEMN, [Consultado em Abril e Maio de 2009] Disponível

em www.monumentos.pt

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CORREIA, Horta - Arquitectura Portuguesa. Renascimentos. Maneirismo. Estilo Chão. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p. 28

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desenvolver dos trabalhos. Não era de estranhar, portanto, que num estaleiro patrocinado pela Rainha, ocorresse este “contágio” do ponto de vista arquitectónico, justificado também pela qualidade do arquitecto coordenador, Afonso Pires.

As dezasseis gárgulas, no segundo andar do claustro, distribuem-se pelos contrafortes (três por cada ala) e nos ângulos e estabelecem uma ligação curiosa com os mascarões clássicos dos contrafortes no registo inferior, à semelhança do diálogo plástico entre as gárgulas do segundo andar do claustro de Belém e a platibanda de Torralva.

Antes de começarmos com a análise das gárgulas, convém dizer que uma boa porção tem a cabeça partida, o que impossibilita uma leitura mais estruturada. Vamos iniciar a análise pela ala Este: temos um ser híbrido, de difícil identificação, que tem a mão esquerda pousada no joelho esquerdo, forrado com folhagem. A gárgula seguinte representa outro híbrido, alado, que ao nível do peito segura uma cartela coroada por uma caveira. A sua vizinha, também alada, tem a cabeça partida o que impossibilita a sua identificação. No ângulo claustral NE, outra gárgula com a cabeça partida e que representa uma figura humana sentada que segura uma espécie de cabeça alada.

Na ala Norte outra gárgula de cabeça partida, também alada, mas que representa uma figura feminina (exibe os seios nus), envolta em penas, muito semelhante a uma outra gárgula que identificámos como uma sereia-pássaro na Igreja da Madalena em Olivença: ambas parecem envoltas em penas. A seguinte é uma figura em tudo semelhante às anteriores, igualmente alada, mas cujos braços estão cruzados sobre o colo, assim como as pernas, também cruzadas, numa postura pudica (aparece em duas imagens na planta do claustro). A cabeça foi coberta de pêlos ou escamas, quase uma cabeça de peixe. A próxima gárgula representa um ser híbrido, misto de leão alado com uma cabeça antropomorfizada e uma cauda: parece a representação de um grifo.

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Fig. 228 Gárgulas da ala Este do claustro do Convento da Nossa Senhora da Assunção, Faro (Planta da DGEMN)

A gárgula do ângulo NO é outro híbrido, alado, com seios, mas cuja extremidade (não tem membros inferiores) se assemelha à de uma serpente: poderá ser a representação da serpente do Éden, que tentou Eva com a maçã, presentificação do pecado original, tal como havíamos visto numa gárgula que se lamenta, exibindo uma cauda de serpente enrolada, na Igreja da Madalena de Olivença.

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Fig. 229 Gárgulas da ala Norte do claustro do Convento da Nossa Senhora da Assunção, Faro (Planta da DGEMN)

Na ala Oeste, as três gárgulas que se seguem são muito semelhantes entre si: peito muito proeminente, extremidades em forma de voluta e só varia ligeiramente a cabeça, pois a primeira parece exibir um focinho de porco, a outra tem focinho de cão e a terceira parece um galo. No ângulo SO, embora com semelhanças com as anteriores, temos um leão, com a sua juba bem texturada e terminando em cartela.

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Fig. 230 Gárgulas da ala Oeste do claustro do Convento da Nossa Senhora da Assunção, Faro (Planta da DGEMN)

Por fim, na ala Sul temos um panorama muito semelhante: três gárgulas em tudo parecidas com as anteriores, cuja variação ocorre nas cabeças: a primeira exibe um par de chifres (um bode?), a seguinte uma cabeça de águia e a última uma cabeça antropomorfizada.

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Fig. 241 Gárgulas da ala Sul do claustro do Convento da Nossa Senhora da Assunção, Faro (Planta da DGEMN)

A última gárgula, a que faz o ângulo SE, é a mais enigmática de todo este programa (aparece representada em duas imagens): representa uma figura híbrida, com patas de leão, corpo coberto de folhagem ou penas (não se percebe bem), parece possuir asas e tem a cabeça, ligeiramente antropomorfizada, coberta de longos pelos ou penas. O mais significativo é que esta figura segura nos braços uma criança nua: na Igreja da Madalena

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em Olivença já nos tínhamos interrogado em termos temáticos sobre uma figura masculina, com barbas e de patas forcadas, que também segura uma criança nua.

Em termos temáticos, nas alas Este e Norte, a representação parte de híbridos alados, híbridos em que a componente humana tem muito peso no seu “desenho”: poderíamos dizer que a base para a realização destas gárgulas foi o corpo humano, ao qual se agregaram outras partes de animais ou revestimentos. A presença de um destes híbridos com uma caveira, uma

vanitas, alude a valores como a perenidade e a vanidade da vida e à morte,

sempre presente. A gárgula que tenta tapar o corpo nu com os braços é uma metáfora do pudor e da castidade e, em última análise, da Temperança. Muito provavelmente nestas duas alas as gárgulas discursam sobre algumas qualidades e virtudes. Entre as alas Norte e Oeste, no ângulo NO, temos uma gárgula que representa a serpente do Éden – local onde a temática muda.

Nas alas Oeste e Sul as gárgulas são todas muito semelhantes entre si: ventre bastante proeminente, extremidade em voluta ou cartela, mudando a cabeça: porco, cão, galo, leão, bode, águia e homem. Estes animais estavam intimamente ligados com a presentificação dos pecados mortais. A interpretação da gárgula que segura o bebé (também de transição temática entre as alas) é de difícil interpretação: poderá significar, neste contexto, o homem selvagem (rodeado pelos pecados) que segura o futuro homem, resgatado e limpo de pecados?

Este núcleo de gárgulas, à semelhança de outros já estudados, concretiza dois aspectos: por um lado, às gárgulas continua a caber uma importante função pedagógica, a de ilustrar comportamentos, quer exemplares, quer não exemplares, o que se constitui como uma persistência. Por outro lado, dentro dessa vocação didáctica, as gárgulas sofreram um processo de actualização formal, agora sob novas orientações estéticas, de cariz clássico, mas em paralelo mais uniformizante do ponto de vista plástico,

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produzindo gárgulas semelhantes entre si, com pequenas variações. Detectamos, no entanto, alguns pontos em comum do ponto de vista temático com algumas gárgulas da igreja da Nossa Senhora da Madalena, em Olivença: a figura feminina envolta em penas (sereia-pássaro), a criança nos braços de uma figura masculina/ser híbrido, a gárgula cuja extremidade termina como uma cauda de serpente. A diferença é que em Olivença ainda perpassam tendências tardo-medievais no tipo de representação, mais expressivo e dinâmico, enquanto aqui as gárgulas são de cariz classicizante, estilizadas e calmas do ponto de vista plástico e a revelar influências da escultura monumental de modelo italiano.

No que concerne à autoria destas gárgulas, dadas as semelhanças plásticas visíveis entre dois grandes conjuntos, podemos avançar com a hipótese da sua realização por dois mesteirais, ambos experimentados no campo da escultura monumental clássica e ambos familiarizados com o que se fazia nos estaleiros nacionais mais significativos, em particular com Tomar (as cartelas que algumas gárgulas exibem estão directamente relacionadas com as gárgulas do Terreiro de acesso ao Coro do Convento de Cristo, Tomar).

4.8.25. Igreja do Convento de São Francisco de Montemor-