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Claustro do Mosteiro de Santa Maria de Belém, Lisboa (3ª campanha

Temos ainda mais dois mestres à frente do estaleiro hieronimita: Diogo de Torralva (activo entre 1540 e 1551) a quem se deve a conclusão de dois lanços que ficaram por acabar no segundo piso do claustro (autor da platibanda decorada com uma série de cabeças “à romano”) e Jerónimo de Ruão (de 1563 até ao final do século XVI), autor da capela-mor actual (concluída em 1572).

Estes lanços claustrais, datados de 1543 e 1544, são correspondentes ao ângulo onde se encontram as galerias N e O e foram concluídos na empreitada de Torralva, embora José da Felicidade Alves refira que a pedra já estava aparelhada.97 Cabe agora perguntar se já estava lavrada a gárgula do ângulo NO? A ser negativa, a resposta implicaria que a gárgula revelasse diferenças, quer formais, quer temáticas, sendo então necessário proceder à sua análise.

A gárgula colocada no ângulo NO representa uma figura masculina, nua e acocorada, com as costelas bem visíveis: parece amarrada de pés e mãos, com os joelhos unidos e enverga um barrete frígio na cabeça. Em termos plásticos constitui-se como uma representação dotada de mais realismo quando em comparação com as outras gárgulas, embora a sua cabeça (em particular a zona do rosto) tenha recebido um tratamento plástico mais cuidado e pormenorizado que o resto do corpo. Revela influências, através da sua fisionomia carregada, de boca aberta e olhar marcado, algo

97

ALVES, José da Felicidade - O Mosteiro dos Jerónimos II – Das origens à actualidade. Lisboa: Livros Horizonte, 1991, p.141

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da expressão miguelangelesca da terribilitá, mas também das gárgulas do Claustro da Manga, em Coimbra, da autoria de João de Ruão.

Exibe uma posição diferente, já não é a gárgula que, perpendicular ao fundo onde se insere se projecta tão-só para fora: o seu corpo parece contorcer-se e agitar-se pela estranha posição representada, o seu rosto exprime dor e drama. A fisionomia desta gárgula entra em diálogo com alguns rostos da platibanda, mas destaca-se relativamente às outras gárgulas, onde abunda, em termos temáticos, o bestiário. O facto de estar nu, só com o barrete frígio pode significar que o Adepto se encontra “despojado” do mundo material, preparado para realizar a Grande Obra. Esta gárgula atesta o conhecimento, por parte de Torralva e da equipa que com ele laborava, da simbólica claustral lavrada nas campanhas anteriores e ligada à linguagem hermética, o que lhe permitiu uma conclusão com continuidade temática.

Fig. 227 Gárgula do ângulo NO do segundo piso do claustro de Santa Maria de Belém

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Em termos plásticos e formais revela uma actualização para com os núcleos mais eruditos do panorama nacional contemporâneo à sua realização (em particular com as gárgulas do Claustro de Santa Bárbara, Tomar), embora distinta em termos temáticos, pois não presentifica os pecados ou vícios. Aliás, a figura até se apresenta com algum decoro: nada de indecente está visível, apesar da nudez.

As esculturas do claustro e por vezes também as gárgulas foram, ao longo dos anos, alvo das atenções dos monges que por aqui passaram. Dois dos mais antigos testemunhos, ambos de Frei Diogo de Jesus, redigidos entre 1666 e 1668, fazem referências muito claras às gárgulas:

“Se gosta o hóspede de ver animais, dali aparecem leões, daqui

grifos, cachorros comendo uvas, serpentes, dragões, coelhos, leitões, gatos: todos tanto ao natural que em cada um ficaria assaz afamada a mão do artífice.”98

“Os canos por onde desembocam as águas do Inverno são em

forma de vários animais, leões, bugios, cachorros.”99

Mais tarde, Frei Manuel Baptista de Castro também não ficou indiferente às gárgulas, descrevendo-as do seguinte modo:

“...no ultimo delles estão dezaugadouros do ultimo claustro e os segumdo são figuras de animais diversos que sobresahidos com a boca aberta deytão agoas das chuvas ao claustro...”100

98 JESUS, Frei Diogo de – “Amplificação da História de la Orden de San Geronimo” (ANTT,

Ms da Livraria nº 2560, págs. 55/6) citado por ALVES, José da Felicidade - O Mosteiro dos

Jerónimos I – Descrição e evocação. Lisboa: Livros Horizonte, 1989, p. 149

99 JESUS, Frei Diogo de – “Amplificação da História de la Orden de San Geronimo” (ANTT,

Ms da Livraria nº 2560, págs. 56/7) citado por ALVES, José da Felicidade - O Mosteiro dos

Jerónimos III – Para um inventário do recheio do Mosteiro de Santa Maria de Belém. Lisboa:

Livros Horizonte, 1993, p. 81

100

CASTRO, Frei Manuel Baptista de – “Crónica do Máximo Doutor e Príncipe dos Patriarcas São Jerónimo, dedicada a D. João V” (Torre do Tombo, Manuscritos de Livraria, Códice 729), transcrito por CARVALHO, Artur Marques de - Do Mosteiro dos Jerónimos: de Belém, termo de Lisboa. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1990, p. 124

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Outra descrição do mosteiro, datada de 1712, da autoria do Padre António Carvalho da Costa:

“...tem este dormitório pela parte de fóra guarnição de renda de pedra junto ao telhado, de Cruzes com diversas figuras nos botareos, por onde correm as aguas dos telhados (...) tudo muy bem lavrado.”101 Para concluir a análise das gárgulas de Belém, torna-se oportuno referir a opinião da investigadora Maria João Neto, que destaca a importância das gárgulas no escoamento das águas pluviais, a propósito do processo de restauro do claustro ocorrido entre 2000 e 2002, onde uma equipa especializada procedeu à:

“...limpeza dos algerozes que conduzem às gárgulas do último registo, foi possível observar, em momentos de forte pluviosidade, o caudal considerável de água esgotada e o impacto provocado precisamente sobre a varanda do 2º registo. Esta exposição directa da varanda às águas pluviais proveniente das gárgulas superiores faz pensar na existência de uma sistema hidráulico diferente que pouparia quem se abeirava do balcão em dias de chuva (...) Sob observação atenta foi possível perceber que originalmente a água dos terraços era canalizada pelo interior dos contrafortes, indo desaguar nas gárgulas do piso inferior.”102

A partir destas observações verificamos a importância que as gárgulas tinham no desempenho do escoamento do claustro, mas também questiona a utilidade das gárgulas/quimeras restauradas.

101

COSTA, António Carvalho da – “Corografia Portuguesa” citado por ALVES, José da Felicidade - O Mosteiro dos Jerónimos II – Das origens à actualidade. Lisboa: Livros Horizonte, 1991, p. 240

102

NETO, Maria João Baptista – “O historiador de arte e a intervenção no património arquitectónico: o claustro de Sta. Maria de Belém” in Actas do II Congresso Internacional de

História da Arte – Portugal: Encruzilhada de Culturas, das Artes e das Sensibilidades.

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4.8.24. Claustro do Convento da Nossa Senhora da