• Nenhum resultado encontrado

2. REFLEXOS DO OLHAR: REPRESENTAÇÕES DO FEMININO NAS

2.1 Em um clik de menina a mulher

Figura 9: Anúncio Melissa Beijo – 1998 Fonte: www.coloribus.com

A propaganda Melissa Beijo apresenta uma menina adolescente ou pré- adolescente? É uma menina ou é uma mulher? A postura corporal da jovem abraçando as pernas entreabertas remete a um jogo de esconder e mostrar partes do corpo. O que este gestual indica? Sinaliza que a menina também parece confusa em meio a tantas referências sobre como ser mulher? E seu olhar é de inocência ou malícia?

A menina em processo de formação para a vida adulta torna-se um público-alvo de fácil acesso aos estímulos da cultura da mídia. A sobrecarga de imagens publicitárias presentes nos programas televisivos, na web, nas ruas, nas escolas, converte-se em insistente e repetitivo convite para atrair as meninas ao mundo do consumo, no qual a mercadoria parece ser o meio facilitador para realização dos sonhos e desejos, uma promessa de satisfação instantânea e sedutora.

Na contemporaneidade, a intensa e dinâmica produção de imagens e discursos midiáticos contribui para instituir práticas culturais, disseminar referências estéticas e sociais, orientar modos de ser e agir, enfim, direcionar a

conduta das meninas. Neste contexto, as fronteiras entre a infância e a juventude estão cada vez mais embaralhadas.

A tênue linha que demarca a divisão entre a infância e a idade adulta está sendo, aos poucos, transformada segundo Neil Postman (1999), pelo livre acesso à informação atrelada à onipresença da cultura da mídia. O autor discute a trajetória da infância no mundo ocidental a partir do século XVII e aponta para o que ele denomina como o desaparecimento da infância. Esta proposição alude à infância não apenas como uma fase biológica do desenvolvimento humano, mas, sobretudo, como uma concepção moldada na esfera cultural. Para ele, o modo como a infância é concebida revela um ideal assentado nas estruturas das teorias modernas e reflete a construção de uma forma idealizada de compreender a infância como um fenômeno universal, atemporal, puro e inocente.

A infância termina na adolescência? Como situar a pré-adolescência nessa demarcação entre a fase infantil e adulta? A partir dessas indagações, compreendo a infância em uma perspectiva que transpassa as distinções face à vida adulta. A razão disso é que os conceitos de infância e pré-adolescência resultam de narrativas históricas e sociais. Por isso, esses constructos estão em constante processo de transformação e deslocamento. Consoante o enfoque exposto por Postman (1999), a base material para o surgimento da infância e também para o seu declínio está correlacionada às mudanças nas tecnologias de comunicação, uma vez que, a intensa carga informacional midiática passa a modificar a própria estrutura de interesses, a esfera simbólica e os contextos de pensar e viver. Infância, pré-adolescência e adolescência são conceitos sólidos construídos discursivamente que estão se desmanchando no ar multiforme da pós-modernidade, na qual múltiplos componentes de subjetividade concorrem continuamente para deslocar essas referências.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)31, Lei 8.069, criada no Brasil, em 1990, define a adolescência como a faixa etária de 12 a 18 anos de idade. Os limites cronológicos da adolescência são definidos pela Organização

31

BRASIL. Lei 8.069, de 13 de Julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: Ministério da Justiça, 1990. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA/CASA CIVIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Acesso em 01/08/2016.

Mundial da Saúde (OMS)32 entre 10 e 19 anos. Esta fase também contempla a pré-adolescência, faixa etária de 9 a 15 anos, segundo Eisenstein:

É importante enfatizar que, devido às características de variabilidade e diversidade dos parâmetros biológicos e psicossociais que ocorrem nesta época, e denominadas de assincronia de maturação, a idade cronológica, apesar de ser o quesito mais usado, muitas vezes, não é o melhor critério descritivo em estudos clínicos, antropológicos e comunitários ou populacionais (2005, p. 2).

Infância e pré-adolescência são demarcações conceituais, narrativas construídas por múltiplas instâncias culturais. Rosangela Soares (2000) aponta a divisão entre as fases de desenvolvimento como um processo construído por diversos discursos originados da psicologia, biologia e sociologia. A autora questiona a essencialização colocada pelos campos disciplinares e o modo como instauram uma forma de olhar, viver, pensar e intervir nesse processo, contudo, argumenta que esses significados não são fixos, são fases cada vez mais tênues e fluidas.

Outra invenção cultural, de acordo com Renata Tomás (2011), refere-se ao termo Tween ou pré-adolescente. O termo teen é o diminutivo da palavra em inglês teenager e significa adolescente, uma designação que se tornou popular nos Estados Unidos, a partir da década de 1940. Tween é uma denominação em inglês a partir da junção de between (entre) e de teens (diminutivo de adolescentes). O termo foi criado por publicitários, na década de 1980, para agrupar uma parte do público infantojuvenil de acordo com suas características de comportamento e consumo, um mercado formado por uma camada jovem intermediária com idade entre 10 e 14 anos, Renata Tomaz esclarece que:

É por volta dos anos 1980, portanto, que surgem os tweens, num primeiro momento, tomados como um fenômeno de caráter feminino, mas pouco a pouco incluindo práticas sociais masculinas. No Brasil, entretanto, a construção desta categoria, no final dos anos 1990, trata tanto de meninos quanto de meninas, embora o volume de produtos e mensagens para elas seja inquestionavelmente maior (2011, p.2).

32

Informação disponível em: <http://www.who.int/eportuguese/publications/pt/>. Acesso em: 4/9/2017

Por esse enfoque, o conceito de pré-adolescência ou tween resulta de uma construção cultural e mercadológica concebida para designar uma fase específica de transição do desenvolvimento humano. Tween remete a estar com um pé na infância e outro na adolescência, um entre-lugar, um limiar, uma passagem, uma encruzilhada. Esta travessia se reflete no corpo, no comportamento, na subjetividade da menina, tendo em vista que, nesta fase da pré-adolescência, se atravessa uma fronteira importante, a puberdade, etapa de mudanças físicas, comportamentais, sociais e culturais. Enfim, diante destes argumentos, proponho o termo menina/mulher para esboçar de forma mais significativa o entre-lugar da pré-adolescência e adoto esta denominação com a intenção de fazer referência a uma fase de transição repleta de atravessamentos. Outro aspecto importante a considerar advém da influência das tecnologias de informação e comunicação que circulam no mundo das meninas e constituem instâncias culturais que atuam diretamente sobre a sua subjetividade, uma vez que a imagem midiática assume relevância fundamental nas relações interpessoais e, nesse contexto, dita padrões de referência. Nunes (2014) também corrobora com este ponto de vista ao destacar que os significados postos em circulação pelos artefatos culturais influenciam na forma como se produz e se vivencia as diversas fases da infância e juventude. Acrescenta-se a este panorama, o predomínio das tecnologias digitais, intensamente presentes no cotidiano e atuante nas formas de socialização e interação em diversos ambientes de convivência. Para ela, os significados culturais podem ser aceitos ou não, todavia, não se pode desconsiderar que as imagens midiáticas também propagam saberes, pedagogias culturais.

Nesse sentido, a publicidade, ao disseminar significados culturais, torna-se um dos mais relevantes discursos da cultura popular dada a sua inserção nos mais variados contextos sociais e sua presença têm vindo a estabelecer-se como um componente importante nos processos de subjetivação. Por essa razão, destaco a relevância de problematizar os efeitos produzidos pelas visualidades midiáticas na construção de modos de ser, principalmente, quando esses conteúdos são direcionados para às pré-adolescentes.

Com tal propósito, direciono o meu olhar para os significados disseminados pelas imagens publicitárias da marca Capricho (CH) a fim de refletir acerca dos modos de sujetivação engendrados. A CH é um artefato cultural que agrega múltiplos conteúdos e formatos. Por conseguinte, ao interagir e se relacionar no mundo Capricho, a menina/mulher passa a participar de uma dimensão simbólica permeada por referêcias imagéticas, estilos de vida, padrões de comportamento, papéis sociais, enfim, modos de ser engendrados por este dispositivo pedagógico atuante na mediação da relação da garota consigo mesma e com o mundo a sua volta.

Cabe esclarecer que a cultura da mídia, como destaca Kellner (2001), faz intenso uso de imagens ressonantes, representações divulgadas pelas mídias que posteriormente ressoam na mente do indivíduo e influenciam no comportamento social. Isto ocorre porque esta formulação imagética pode se desvincular em termos de efeito e memória de sua estrutura narrativa para se tornar veículo de poderosos efeitos e influenciar as percepções. Por esses princípios, aproprio-me das formulações de Kellner (2001) sobre as imagens ressonantes para ampliar o seu significado no sentido de abarcar as visualidades permeadas de memórias e interpenetradas por diferentes representações de diferentes passados.

Em face disso, busco navegar e dialogar com imagens ressonantes do feminino no âmbito das produções artísticas e midiáticas e, portanto, utilizo a perspectiva da cultura visual como guia e bússola para pensar o quanto as diferentes experiências visuais em diversos tempos e sociedades refletem percepções sobre o mundo e sobre nós mesmos. Por esse enfoque, os padrões de representação da imagem feminina constituem-se num modelo aspiracional que pode contribuir como um elemento de referência na formação da subjetividade da menina em processo de formação para a vida adulta. Igualmente, compreender esses padrões consubstanciados em imagens ressonantes é um caminho para refletir sobre o aspecto pedagógico das visualidades. A próxima navegação se inicia com as artes visuais e caminha em direção às visualidades da cultura da mídia. Pelo motivo de considerar que, tanto nas imagens canônicas, quanto nas imagens midiáticas, reverberam significados construído no âmbito da cultura que instaura, em relação ao feminino, uma forma

específica de olhar, regular e normatizar, uma cadeia de significados que ressoam ao longo do tempo.

Documentos relacionados