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ORIENTAÇÃO TEÓRICA E EPISTEMOLÓGICA

1.4 Clima Histórico (Stimmung).

A presença é capaz de transpor a substância das coisas. A emergência de se constatar a subjetividade de um tempo fez com que se produzisse mais efeitos para que se pudesse materializar essas peculiaridades de um ambiente específico criando empatia, interação, dando consistência e forma física àquilo que se compreende em um universo único, que faz com que indivíduos se reconheçam com a mesma identidade. Ter contato com determinada obra implica sentir uma dimensão específica, ou o clima-histórico no qual influenciou o sujeito em sua produção, tanto quanto a presença que nela é elaborada é capaz de transpor o clima de determinado tempo e espaço: o Stimmung, palavra do alemão de difícil tradução, que pode ser entendida como umaatmosfera específica.

51 Clima histórico é uma categoria também trabalhada por Hans Ulrich Gumbrecht. O autor faz um apelo para que, quando tivermos contato com determinado objeto, pudéssemos observar esse stimmung. Isso dentro de sua concepção de algo que emerge como substrato da experiência histórica capaz de produzir uma atmosfera específica. De maneira também física entendemos que esse clima é transposto para as obras teatrais, sendo refletido no ritmo das falas, nos tons, ou de maneira mais sutil nas emoções que de alguma forma carregam.

Se, por um lado as comédias de Martins Pena elaboram espécie de presença, por ser uma coisa no mundo, elas também transmitem em sua linguagem uma materialidade que é inerente às agitações de seu próprio tempo, absorvem parte de seu clima-histórico. Elas são o resultado de uma atmosfera que é muitas vezes sentimental, reflexo de mudanças e fenômenos temporais. Acreditamos que isso se dá à medida que, ao elaborar a presença, ela se envolve, de maneira quase inconsciente por uma determinada atmosfera, deixando de alguma forma que ela afete e envolva seu espectador. Uma espécie de orientador do sujeito em suas ações mesmo de forma inconsciente. Algumas peças são capazes de transportar a dimensão de determinado clima. Ou ainda, por outro lado dentro da própria construção da peça, são capazes de que o clima seja o mesmo do próprio contexto cultural e histórico a que se relacionam.

Dada a necessidade de unificação da nação, engajamento necessário para constituição do estado brasileiro, Martins Pena traz alguns elementos da cultura popular para constituição do clima de suas peças, criando certa ambiência em que os diversos sujeitos históricos do Brasil pudessem interagir dentro de um mesmo enredo. Como é o caso de O Judas e O Sábado de Aleluia, peça de um único ato de 1844. Nela muito mais do que uma narrativa, ou um enredo, a ocasião torna-se elemento central, o sábado de aleluia, data comemorativa na cultura popular brasileira, festividade religiosa ocorrida durante a Semana Santa. Festa tradicional em que ocorre a malhação de Judas, o discípulo traidor de Cristo. Vilma Arêas, sobre o processo de teatralização dessa peça, aponta "o protagonista é o próprio boneco, enlaçando-se a perseguição de Faustino com a caça ao Judas do final." (ARÊAS, 1987. p.186). Sobre a maneira com que o dramaturgo articula as ações, a autora faz análise importante que nos chama a atenção sobre a elaboração de presença e do clima dentro do enredo:

Resta-nos acrescentar que é a própria festa popular da queimação do Judas, com seu tribunal e seu testamento24, que fornece à peça o modelo da distribuição final da

24 Apud. ÁTICO, Villas - Boas da Mota, Queimação do Judas. MEC, FUNARTE, Instituto Nacional do Folclore

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justiça, invertendo os papéis de perseguidores e perseguidos do início. Passando de réu a juiz, Faustino põe o Capitão em seu devido lugar (não passa de um "boneco de louça"), casa a namoradeira com o velho, livra-se da Guarda Nacional e faz par com a sincera Chiquinha. Resumindo, podemos dizer que a farsa, a pantomima em última análise, rejeita um tipo consensual de mimesis, instala-se na materialidade do teatro, acabando por apontar, aí sim, como fingimento no mau sentido (mau "teatro") o desempenho dos papéis sociais e a falsidade de suas relações. (ARÊAS, 1987. p.190)

Os personagens da peça são tipos sociais brasileiros. Faustiniano é empregado público, que é perseguido no início da peça por Ambrosio, membro da guarda nacional. Martins Pena utiliza de recursos teatrais para não apenas elaborar a presença desses tipos mas a interação desses tipos. Elaborando por esse modo um espetáculo teatral no qual o autor não obedece simplesmente à ordem das coisas do mundo social mas sim recurso da comédia ele inverter a lógica real possibilitando assim que a sensação se torne mais potente no espectador. Isso porém só é possível porque em um primeiro momento há um reconhecimento da realidade, principalmente pelo clima da festa popular presente no enredo. Por esse modo, podemos perceber que a presença dessas instituições é também posta de maneira que ela possa ser sentida em vários aspectos, a guarda nacional e o empregado interagem durante o enredo de maneira um tanto quanto contrária à regra, porém o clima de divergência é materializado durante suas ações.

Compreendemos a ironia, a sátira, categorias presentes em quase todas suas peças, frutos de uma atmosfera de dúvida, de ansiedade, e algumas vezes até mesmo de ceticismo, dadas as mudanças que aconteciam de maneiras intensas e rápidas e que por falta de prognóstico para se orientarem criavam tais emoções. Movimentando muitas vezes estruturas sociais permanentes na sociedade de maneira não tão satisfatória para os diferentes personagens políticos em disputa no período. Ao mesmo tempo que essas estratégias eram fruto desse clima, elas também seriam capazes de intensificá-lo. Em O Sertanejo na Corte, peça escrita provavelmente em 1833 ou 1837, e cujo manuscrito se encontra incompleto, a fala de Pereira, personagem negociante da corte, transmite um pouco deste sentimento:

PEREIRA (só)

E que tal o quadrúpede! Chamar seges casinhas e piano bicho! Há ainda muita estupidez! O que não vai por estes vastíssimos serões que cobrem grande parte do Brasil! Não admira que este pense que o piano é um bicho, quando outros crêem em reino encantado de João Antônio em Pernambuco. Enquanto instituições sábias não amelhorarem (sic) a educação de grande parte dos brasileiros, os ambiciosos terão sempre onde se apoiar. Senão, diga-o o Rio Grande, diga-o a Bahia! Desgraçada da nação cujos povos vivem na mais crassa e estúpida ignorância! (chamando). Ó Inês, Inês? (PENA, 2007. p.65).

53 Podemos ainda compreender, dado que no enredo da peça, Pereira é a representação de um pensamento da corte, o contraste de ideias desalinhadas no todo do Brasil. Mas, para além disto a fala demonstra um anseio e uma necessidade expressa em um sentimento engajado de revolta por parte daquele que deseja que o país não permaneça na ignorância. Fala que antes de mais nada revela insatisfação com um suposto atraso do restante do país em relação ao centro, ao progresso presente na consciência dos que habitam a corte e partilham de hábitos culturais elevados.

Ao observarmos o interior no qual Martins Pena tem a criação de suas peças, vemos que os diversos movimentos que sucederam após a Independência Brasileira trouxeram determinado sentimento em comum para a primeira geração de românticos brasileiros, o que gerou determinada atmosfera específica de desconfiança e melancolia, horizonte no qual constitui este clima histórico na década de 30 no Brasil:

(...) multiplica-se, ao longo dos anos 30, no Império do Brasil, discursos melancólicos determinados por sentimentos como a cautela, a gravidade, o medo, o pessimismo e a desesperança, e, no limite, o desespero, entre eles as poesias de Gonçalves de Magalhães e boa parte dos textos produzidos no interior do primeiro Romantismo, ou seja, escritos por Torres Homem, Araujo Porto Alegre, Pereira da Silva, entre outros, e, também, por homens mais diretamente ligados ao Estado, protagonistas do chamado Regresso Conservador, entre eles Bernardo Pereira de Vasconcelos e o Visconde do Uruguai."( RANGEL,2014. p.58)

O exemplo caracteriza esse horizonte no qual Martins Pena exerce sua produção teatral25 e que impulsionou os homens de sua geração que mais tarde, tentando barrar a aceleração do tempo, formaram um movimento conservador.

Esse clima guia a experiência dos chamados primeiros românticos no Império do Brasil, por um lado, influenciando-os e, por outro, de maneira que eles iam também os potencializando a partir do momento que fortaleciam essa atmosfera com seus artefatos artísticos. No próximo capítulo veremos mais a fundo como se dá a constituição desse clima. É necessário refletirmos a posição de Martins Pena frente a esses acontecimentos e como ele é tocado por esse clima, ou mesmo o movimenta e intensifica. Sua primeira peça O Juiz de Paz na Roça, escrita em 1837, deixa aberta a sua posição frente a disputa entre liberais e conservadores em relação a criação dos juizados. A que fim foi utilizada a sátira nessa peça? Como a cena teatral se movimentou nesse clima específico?

25 Para uma maior compreensão da constituição do clima histórico por parte dos primeiros românticos ver:

RANGEL, Marcelo. Romantismo, Sattelzeit, melancolia e “clima histórico” (Stimmung). Revista Expedições: Teoria da História & Historiografia V. 5, N.2, Julho-Dezembro de 2014.

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CAPÍTULO 2