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ORIENTAÇÃO TEÓRICA E EPISTEMOLÓGICA

1.2 Tempo Histórico

Dentro da Modernidade vemos uma concepção de tempo histórico específica para delimitar determinado período, outra categoria fundamental para assimilação da experiência de nosso sujeito. O termo aqui empreendido de tempo histórico tem o uso para determinar uma situação na qual determinado horizonte de expectativa, como horizonte hermenêutico-interpretativo, é aberto para possibilidades novas. Esse tempo que se insere dentro de um período da Modernidade pode ser caracterizado primeiramente com a perda de sentido da religião e de Deus para orientação dos homens, o que acontece por volta do século XV. Mais tarde, essa perda de sentido ocorre, por exemplo, com o estado absolutista. Inicia- se, assim, o que autor irá chamar de Sattellzeit, no período entre 1750 e 1850, causado por eventos como a Revolução Francesa, e os eventos que permitiram a queda do chamado Antigo Regime, em que se tem uma profunda aceleração de outros acontecimentos, gerando uma crise de sentido para tais mudanças. O mundo se modifica de maneira extremamente rápida, as experiências anteriores não dão conta de fornecer explicações para esse novo momento, mas ainda assim se amplia um horizonte de expectativas diante de um futuro incerto.

Tais acontecimentos geram insegurança e falta de prognóstico; não se vê o mesmo sentido na religião, ou mesmo de uma concepção da Historia Magistra Vitae, em que o passado era o guia do presente, gerando assim nesse momento incertezas, cautela, diante de um tempo que é preciso, sobretudo se organizar com novas mudanças. Surge nesse período um distanciamento entre o espaço de experiência, em que está o diagnóstico do passado, e o horizonte de expectativa, possibilidades de ação no futuro. O presente está nesse meio onde é possível gestar o futuro.

O conceito moderno de história toma nesse momento importante centralidade. Nele a História passa ser compreendida como capaz de ser modificada pelo próprio homem. Desse modo ela é como ―a história em si‖, um coletivo singular, ou seja a soma das histórias individuais. Influenciado pelo conceito de revolução que sofreu uma alteração ao longo do século XVIII, o conceito moderno de história passa a compreender a história de maneira linear em direção ao progresso, em que o futuro era visto sempre como uma espécie de novo, evolução e crescimento inerente ao decorrer do tempo. Os indivíduos nesse período são

41 colocados como responsáveis pela própria história. Acreditamos que Martins Pena é orientado por esse conceito uma vez que vemos em sua peça que ele rejeita o passado, não aparecendo na forma dramática por ele empreendida, a comédia gira somente no tempo presente, o da ação, o enredo por ele elaborado tem como pano de fundo situações temporais contemporâneas ao autor. Ainda, nos parece que as tradições, ou práticas enraizadas na cultura são por ele de certa forma questionadas, colocadas à mercê do riso e muitas vezes delineadas de maneira caricatural como os vícios. Martins Pena revela assim de certa forma rejeição para com as práticas que não correspondem à necessidade de progresso e evolução. Como o caso do Tráfico Negreiro sendo colocado de maneira claramente crítica na peça Os Dois ou o Inglês Maquinista, de 1842. Sabemos que no período a questão do tráfico negreiro foi sinônimo de atraso para o Brasil.

Tal tempo histórico gera ainda um clima histórico que é percebido por determinados sentimentos, incertezas, pois não há mais o sentido de um Deus para orientar o mundo, ou mesmo um estado em que se possa confiar para dar conta de certas conjeturas radicalmente inéditas. A ironia, linguagem mobilizada muitas vezes por Martins Pena, é compreendida aqui como um tom cético a respeito da própria realidade. Ou mesmo, como no caso da peça Os três médicos, de 1844, em que se revela determinada desconfiança em torno da medicina. Nela o personagem Marcos, velho à beira da morte, diz: "Que pode a medicina em moléstia como a minha? Aos médicos não torno a culpa, que fazem eles o que aprenderam, e que podem. A ciência é muitas vezes ineficaz.‖ (PENA, 2007. p.414). Tema clássico o da sátira da medicina, a peça revela um pouco mais, ao ter como alvo a disputa entre médicos homeopatas e alopatas, tudo isso sendo transposto ao público de maneira cômica. São personagens protagonistas o Dr. Aquoso, o médico hidropata, o Dr. Cautério, o médico alopata, e o Dr. Miléssimo, o homeopata, nomes também caricatos. A homeopatia chega ao Brasil nesse período e podemos por esse modo compreendê-la como fruto de um desenvolvimento científico inerente à própria modernidade. Em determinado momento a fala de Lino é a pura expressão dessa desconfiança que a peça mobiliza:

LINO - Êstes médicos são todos mais ou menos intolerantes. Cada um quer matar lá a seu modo, e brigam por isso como endemoninhados... Safa! De medicina só a hidropata; Ao menos leva-se tudo à água fria, que se não faz bem, também não faz mal. (BATEM PALMAS À ESCADA.) (PENA, 2007. p.428).

Vemos ainda que só foi possível este intenso debate entre homeopatas e alopatas no Brasil graças a outro elemento que acelerou os acontecimentos nesse dado tempo histórico: o advento da imprensa, que trouxe para o Brasil debates que estavam ocorrendo na Europa.

42 Essa peça, por esse modo, pode ser compreendida como uma reação por parte desses acontecimentos no Brasil.

Para Kosseleck (2006), há nesse período um afastamento entre experiências e expectativas, período de difícil representação e em que se amplia fortemente a necessidade de se criarem meios para dar sentido a essas novas conjecturas. Dentro disso talvez a necessidade peculiar das comédias de Martins Pena resgatarem mínimos detalhes de seu tempo seja por meio de uma linguagem tão provocativa como a comédia.

No caso do Brasil, vemos esse tempo histórico em um primeiro momento com a transferência da corte em 1808, passando pela elevação do Brasil à condição de Reino em 1815, processo de horizonte de expectativas em aberto que se radicaliza após a Independência brasileira que, para muitos, foi interpretada com caráter revolucionário. Por um lado, isso gerou otimismo dadas as múltiplas possibilidades de organização da sociedade em direção ao progresso; era necessário organizar e construir um sentimento nacional. Por outro, todos esses sentimentos que nutriram um clima-histórico melancólico foram ainda potencializados ao longo das primeiras décadas por acontecimentos como as Revoluções Regenciais na primeira metade dos oitocentos, que revelavam profunda insatisfação em relação ao que acontecia no âmbito político e o que havia sido projetado, idealizado e cultivado no campo revolucionário pós Independência, muito em virtude de ideias propagadas pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. O interior de um tempo histórico acelerado é espaço temporal onde Martins Pena através, das suas criações cênicas, foi capaz de desdobrar algumas de suas especificidades em forma de presença, era necessário marcar um tempo único e curto.