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Climacus ao clímax.

No documento paulohenriquedasilvalopes (páginas 52-57)

CAPÍTULO II: O SÓCRATES DE COPENHAGUE

INTERLÚDIO REFERENTE AO NADA 0 A atmosfera onírica das nuvens

0.0 Formas do nada

0.0.0 Climacus ao clímax.

Que o autor não possa servir de condição para a Verdade absolutamente externa ao leitor que sonha, não implica, todavia, que esta impotência caiba somente à relação intersubjetiva mediada pela obra; ela deve se aplicar, sobretudo, ao próprio autor para consigo mesmo, isto é, nem o próprio indivíduo pode ser a condição para si mesmo no que tange à apreensão da Verdade que lhe é absolutamente exterior: levo, portanto, com a minha tese, a tese de Climacus ao clímax. Aqui, retomo aos rastros do primeiro capítulo (papirer): o máximo que se pode fazer por si mesmo é servir-se de ocasião, mas nunca de condição, pois se o Eu for a condição para si mesmo, logo, ele poderá sê-lo para outrem, e a faculdade absoluta, necessária e intraduzível da Verdade e do conteúdo existencial da obra se tornará um atributo direto. Retornar-se-ia à reminiscência platônica e recair-se-ia na relação socrática do discípulo que tem um outro homem como mestre e condição para a Verdade. No limite, a superação do socrático implica em uma suspensão completa do homem enquanto condição: inclusive o si mesmo – somente a Verdade pode ser a condição de si mesma.

Eximindo-se da possibilidade de ser tratado como uma autoridade, pela comunicação indireta Kierkegaard se despe desta posição que seus interlocutores e leitores poderiam lhe atribuir. Mas esta é apenas uma primeira dimensão da grave questão que isso implica: reconhecendo que nem o Indivíduo pode ser condição e critério de si mesmo, Kierkegaard não só se exime de ser tomado como uma autoridade frente à própria obra, mas, sobretudo, para si mesmo!

Assumindo-se como um escritor religioso e classificando a obra kierkegaardiana como religiosa, no Ponto de Vista ele delega parte substancial da sua produção à ação do que ele chama de Providência:

Se necessitasse agora de exprimir com todo o rigor e precisão possíveis a parte da Providência em toda a minha obra de escritor, não saberia dar-lhe uma fórmula mais adequada ou mais decisiva do que esta: a Providência fez a minha educação, que se reflete no processo da minha produção (KIERKEGAARD, s.d., p.79).

Ou ainda:

Quando assim aprendo a obediência, executo o meu trabalho como uma tarefa rigorosa, seguro bem a pena e formo cuidadosamente cada palavra, posso então ser

suficiente. E assim, muitas vezes, tive mais alegria em obedecer a Deus do que em produzir pensamentos (KIERKEGAARD, s.d., p.76).

O que, por sua vez, poderia novamente recair em um senso de autoridade que se aproximaria daquela em que tem um apóstolo: aquele que se distingue do gênio justamente porque o que comunica tem uma legitimidade divina53. Mas até quanto a isso, Kierkegaard se detém:

E, agora, qual a minha relação com a minha época, como autor e segundo a minha opinião? Sou porventura “apóstolo”54? Que horror! Nunca forneci pretexto para

semelhante interpretação; não sou mais que um pobre homem insignificante. Sou porventura um mestre, um educador? Também não. Sou alguém que foi educado ou cuja obra exprime a disciplina que leva ao tornar-se cristão: enquanto e porque esta educação pesa sobre mim, faço, por minha vez, pressão sobre a época, mas longe de ser um mestre, não sou mais que um condiscípulo (KIERKEGAARD, s.d., p.81).

Kierkegaard, portanto, leva ao limite uma postura negativa perante a sua época, ao seu leitor e, inclusive, perante si mesmo; mas, ao contrário de Sócrates, ou além dele, aponta esta negatividade para o exercício de uma relação fundamental do indivíduo para com o Absoluto.

Pela comunicação indireta, Kierkegaard não manipula objetivamente os leitores, não os subjuga aos seus próprios desejos, não adota a posição de autoridade, mas permite com que eles funcionem como agentes ativos perante a obra (AUMANN, 2011); de modo que os leitores não têm que sacrificar as suas respectivas autonomias em prol da voz que se assume divina e onipotente, de um autor que fixaria diretamente um sentido determinado para o conteúdo do que escreve (BARTHES, 2004).

O texto é mais honesto do que o desejo do autor em manter uma propriedade privada sobre o seu sentido: o sentido é linguístico, e linguagem é a externalização e, portanto, a alienação daquele sentido privado. Daí é que o autor, como Kierkegaard, desaparece, deixando o leitor aos seus próprios recursos interpretativos. (BERTHOLD, 2011, p19) Mas é preciso se atentar para o fato de que, se Kierkegaard utiliza a comunicação indireta, não é simplesmente para transferir esta autoridade para o leitor, e lavar suas mãos enquanto autor, mas atentá-lo quanto ao exercício da própria subjetividade e

53 Para mais detalhes ver o discurso: “A Diferença entre um Gênio e um Apóstolo” (KIERKEGAARD, 1997) 54 Referência ao pastor Adler, que disse ter recebido uma revelação de Deus.

existência, suscitado pela obra. Uma leitura extrema de Berthold (2011) poderia indicar aquele caminho que simplesmente inverte o paradigma da autoridade55, pois, deste modo, independente de ser indireta ou não, toda e qualquer comunicação recorreria à formalização linguística da obra como sendo um fosso entre o autor e o leitor; ou seja, a forma seria, portanto, indiferente, dado que qualquer forma serviria de anteparo entre os dois lados separados pela estrutura da obra.

O caso do desaparecimento kierkegaardiano parece ser diferente. Por mais que Kierkegaard assuma os limites de sua voz enquanto autor, além do distanciamento que a obra, por si só, já implica, ele, antes de tudo, se coloca na mesma posição que o leitor, justamente porque, estando a serviço de seu despertar subjetivo, Kierkegaard se prostra junto dele em uma identidade existencial sob um horizonte Absoluto – e para isso, a forma é extremamente relevante, uma vez que a estrutura direta e sistematizada de uma obra poderia trabalhar na contramão deste despertar autônomo: deste modo, poder-se-ia ler Hegel para as crianças à cama, antes de lhes dar um beijo de boa noite, vencendo-as pelo cansaço e, enfim, apagar as luzes da sala de aula e sair de fininho.

O desaparecimento de Kierkegaard é, sobretudo, (per)formativo; para suscitar o despertar de seu leitor ele, sobretudo, se coloca dentro de seu sono: age de dentro para fora:

[...] uma ilusão nunca é dissipada diretamente, só se destrói radicalmente de uma maneira indireta. Se todos estão na ilusão, dizendo-se cristãos [si-mesmos], e se é necessário trabalhar contra isso, esta noção deve ser dirigida indiretamente, e não por um homem que proclama bem alto que é um cristão [si-mesmo] extraordinário, mas por um homem que, mais bem informado, declara que não é cristão [si-mesmo]. Por outras palavras, é preciso apanhar pelas costas o que está na ilusão. (KIERKEGAARD, s.d., 1995, p.43).

Ora, no que tange à ambivalência da obra, é preciso, sobretudo, levar ao limite aquele desaparecimento kierkegaardiano que, lançando mão da comunicação indireta – e assumindo a evanescência que toda obra impõe à voz do autor – reconhece que, para tanto, sua voz não existe; ou seja, Kierkegaard ironicamente cria autores que não existem, para falar da própria (in)existência, àqueles que ainda não-existem:

55 Aumaan levanta uma crítica quanto a esta leitura de Berthold: “Berthold afirma em várias passagens que Hegel e Kierkegaard negam que autores têm um acesso privilegiado ao sentido de seus próprios textos. Pelo contrário, autores não entendem seus textos mais do que os leitores” (AUMANN, 2011).

Quando, na reflexão sobre a comunicação, o receptor se vê refletido, então temos uma comunicação ética. A maiêutica. O comunicador desaparece, por assim dizer, fazendo-se servir apenas para ajudar o outro a tornar-se ele mesmo. (KIERKEGAARD, 1967-78., VIII.2 B 89; 657).

O desaparecimento de Kierkegaard atinge seu clímax quando ele deixa de assinar as obras com o próprio nome. E, aqui, tenho que tomar cuidado para não romantizar o dinamarquês e supor, com a euforia de um entusiasta, que ele poderia facilmente ganhar o Nobel de literatura – pois Kierkegaard não assina com outros nomes simplesmente por capricho estilístico ou recurso literário: mas, sobretudo, porque ele não pode assinar por si mesmo. O conteúdo religioso da obra kierkegaardiana, em consonância com a sua tarefa existencial, deve tencionar a forma da comunicação indireta causando o soterramento da própria figura de Kierkegaard. Para agir de dentro do sono do indivíduo, a fim de alertá- lo para tal estado sonambúlico, a obra deve penetrar-lhe o sonho que se presume real: pseudônimos que, mais do que personagens, são autores que não existem, e que, sobretudo, existem! Os pseudônimos são feitos da mesma matéria que os sonhadores e, portanto, são capazes de penetrar a bolha de sabão sem romper com ela. Em outras palavras: a pseudonímia não grita em alto e bom tom – eu existo – mas, bem informada, faz o contrário pela arte do engano.

Eis que me aproximo do fim deste interlúdio para o Nada ; momento em que fiquei suspenso. Mas, afinal, o que ele separa? Dois silêncios que são qualitativamente diferentes; dois atos vazios: o precedente preenchido pela tentativa de omissão (negatividade infinita) e o seguinte pela arte do engano (dupla reflexão). Antes deste capítulo zero, a voz de Kierkegaard era a sua própria assinatura e, ainda que eu tenha recorrido aos elementos da pseudonímia, a sua figura se sobressaía frente aos argumentos e sobre a obra. Mas agora não posso deixar de reconhecer que, quanto mais me embrenho no labirinto existencial kierkegaardiano, mais a estrutura parece ocultar-me aquela figura autoral; quanto mais sigo Kierkegaard, mais ele desaparece, deixando -me a caminhar sozinho dentre a obra; quanto mais lhe escuto, mais o silêncio do autor pela obra se converte no silêncio da própria obra sobre o autor. E se levo isso a sério, logo, suspeito que nem no nome de Kierkegaard – estandarte que me delatava uma mínima condução – posso mais confiar inteiramente.

Estou perdido. Os rastros que eu seguia se convertem em pegadas de vários pés; as vozes, em um coro; os nomes, em pseudônimos. Encontrei mais uma quimera que, tão logo tem a cabeça cortada, do lugar brotam-lhe duas.

Antes de prosseguir, devo, com gravidade, perguntar-me: a obra kierkegaardiana ultrapassa Kierkegaard? Se, antes, Kierkegaard era uma presença quase-concreta, resoluta ainda que por trás de uma comunicação indireta, agora, à moda da ambiguidade do Sócrates-histórico e do Sócrates-personagem, devo me questionar seriamente: até que ponto Kierkegaard não se faz um personagem de si mesmo e, lá por detrás da obra, junto dos pseudônimos suspensos em um vácuo existencial, ele, com amor, ri-se de mim perdido neste labirinto existencial, à procura de interpretar seus rastros que, no fundo, são uma grande peça?

No documento paulohenriquedasilvalopes (páginas 52-57)