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3.2 Terra estrangeira

3.2.2 Colaborações do real

O processo de realização de Terra Estrangeira, do roteiro até as filmagens, foi marcado por duas características: reflexão e improvisação. Diferentes acontecimentos reais foram incorporados à ficção e o filme ganhou diálogos, personagens, paisagens e até mesmo o final graças à força do inesperado. Salles atribui essa fácil adaptação ao imprevisto, tendo antes o cuidado na elaboração de um roteiro bem estruturado, à sua experiência com documentários.

Uma das experiências inovadoras para Salles foi trazida pela co-diretora Daniela Thomas: os ensaios. Antes das filmagens, os atores ensaiaram como se fosse teatro, sem cenário. Quando chegavam às locações, repassavam as cenas e os diretores faziam as marcações, sempre aproveitando o que o cenário tinha de realidade, como afirma Daniela (na faixa comentada do DVD). Além disso, diálogos foram adaptados devido a sugestões dos atores, ainda durante o processo dos ensaios.

Daniela trouxe a carpintaria dramatúrgica de sua experiência teatral e que tanto reflete no frescor das atuações do filme. Segundo Salles (também na faixa comentada), esse método foi fundamental para a concretização do projeto em pouco tempo – as filmagens duraram pouco mais de quatro semanas. Para o diretor, os ensaios foram o passaporte para que o filme fosse possível, devido ao orçamento reduzido, de aproximadamente 300 mil dólares.

A aparição da Lisboa africana e dos “pretogueses” também aconteceu por um desses “acidentes” reais. Em busca de locações, os diretores se depararam com vários angolanos, moçambicanos e caboverdianos pelas ruas da cidade e passaram a se questionar se aqueles também não seriam “órfãos de Portugal”, assim como os personagens brasileiros. Dessa forma, o filme ganhou novos personagens, outras paisagens (como o Hotel dos Viajantes no cais) e mais um sotaque, modificando-se mais uma vez o roteiro original.

A seqüência em Cabo Espichel também não estava originalmente na história. Durante as pesquisas de locação, o local foi sugerido e imediatamente consentido pelos diretores por se tratar de uma paisagem naturalmente cinematográfica: a composição abarcando o mosteiro, a capela, o oceano, a cruz e ainda aquela cabine telefônica no meio do nada. Toda a seqüência foi criada pelos diretores momentos antes das filmagens. Todo o diálogo de Alex e Paco sobre o “fim do mundo” e a “infeliz” descoberta do Brasil decorrem do encontro desse espaço e dessa ponta do oceano (Figs. 11 e 12).

O final do filme também faz parte dessas colaborações do real. Havia um final escrito, verborrágico e que foi rasgado do papel assim que Salles ouviu a atriz Fernanda Torres cantarolando a música Vapor Barato no set de filmagens. O final do filme não seria o mesmo se Torres não se lembrasse dessa música, o que levou os diretores a reescreverem o final, no momento da filmagem, a fim de integrá-la à história. Vapor Barato transformou a conclusão do filme, deixando-o mais interessante e mais orgânico àquilo que estava sendo narrado.

A música Vapor Barato foi lançada em 1971, na voz de Gal Costa, no álbum Gal: Fa-tal, a todo vapor, em plena ditadura militar. A música fala desse difícil período brasileiro e do exílio forçado ou voluntário de artistas que tiveram que se afastar do país. Em 1971, a música soava como uma espécie de recado dos brasileiros e também dos exilados aos militares23. Mas no contexto da era Collor, a mesma canção também pode refletir a solidão dos exilados e ao mesmo tempo falar da esperança da volta para casa. Assim, a canção Vapor Barato no filme denota os sentidos da perda e do desterro e também pode ser lida como uma síntese de toda aquela viagem de iniciação dos personagens. Para a diretora Daniela Thomas, Vapor Barato resgata a auto-estima brasileira que foi continuamente massacrada:

“Essa música retoma a sensação de identidade brasileira. O passaporte que não presta, o brasileiro que não serve para trabalhar, o brasileiro que é o último da fila, que o português, que o francês [...] através da música, essa identidade cultural forte que o Brasil tem, a gente como brasileiro vendo o filme se sente realizado” (THOMAS na faixa comentada do DVD, 2005).

A cena final do longa foi filmada sem ter outra como alternativa. A seqüência em que Alex dirige o carro pela estrada “sem fim” foi feita de helicóptero e gravada de primeira. Mais uma vez o acaso transformou Terra

Estrangeira, revelando a aptidão de Salles para incorporar improvisações

pertinentes à trama, através de seu afinamento com toda a equipe integrada ao projeto.

De acordo com o diretor, uma das intenções era ter um roteiro poroso, ou seja, um roteiro adaptado à medida que fatos irrefutáveis fossem encontrados. Talvez por sua experiência em documentários e por estar antenado aos acontecimentos a sua volta, Salles entenda essas colaborações do real como possibilidades a mais na narrativa, que podem engrandecer e fortalecer a ficção. O fato de o cineasta conhecer profundamente a “matéria” que está sendo filmada faz com que ele possa avaliar imediatamente se algo descoberto no momento é mais adequado ao que está no roteiro.

Terra Estrangeira foi realizado com uma equipe pequena, com baixo

orçamento e em pouco tempo, cerca de quatro semanas. Todas essas características só confirmam a força desse filme que traz marcas do seu tempo, sendo um dos mais belos e representativos filmes da Retomada do Cinema Brasileiro e da carreira do diretor, mas que também se apresenta atemporal, mesmo depois de dez anos de seu lançamento (em 2007).

Terra Estrangeira retrata um período específico da história do Brasil, mas

seu lirismo e poética são atemporais. Para Salles, dez anos depois do lançamento, o eixo da história se deslocou: o filme deixa de ser sobre os anos

Collor para se aproximar de uma questão existencial mais profunda, ligada ao desterro e de todas as formas de exílio: amoroso, econômico e político. E ainda uma declaração de amor ao próprio cinema.

“Há uma leveza no fazer que revela a alegria que nós tínhamos em voltar a fazer cinema, depois de cinco anos de silêncio imposto pelo desgoverno Collor. Por isso as homenagens a tantos filmes e tantos movimentos que Daniela e eu gostávamos: o Neo-realismo italiano, Wenders e os filmes de estrada, a Nouvelle Vague e o Cinema Novo. Terra é, nesse sentido, um filme que celebra o nosso amor pelo cinema” (SALLES in MARCELO, 2006).

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