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Faltava uma semana para eu tomar meu avião para Maputo e, de lá, o de volta para o Brasil. Estava num chapa em direção a Mameme e, em meio àquela confusão de braços e pernas que a van havia se tornado, tentava de alguma forma conservar intacto o pequeno embrulho que trazia comigo. Como das outras vezes, tornara-me uma atração à parte para os passageiros no momento em que entrei no veículo. Em meio às conversas cotidianas entre os passageiros e o cobrador, entreouvia os comentários surpresos em cinyungwe que davam conta do muzungu ali presente. O senhor do meu lado logo me tranquilizou quando percebeu que eu entendi a quem se referiam:

“As pessoas estão surpresas porque nunca viram um muzungu no chapa.” “Sim, eu sei”, respondi e me virei para cumprimentar com meu tímido cinynungwe as duas senhoras que conversavam no fundo do veículo: “Mamuga teni?”

“Mamuga teni, obrigada”, responderam em meio a risadas.

A aldeia de Mameme, meu destino final, ficava a cerca de 40 minutos de chapa de Moatize em direção ao Malauí. Sediada na localidade de Kambulatsitsi- sede no Posto Administrativo de Kambulatsitsi70, a aldeia possui algumas centenas de habitantes, e, naquele dia, eu iria encontrar o mais importante deles. Zé Nova já havia me acompanhado por grande parte da região nos últimos meses e, naquela semana, eu o havia convencido a marcar um novo encontro com o líder. Pensei que seria importante para a pesquisa descrever a versão dos manyungwe sobre o encontro colonial, e, segundo Zé Nova, somente o chefe poderia contar essas histórias.

Os manyungwe são, juntamente com os nyanja-machewa, o grupo étnico _______________________________________

70 Em Moçambique, a divisão administrativa pós-colonial segue a seguinte ordem decrescente: o país é divido em 11 províncias, incluindo a capital Maputo que possui o estatuto provincial; as províncias são divididas em distritos, que, por sua vez, são repartidos em postos administrativos decompostos em localidades. A província de Tete possui 13 distritos, 34 postos administrativos e 124 localidades habitados por mais de 2 milhões de pessoas.

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mais representativo de Tete. Constituindo cerca de 30% da população total da província, os manyungwe ocupam, de modo mais intenso, as zonas planálticas contíguas ao Zambeze, da represa de Cabora-Bassa ao estreito do Lupata, e são a esmagadora maioria étnica da capital Tete.

Desci do chapa em meio ao mercado local. Em Mameme, como em tantas outras aldeias, os comerciantes aproveitavam as paradas dos chapas e o vai e vem dos viajantes para conseguir vender suas mercadorias espalhando suas barracas por centenas de metros ao longo dos dois lados da rodovia. Cruzei as pequenas vendas que disputavam espaço na via e fui em direção da casa de Zé Nova, que já estava sentado na varanda. Estendi-lhe o embrulho e confirmei sua expectativa: “É uma camisa nova”. Abriu, agradeceu e seguimos novamente em direção da estrada e, de lá, para a casa do chefe, em um local mais afastado.

Sentamos, os três, em pequenos bancos no quintal, e o líder iniciou a história: “Meu avô me contava que os brancos vieram pelo Zambeze. Chegaram ali, aprovaram o local e resolveram ficar. Trouxeram junto com eles os tonga para trabalhar. Depois de algum tempo, os filhos dos brancos casaram com os tonga e quando a primeira criança nasceu não era branco, nem negro — era misto. Aquela região chamava-se nyungwe, pois era o lar de uma grande feiticeira com esse nome, e aquele filho passou-se a chamar manyungwe, filho de nyungwe.”

“Os manyungwe são mulatos então?”, perguntei.

“No começo sim, mas os manyungwe começaram a casar entre si e ficaram pretos. Quando o primeiro nyungwe nasceu, os portugueses não o tratavam mal, e a criança e os portugueses comiam juntos na mesma mesa.”

O líder esperou o Zé Nova terminar a tradução para mim e finalizou:

“Mas depois os manyungwe começaram a crescer, o número já estava elevado e já não éramos mais brancos...”.

O líder levantou do banco, sinalizando o fim da conversa, e falou em português:

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SCRAVIDÃO COMO PROJETO DE ASCENSÃO SOCIAL

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A CONSTITUIÇÃO COLONIAL DA ETNIA NYUNGWE

A história do líder de Mameme não deve ser entendida como uma referência a um passado mítico no qual a ordem das coisas foi sacudida por algum evento mundano. Muito pelo contrário, a narrativa diz respeito a uma realidade histórica bem concreta.

As origens dos tonga podem ser traçadas até a confluência dos rios Luenha e Zambeze, a cerca de 50 km ao sul da atual cidade de Tete. Entretanto, seu passado permanece obscuro e é objeto de intensa discussão na literatura especializada.71 O certo é que, embora os tonga estivessem sobre a área de influência de Monomotapa, constituíam um grupo à parte da dinastia shona-karanga, e o controle exercido pelo rei mutapa sobre eles era limitado — provavelmente restrito a taxas periódicas e a algum tipo de governo indireto.72 Com a revolta de changamira nos fins dos quinhentos, os tonga ganharam certa autonomia e iniciaram uma série de rebeliões contra a soberania karanga que, imersa em conflitos internos, pouco pôde fazer para manter a hegemonia nas terras anteriormente dominadas. Entretanto, para resistir às tentativas de anexação do Barúe, outro reino karanga recém-emancipado do domínio do mutapa e, posteriormente, no intuito de se proteger das invasões ngoni que tomaram o Vale do Zambeze durante o século XIX, os tonga viram-se obrigados a reconhecer a autoridade dos prazeiros portugueses. Essa política de alianças que perpassou séculos evitou que os tonga, assim como muitos outros povos, sofressem com invasões inimigas e tentativas de escravização.73

Esse longo processo não atingiu a população tonga por igual, e a maior prova disso é a polissemia que o termo “tonga” ganhou no Baixo Zambeze. Pouco associado a um grupo homogêneo, o seu significado ganhou uma imensa amplitude nos diferentes contextos sociais em que foi utilizado. Segundo Newitt (1995), o _______________________________________

71 Cf. Colson, (1969), Isaacman, (1972, p.4), Lancaster, (1974), Junod (1977) e Rita-Ferreira (1982).

72 Cf Isaacman, (1972).

73 Cf. Isaacman, (1972) e Newitt (1995). “Para os tonga das terras baixas de Moçambique, o facto de serem governados pelos portugueses tornava-se com bastante frequência mais atractivo que servir às ordens dos Carangas ou Maraves. O domínio português não só se traduzia por um aumento do número de mulheres cativas, como lhes garantia o acesso a grandes quantidades de bens importados, aos quais por certo não seria tão fácil aceder caso estivessem dependentes dos senhores carangas. ” (NEWITT, 1995, 205).

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nome tonga era utilizado pelos portugueses para designar tanto aquelas populações que viviam ao sul de Moçambique, atual território dos povos bitonga, como aquelas que habitavam o interior de Sofala e o Vale do Zambeze. Durante os setecentos, foi amplamente difundido como sinônimo de pretos na região de Tete.74 Na província dos Rios de Sena, os tonga encontravam-se fragmentados em pequenas chefaturas e, ao contrário de seus inimigos karanga, não possuíam meios para acumular riquezas através da pecuária. Expulsos das terras altas com o avanço de Monomotapa, encontraram, nas margens do Zambeze, áreas infestadas pelo mosquito tsé-tsé — um obstáculo para o desenvolvimento daquela atividade — e, desse modo, procuraram fortalecer suas linhagens através da guerra e da compra de escravos. Os portugueses, quando buscaram apoio para consolidar sua presença ao longo do rio, descobriram que poderiam facilmente contar com os tonga caso a expansão territorial lusitana lhes rendesse prisioneiros. Assim, em fins do século XV, com apoio português, a maior parte das rotas comerciais entre o interior e a costa era controlada por chefes tonga, sendo a povoação de Sena incrustada no bojo do território tonga do chefe Mpangu (NEWITT, 1995 E SILVA, 2002).

A participação dos tonga nas rotas comerciais portuguesas permitiu-lhes uma franca ascensão social e política, advinda tanto do revigoramento de suas linhagens pela inserção de novos trabalhadores escravos e esposas cativas, quanto do estreitamento das relações com os portugueses — com a cobrança de taxas dos mercadores estrangeiros, com a venda de seus serviços como transportadores e a edificação de uma economia de dádivas entre vindouros e autóctones.

Rita-Ferreira (1982), circunscrito ao território português, define os tonga do Baixo Zambeze como um grupo bastante diverso e extenso. Lancaster (1974), trabalhando na Rodésia do Sul, encontra variados grupos que se definiram como tonga no correr dos séculos, muitos dos quais eram mercadores associados a foreiros portugueses nas redondezas de Tete. Alguns desses comerciantes, os supracitados mussambazes, amalgamaram-se com as populações das terras altas das Rodésias do Norte e do Sul. Assumia-se o mesmo sentido migratório que diferentes

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74 Os termos utilizados para nomear os autóctones de determinada área eram múltiplos e variam de acordo com o tempo. Primeiramente chamados de cafres, corruptela portuguesa para o termo árabe kaafir para os povos não islâmicos da costa oriental da África, os habitantes do Vale do Zambeze também eram designados de colonos, forros e mussenzes — este último especialmente utilizado na região de Sena. Para maiores informações, ver Rodrigues (2013).

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expedições portuguesas traçaram ao longo dos séculos em busca de mercadorias na legendária corte do rei zambiano Muata Cazembe e na incansável perseguição de uma ligação terrestre com os territórios lusitanos em Angola. Por meio dessa marcha, a identidade tonga sofreu variações, e supostas “inconsistências” constadas por muitos antropólogos devem ser delas consequências. Para Junod (1977), o nome

tonga era um termo depreciativo para “escravos” e seria aplicado para designar diferentes populações sujeitas a conquistadores, enquanto, segundo Lancaster, os tonga rodesianos pensavam em si mesmos como um “povo independente”.

No que concerne às sociedades dos prazos zambezeanos, a maior parte das populações tonga foi absorvida pelo então recém-formado reino karanga do Barúe ou pela sociedade colonial portuguesa, o que explica o significado supostamente depreciativo do termo em território moçambicano. Um chefe tonga cansado do domínio karanga poderia submeter-se a um determinado prazeiro, especialmente se este estivesse disposto a entregar-lhe as mulheres que capturasse. Na realidade, recrutar chefes descontentes ou derrotados era a melhor maneira que os prazeiros dispunham para arregimentar vassalos e poder. Nesse sentido, do ponto de vista tonga, a política de aliança portuguesa em pouco diferia da subjugação karanga, à qual estavam acostumados.

O estabelecimento dos portugueses em Tete e a criação de grandes prazos ao seu redor juntaram os nyanja, do grupo da margem norte matrilinear marave, com os tonga, pertencentes ao grupo shona patrilinear do Sul; dessa confluência, respaldada por evidências linguísticas75, forma-se a etnia nyungwe. A proximidade dos nyungwe com os foreiros, apesar de garantir o acesso a bens estrangeiros e assegurar o fortalecimento de suas linhagens através da captura de escravos ou casamentos, tornou a etnia sinônimo de escravidão e submissão. Entretanto, se a origem dos manyungwe é indissociável da presença europeia na região, a inserção de cada indivíduo na sociedade dos prazos ocorreu de modo variado e desigual. Assim sendo, o grupo que por mais tempo ficou em contato com os senhores dos prazos formou o núcleo central da sociedade nyungwe.76

Em Tete, como em todo o Vale do Zambeze, a emergência de uma sociedade racializada, na qual aqueles definidos como brancos e indianos tinham _______________________________________

75 Cf. Rosário, (1989).

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exclusividade no acesso à bens estrangeiros, fez com que os autóctones desenvolvessem diferentes estratégias para granjear produtos e benefícios. Tal dinâmica costurou certas obrigações e direitos entre os diferentes estratos sociais e definiu noções extremamente resistentes acerca de riqueza, ascensão social e desenvolvimento. Assim, se o contato com os portugueses era essencial para a construção de estratégias de ascensão social individuais e coletivas, associando, em determinados contextos, o termo tonga — e posteriormente o Nyungwe — à noção de “escravos”, tal fenômeno não guardava, necessariamente, uma conotação negativa.

Em 1858, David Livingstone passou por Tete em uma de suas viagens de exploração do Zambeze. Naqueles tempos, a povoação era habitada por um “pequeno número de brancos”, muitos dos quais “expulsos de Portugal pelo 'bem de seu país'”. Parte da população europeia de Tete era composta por militares que, raramente, recebiam o exíguo ordenado enviado pela metrópole e dependiam em grande medida das machambas cultivadas por suas esposas africanas. Os oficiais, que também pouco recebiam, casavam-se com filhas e viúvas de ricos comerciantes — muitos deles já bem estabelecidos nas linhagens locais, tentando beneficiar-se da grande quantidade de escravos e marfim que fluía pela cidade.77 Os luso- asiáticos, que disputavam o comércio de marfim, ouro e escravos, tal qual os portugueses, casaram-se com mulheres africanas e buscavam-se inserir-se na sociedade de prazos por meio de acordos matrimoniais que lhe dessem vantagens na condução de seus negócios. O casamento entre vindouros e autóctones instaurava um novo ponto de fluxo e de abertura na rede de alianças locais. Tais redes eram erguidas em torno dos chefes tradicionais, que calcavam seu prestígio na capacidade de distribuir bens e cargos entre as linhagens mais poderosas, arregimentando um grande número de seguidores ao seu redor. A entrada dos bens estrangeiros no Vale do Zambeze fez com que indianos e europeus ganhassem proeminência no cálculo político local. Do mesmo modo, para os estrangeiros, fazer parte do circuito de trocas africano, via casamento ou acordos comerciais, os _______________________________________

77 Estratégias de ascensão social via matrimônio não eram novidade: os mercadores muçulmanos que percorriam a rota swahili – ligação comercial que cruzava quase toda extensão da costa oriental africana – antes da consolidação da presença portuguesa já se utilizavam desse expediente, casando com filhas dos chefes locais e garantindo certa exclusividade no comércio regional. Assim, tanto os mercadores europeus, quanto os mussambazes buscavam alicerçar sua influência nas aldeias desposando filhas de indivíduos influentes (NEWITT, 1995).

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tornavam mediadores incontornáveis entre as pretensões colonizadoras portuguesas e o vasto interior moçambicano, ávido por mercadorias trazidas de fora e desconhecido pela maior parte dos administradores. Essa dinâmica permitiu que os foreiros mantivessem enormes séquitos de escravos, que eram oficialmente divididos entre escravos e colonos livres e viviam dentro do prazo e pagavam tributos.

Em meados de 1858, Livingstone estava impressionado com a quantidade de cativos que os senhores arregimentavam com seu prestígio, e que, embora os negros possuíssem todos os “vícios comuns à sua classe”, raramente era tratada de modo “cruel” pelos seus “mestres”. Livingstone considerava que essa correção com a qual os portugueses cuidavam de seus escravos devia-se tanto à “bondade natural de seus corações” quanto ao medo de que fugissem.

Segundo o observador, ao comprarem um negro adulto, os portugueses buscavam, na medida do possível, comprar junto toda a sua família, fixando-o, assim, em sua nova casa. Para Livingstone, essa tática impedia que o novo cativo fugisse, já que devido à inexistência de laços sociais fora dos prazos ele seria facilmente capturado nas aldeias próximas e vendido novamente como escravo. Entretanto, o que novos estudos têm demonstrado é que, ao mesmo tempo em que tais práticas conformavam um variado expediente português para evitar a deserção de suas tropas, também constituem provas de uma complexa dinâmica social por meio da qual as categorias de escravo e senhor eram intensamente negociadas, transformando a fronteira entre submissão e liberdade em uma linha muito tênue. Se a compra da família do cativo garantia o seu enraizamento nas hostes do prazo, a incorporação da linhagem dentro da cadeia de comando do prazo garantia ao foreiro um poder político que só poderia assentar-se por meio da estrutura política africana.

Isaacman (1972), no seu clássico estudo sobre os prazos, estabelece uma diferenciação muito clara entre as práticas de escravização tradicionais e as formas exógenas que teriam sido implementadas pelos portugueses na consolidação do regime colonial. Segundo o autor, embora os dois sistemas coexistissem dentro dos prazos, eles eram estanques e desiguais. Devido à grande extensão da maioria das terras, os contatos entre prazeiros e autóctones eram casuais, e o sistema local de escravização foi praticamente inalterado pela presença portuguesa. Ainda que tais sociedades não permanecessem estáticas, a sua transformação obedecia às

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dinâmicas políticas particulares que os portugueses souberam habilmente conservar e incorporar de modo a manter sua influência sobre elas. Assim, os africanos que viviam sobre a jurisdição dos prazos mantiveram a divisão clânica exogâmica ou os muputu. O muputu estabelecia algumas obrigações durante as épocas de semeadura e colheita, todavia, não desempenhava um papel rotineiro na vida dessas populações.

A chamada adopted dependency (Isaacman, 1972), ou lineage slavery (Lovejoy, 2000), consistia em uma forma de escravização que permitia a incorporação do cativo, ou akoporo em cinyungwe (sing. koporo), dentro desse sistema de parentesco e era amplamente difundida no Vale do Zambeze. Por esse sistema, a aquisição de escravos podia ser feita por comércio, dívidas, crimes, fome ou guerra, e seu principal objetivo era o de fortalecer a linhagem receptora. Os akoporo eram integrados dentro do sistema de parentesco em uma posição subalterna; recebiam o nome do muputu de seu dono e passavam a ser tratados como membros da linhagem. Segundo Isaacman, aos akoporo eram relegadas as tarefas domésticas reservadas às crianças ou mulheres como trabalhar na machamba, coletar lenha e água e vigiar os rebanhos. Depois dos ritos de passagem, os akoporo casavam-se e seus filhos eram incorporados à linhagem do dono, geralmente livres da condição de escravos — se o koporo casasse com os parentes de seu senhor, ele seria automaticamente emancipado.

A posse de escravos, assim como uma linhagem forte e numerosa, era o privilégio de chefes ou de alguns indivíduos ricos que possuíam dez ou mais akoporo. A maioria das pessoas não tinha o excedente suficiente para comprá-los ou mantê-los, ou a força política necessária para conquistá-los. Assim, após a chegada dos portugueses, a aquisição de escravos, dentro do sistema tradicional, era geralmente reservada para aqueles que tinham acesso aos bens de consumo europeus — largamente apreciados na região e utilizados como moeda de troca no comércio escravagista.

Para Isaacman, o sistema de escravização africana diferiria do método de recrutamento dos prazos na medida em que permitia que o escravo transcendesse sua condição e fosse incorporado pela linhagem receptora. Assim, a sociedade tradicional garantiria formas de ascensão social para aqueles localizados em sua base, permitindo até mesmo que os akoporo possuíssem escravos próprios adquiridos pela acumulação de bens providos pelos sistemas de reciprocidade local

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do qual nunca esteve alheio. Ademais, ao contrário dos exércitos achikunda dos foreiros, cuja grande parte teria sido remetida para as Américas, o koporo, à exceção das épocas de crise, dificilmente era vendido. Assim, para o autor, os escravos que viviam dentro dos prazos eram privados dos direitos básicos reservados aos akoporo. Nas palavras de Isaacman:

“The treatment of the slaves reflected the impersonal nature of their relationship with the prazeiro and the absence of institutional mechanisms to protect them from arbitrary and capricious actions” (ISAACMAN, 1972, 55).

Entretanto, Livingstone, ao descrever Tete em meados dos oitocentos, auge do tráfico negreiro na região, conta a história de um “inteligente e ativo jovem negro” que teria se voluntariado à servidão. Chibanti, até então um homem livre, explicou sua decisão ao viajante. Contou que estava “sozinho no mundo” e, sem pai, nem mãe, não tinha quem pudesse “dar-lhe água quando estivesse doente ou comida quando tivesse fome”. Assim, Chibanti vendeu-se para Major Sincard, um prazeiro reconhecidamente compassivo com seus escravos, que tinham “pouco a fazer e muito o que comer”. A astúcia singular com que conduziu o negócio, vendendo-se por três peças de roupa — com as quais comprou um homem, uma mulher e uma criança, restando-lhe ainda uma peça — garantiu-se de capital inicial suficiente para posteriormente adquirir mais escravos e manter uma canoa grande navegando o Zambeze. Desse modo, Chibanti foi empregado por seu senhor para transportar marfim até Quelimane e construiu um ótimo negócio com o qual pôde sustentar uma boa posição na sociedade colonial.

Rodrigues (2013) ressalta que, embora existissem negros com dinheiro

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