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COLONIZAÇÃO PORTUGUESA

52 MELLO E CASTRO, 1861, 36.

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um exército montado seria determinante na manutenção da ordem na região e acabaria com os saques às caravanas comerciais e com possíveis revoltas. Mello e Castro descreve o “terror” que tomaria conta da “cafraria” ao verem, pela primeira vez, um soldado montado. Calculava que se utilizassem apenas uma parte do marfim africano gasto em tecidos para adquirir alguns animais, eles logo se multiplicariam nos “admiráveis pastos” do Zambeze. Em algum tempo, com a vinda de reinóis capazes de comandar os negros e os manamuzungos, poder-se-ia montar um exército com cinquenta cavalos, capaz de acabar com qualquer resistência local.

Obviamente que, por causa do terror que causaria a recém-adquirida vantagem militar e tendo em vista a nova realidade proporcionada à Conquista portuguesa, uma série de medidas teriam de ser tomadas. Primeiramente, dever-se- iam punir com pena de morte aqueles negros que ousassem subir em um desses cavalos, e, em segundo lugar, com o objetivo de assegurar os privilégios comerciais conquistados, a mesma pena capital deveria recair sobre quem vendesse qualquer produto estrangeiro fora das zonas comerciais das vilas. Mello e Castro ainda sugere que se façam fortificações em Zumbo e em Songo, localidades distantes e desprotegidas que poderiam sofrer mais facilmente com a ambição crescente que tomava conta dos negros.

Embora os acordos entre portugueses e autóctones garantissem uma relativa paz, os estrangeiros dos Rios de Sena tinham o que temer. Apesar da discrepância entre as histórias sobre assombrosos enriquecimentos que corriam à época e a real situação de pauperização em que muitos portugueses se encontravam em Moçambique, a situação colonial, para os emigrados, constituía uma real possibilidade de ascensão social e de acesso a uma nobreza que não era mais possível no reino, sendo o seu padrão de vida muito superior ao dos negros. Além do mais, com o crescimento do comércio em direção às Índias e a insaciável demanda por escravos no Novo Mundo, os comerciantes e foreiros entraram em contato com mercadores indianos e traficantes de escravos brasileiros e franceses, acumulando uma grande quantidade de bens (ANTUNES, 2011). Assim, a elite zambeziana passou a ser parte central de uma rede internacional em que se negociava mercadorias como marfim, tecidos, ouro e escravos e, por meio da qual, se adquiriam pesados móveis coloniais brasileiros, joias indianas, fatos portugueses e outros bens com os quais tentava mimetizar a vida nobre da metrópole e marcar

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sua posição dentro da sociedade colonial.53

Os encontros sociais da alta classe de Rios eram marcados por senhores em seus ternos europeus e relógios franceses fumando tabaco e mascando rapé brasileiro em meio a longos jogos de xadrez e cartas que envolviam grandes somas em dinheiro e bens. As suas casas eram mobiliadas com peças indo-portuguesas, colchas e tecidos goeses, porcelana chinesa e louças da Índia. A vida do restante da população europeia, embora não tão glamorosa, era suficientemente estável para assegurar funções em meio a essa rede que lhe garantia um ordenado pago em tecidos e posições de barganha, distribuindo diferentes utensílios domésticos e bens duráveis em troca de favores, mercadorias e serviços.54

O tão sonhado exército montado de Mello e Castro nunca saiu do papel e, sem qualquer força política ou militar, foi incapaz de impedir o crescimento exacerbado das redes de comércio interiorano. Quarenta anos após a passagem do antigo governador por aquelas paragens, encontramos Lacerda e Almeida lamentando a usura dos prazeiros de Sena, que buscavam tecidos fiado na Ilha de Moçambique para manter suas redes comerciais e distribui-los para os chefes locais, enquanto, aos inimigos, reservavam cárcere privado e mutilações. O governador queixa-se ainda da falta de exército com o qual poderia defender-se dos ataques de régulos vizinhos ou reconquistar as terras perdidas ao norte. A mesma fortaleza que o Frei Conceição havia elogiado nos finais do XVII consistia em “quatro paredes de barro cobertas de palha”. A situação era ainda mesmo pior:

“Que seja possível que, devendo nós ser o mestre dos cafres, procurando desabusai-os de suas superstições e reduzi-los ao grêmio da Igreja, sejamos os mesmo que bebamos de sua doutrina e os imitemos nas suas superstições e vícios, do modo que podem elles vangloriar-se de serem nossos mestres, e que com viva fé nos seus embustes procuremos para serem nossos adivinhos: parece incrível, mas oxalá que isso não se verificasse. A polygamia é tão usada que d'ella já não faz caso. É verdade que nas villas se não observa, mas nas terras da Coroa não há patrício (assim chamam os filhos dessa terra que tem mistura negro, branco ou canarim) que não tenha três ou mais mulheres,à imitação dos mossenzes. Entre os cafres todo o mau acontecimento, como a morte de qualquer pessoa, etc, é por effeito de feitiços; para qualquer cousa consultam seus adivinhos, a que chamam _______________________________________

53 Cf. Antunes (2011). 54 Cf. Antunes (2011).

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ganjas, assim como também para lhes descobrirem os feitiços e o futuro” 55

Para Isaacman e Isaacman (1975), apesar de toda disputa política com a metrópole, a comunidade de prazeiros do século XVII contemplava as expectativas mais gerais da Coroa portuguesa. O pequeno grupo de famílias incluía indivíduos metropolitanos de boa índole e agentes reais que ganharam suas terras em decorrência de serviços prestados a Portugal. Naquela época, a sociedade zambeziana era ainda composta por padres, comerciantes bem-sucedidos e militares aposentados, e — ainda que houvesse algum atrito entre o governo central e os interesses locais — os colonos europeus se imaginavam como parte integrante de um império português ultramarino. Com o decorrer do século XVII e o começo dos setecentos, algumas das principais famílias desfrutaram de uma grande ascensão social e, através de estratégias matrimoniais endogâmicas, construíram vastos impérios pessoais, expandindo a influência de Portugal e da Igreja. Seus filhos eram enviados a Lisboa ou a Goa, onde podiam ter acesso à educação católica, e mantinham uma vida social similar à da alta classe portuguesa. Mesmo que os europeus mais pobres não pudessem manter tal ostentação e casassem regularmente com os “filhos da terra” ou com os “canarins”, tais atitudes eram acompanhadas de uma grande estigmatização social aos olhos da elite dos Rios.

Entretanto, a partir dos setecentos, com a derrocada dos projetos migratórios de Lisboa, as constantes batalhas que tomaram conta do Vale do Zambeze e a chegada em massa de goeses, o cenário social mudou drasticamente. A comunidade de prazeiros adotou regras matrimoniais africanas, rejeitando a monogamia; a crença e prática de rituais locais foram difundidas, e uma comunidade local de europeus quase desapareceu. Os foreiros passaram a viver dentro de seus territórios, e as vilas viraram moradia exclusiva de funcionários da Coroa; os filhos dos foreiros eram criados por seus escravos, e as enormes distâncias entre um prazo e outro eram raramente vencidas.56 A transformação da comunidade europeia, na Zambézia,

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