• Nenhum resultado encontrado

No decorrer da tese, encontramos no sexo atos que dialogam com a violência. Ela pode ser externalizada nos estupros de Cidade de Deus ou sutil como as ereções estimuladas pelo poder em O invasor. Em Para comer e Estômago, ela aparece no ato de mastigar/deglutir e seu duplo significado e no silêncio imperioso de Nonato/Alecrim quanto a Íria. Marcos Jorge, como diretor do filme, afirma o seguinte:

queríamos que as pessoas vissem no Estômago também a metáfora de uma sociedade que, com seus mecanismos de poder, acaba degradando o talento (no caso de Nonato, o talento culinário) e o amor (claramente representado pela Íria), e mudando as posturas éticas. Não é uma metáfora sutil, concordo, mas acho que isto não a faz menos poética ou menos verdadeira” (JORGE, 2008, p. 28).

O poder degrada o talento e o amor. Essa arquitetônica da violência no filme pode ser encontrada na relação de Nonato/Alecrim consigo e com o outro. Ele usa de seu talento culinário para ascender hierarquicamente na sociedade prisional, o desejo pelo poder no lugar evidenciado pela progressão dos beliches – “Beliche do meio, tamo importante hem Nonato” (SILVESTRE, NATIVIDADE, JORGE, 2008, p. 195) – leva-o a matar Bujiú e, ao final, fazer elucubrações sobre o novo oponente Etecetera (Paulo Miklos, que também interpretou Anísio em O invasor). O personagem usa a comida como instrumento de dominação dos outros, mas, também, como parte (velada) de seus atos violentos. Nonato busca o poder ao metaforicamente “devorar” o outro e assimilar para si o poder, fruto do cargo ocupado, da alquimia do saber (fazer). É uma atitude fadada a sempre estar faminta, ideia retratada em seu corpo franzino.

Por outra via, chegamos à degradação do amor que o protagonista nutria por Íria a ponto de pedi-la em casamento e, ilusoriamente, acreditar nessa possibilidade. Aprofundamos essa questão através do conto Para comer. Nele, acompanhamos a história de um homem solteiro, de trinta e dois anos, que seduz as mulheres com jantares que ele mesmo prepara. O narrador brincalhão chega a fazer algumas comparações para o leitor compreender como o protagonista impressionava suas “vítimas”:

Veja bem: vamos supor que você goste de homem. Aí vai na casa de um rapaz bem posto na vida, cheiroso, e tromba com um fideuá na mesa. Se a pessoa não tem equilíbrio, se não sabe o que quer da vida, pode apostar: ela tira a roupa depois da segunda garfada e se entrega de corpo e fluidos para ele ali mesmo. Por cima dos caramujos e dos camarões (SILVESTRE, 2005, p. 11)

O fragmente alude ao fideuá9 como prato de sucesso que leva o sedutor a obter vitória e consumar suas intenções sexuais. A boa comida tem caráter afrodisíaco e leva ao sexo consensual. O texto também contribui para entendermos o título do conto, ou seja, o rapaz sedutor sabe cozinhar bons pratos para as mulheres comerem e ele, além de se alimentar também, “come” com o sentido sexual agregado à palavra e ao ato.

DaMatta desenvolve essa ideia em pormenores, conforme lemos a seguir:

O fato é que as comidas se associam à sexualidade, de tal modo que o ato sexual pode ser traduzido como um ato de “comer”, abarcar, englobar, ingerir ou circunscrever totalmente aquilo que é (ou foi) comido. A comida, como a mulher (ou o homem, em certas situações), desaparece dentro do comedor – ou do comilão. Essa é a base da metáfora para o sexo, indicando que o comido é totalmente abraçado pelo comedor. A relação sexual e o ato de comer, portanto, aproximam-se num sentido tal que indica de que modo nós, brasileiros, concebemos a sexualidade e a vemos, não como um encontro de opostos e iguais (o homem e a mulher que seriam indivíduos donos de si mesmos), mas como um modo de resolver essa igualdade pela absorção, simbolicamente consentida em termos sociais, de um pelo outro. Assim, a relação sexual, na concepção brasileira, coloca a diferença e a radical heterogeneidade, para logo em seguida hierarquizá-las no englobamento de um comedor e um comido. E não se pode deixar de observar, para quem estiver lendo estas linhas um tanto desavisado, que o englobador tanto pode ser um homem (esse seria o modelo ideal, a formulação tradicional) como também uma mulher (se for ela quem atua buscando e querendo a relação, exercendo com isso um papel ativo). Assim, pode-se dizer que, nas suas relações com as virgens e esposas – ou mulheres que assim se definem socialmente –, os homens é que são os comedores; mas nas suas relações com as mulheres do mundo e da vida – ou com aquelas que se definem como independentes e individualizadamente –, eles são comidos (1986, p. 51)

Através do sexo, o indivíduo, no caso, o brasileiro, elimina a ideia de sujeitos iguais que buscam o prazer pelo encontro e pelo consentimento no instante do ato. Diferente disso, ao agregar o verbo comer ao léxico sexual, instaura-se uma hierarquia em que temos um “comedor”, aquele ou aquela que detém o poder e o “comido” – que é dominado, abatido e devorado. A relação simbólica de poder, nesse caso, se torna violenta. O conto explicita essa ideia desde o título até seu final, quando o protagonista se apaixona e, por falta de um repertório culinário, come um fast food pela primeira vez com sua parceira. Ao abandonar as estratégias de sedução ele chega ao sentimento mais maduro com o outro, há uma equanimidade atingida pelo paladar que se desdobra nos sentimentos.

Estômago leva essa ideia de “comer” ao extremo com o suposto triângulo amoroso

entre Íria, Nonato/Alecrim e Giovanni. A sequência de sexo mais intensa e metafórica entre o nordestino e a garota de programa, para nossa análise, está descrita desta maneira no roteiro:

Nonato e Íria fazem sexo. Íria está de quatro na cama e Nonato a está penetrando, por trás. A cama range muito com os esforços de Nonato. Nonato segura com força o traseiro de Íria, que é grande, branco e redondo. A câmera passeia pelo flanco e pelas costas de Íria até chegar em seu rosto. Na beira da cama, Íria está... Comendo. Ela pega, com as mãos, grandes bocados de comida e coloca na boca. Ela se atrapalha um pouco, pois seu corpo é jogado para frente e para trás por Nonato, mas mesmo assim ela come com sofreguidão, lambendo os lábios. A câmera continua o movimento e desce em direção ao colchão, onde encontra uma marmita aberta, com dentro uma boa porção de macarrão, preparado com molho à putanesca. Íria pega um bocado de macarrão e leva à boca (SILVESTRE, NATIVIDADE, JORGE, 2008, p. 161/62).

O roteiro se atenta ao duplo sentido do verbo comer e brinca com isso. Enquanto Nonato penetra a mulher, ela come o macarrão à puttanesca. Todas as histórias populares

ligadas a esse prato têm seu mote fundamentado no sexo, uma das principais é a de que seu nome se deve ao fato de ele ser fácil e rápido no preparo, por isso as prostitutas de Nápoles, na Itália, o preparavam no intervalo entre os clientes que as procuravam (FRANCESCONI, 2002). Isso se relaciona diretamente com o filme e a biografia de Íria. Abaixo, seguem recortes da cena em discussão:

Figura 109: Íria comendo...

Fonte: Filme Estômago (01:00:08) Figura 110: Macarrão à puttanesca Fonte: Filme Estômago (01:00:10)

As figuras 109 e 110 correspondem ao roteiro. A atmosfera é trabalhada na tonalidade vermelha através do macarrão, da pele dos personagens e do lençol da cama. O fato de Nonato penetrar a moça, enquanto ela come, ilustra a ideia de DaMatta em que as mulheres que desempenham um papel ativo no ato sexual de comer são as “comedoras” enquanto o homem (no caso do filme) é o comido. Essa posição hierárquica de Íria fica mais contundente quando o cozinheiro se apaixona por ela. Ele entra com o sentimento e ela com a fome (SILVA JR.; GANDARA; ALMEIDA FILHO, 2017).

Aos poucos, essa relação se torna perigosa e o ciúme recalcado de Nonato começa a vir à tona, como na passagem do clube quando ele, bêbado, briga com o público que assiste ao espetáculo de Striptease feito por ela. O clímax ocorre quando ele espia o jantar dela com Giovanni. Nessa ocasião, o chef “chega na mesa com a sobremesa e Íria ataca o prato. Giovanni senta-se ao lado dela e, enquanto esta come, tenta dar-lhe um beijo. Íria acaba a sobremesa, apanha um guardanapo, limpa rapidamente a boca, e beija Giovanni na boca, longa e sensualmente” (SILVESTRE, NATIVIDADE, JORGE, 2008, p. 241).

Giovanni prepara a sobremesa Anita e Garibaldi (sua versão de Romeu e Julieta com gorgonzola) para Íria (fig. 111), que come com muito prazer (fig. 112). Após o alimento excitante, ela beija o chef na boca (fig. 113), enquanto Nonato assiste escondido (fig. 114). O cozinheiro sofre, pois sua amada não o beijara “nunca” por “causa que num é ético” (00:52:00). Para ela, Nonato é um cliente querido, enquanto Giovanni é sedutor, erótico, “dono” (o mais próximo do amor possível, igual ao casal que dá nome à sobremesa). Giovanni usa a refeição

para “comer” Íria, por sua vez ela “come” Nonato. Essas duas relações de poder são transpassadas por atos violentos antropofágicos que estimulam o recalque de Nonato. Ao trazer à tona o recalcado escondido (o ciúme, o sentimento de traição) ele mata os dois e come a “bunda”.

Figura 111: Anita e Garibaldi

Fonte: Filme Estômago (01:34:10) Figura 112: Íria come a sobremesa Fonte: Filme Estômago (01:34:36)

Figura 113: O beijo

Fonte: Filme Estômago (01:34:56) Fonte: Filme Estômago (01:35:00)Figura 114: Nonato espiona o ato

Na cadeia, lentamente, ele dá vazão ao ato de matar utilizando o alimento. O sintoma retorna, perdura e busca uma substituição na hierarquia do poder. Disso, um detalhe nos chama a atenção. Em nenhum momento das narrações em voz off (voz que não faz parte da cena) Nonato/Alecrim cita Íria. Em suas palavras, aparecem Bujiú – “Manda nos outros porque faz umas coisas que nem sendo bem cruel mesmo a pessoa faz. Bujiú, o nome dele” (SILVESTRE, NATIVIDADE, JORGE, 2008, p. 100) – e, carinhosamente, Giovanni: “Já esse aí na mesa é o seu Jovani. Ah, esse sim, merecia o beliche de cima, e até uma lanterna pra fazer palavra cruzada quando apaga as luz” (SILVESTRE, NATIVIDADE, JORGE, 2008, p. 101), mas jamais a moça. Nossa hipótese também se baseia no recalque. Ele ainda não conseguiu se recuperar da desilusão amorosa. Íria existe enquanto imagem fílmica, mas não como palavra memorial do protagonista. Ela surge em cena como força inconsciente de Nonato/Alecrim que, por mais que tenta silenciá-la, esbarra com seu fantasma nos níveis visuais da tela cinêmica. Íria é um sintoma primário e profundo que o personagem, durante a projeção do filme, busca eliminar e digerir em seu estômago fílmico pelo recalque.

Documentos relacionados