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Os homens que transitam pela prisão no conto de Silvestre e no filme dirigido por Jorge têm uma história criminal que o público não acessa completamente. Nesse sentido, a tradução coletiva e suas minúcias composicionais aprofundam algumas das biografias dos personagens. Nesse horizonte, a tatuagem, enquanto arte corporal, revela e transforma sentimentos, “traduz a personalidade. Tatuagem é a essência da alma transbordando sobre a pele. É a energia, o grito, o silêncio, é a representação da atitude e de tudo que é humano e divino. É o instante de eternidade, em traços, cores e sentidos, simbolizando emoções” (NETTO, 2011, p. 86). A intervenção permanente tem como característica a tradução de uma perspectiva ou mesmo partes da biografia do sujeito para fora da alma.

Apesar de as tatuagens fazerem parte do cotidiano das grandes cidades, elas ainda são vistas por certa parcela como afronta a determinados padrões morais justamente por serem vinculadas aos presos e seus códigos, assim se tornam uma marca de marginalidade (NETTO, 2011). Quando entramos nessa discussão, chegamos à humanização dos presos. Para além dos

estúdios vinculados quase sempre à tendência de uma demanda, os presos carregam métodos próprios e códigos que fazem parte intrínseca da intimidade de suas vidas criminais.

Conforme Corrêa, ela pode simbolizar um elo que conecta passado, presente e futuro “sendo capaz de unir aquilo que por uma contingência está separado (mãe, filhos, namorados...), e também e ao mesmo tempo, capaz de suscitar sentimentos coletivos mas que quando sentidos e vividos, assumem uma conotação individualizante” (1998, p. 74). Vista assim, a tatuagem em um personagem amplia os significados e as leituras possíveis a partir dos espaços e contextos em que esteja envolvido. Nesse sentido, o artista maquiador é o responsável por criar e traduzir desenhos que dilatam o universo do filme.

O pouco recurso disponível no Brasil, diferente dos Estados Unidos, por exemplo, culmina no prejuízo das técnicas cinematográficas. O setor de maquiagem, assim, é um dos mais prejudicados e marginalizados no meio. Ao longo da história da sétima arte produzida no país, “muitos cenógrafos, oriundos do teatro ou da televisão, acumulavam a função de figurinistas e orientavam também a maquiagem, sem que tivessem seus nomes ligados à direção de arte, embora suas ações alcançassem esse patamar” (PEREIRA, 2017, p. 130). Consoante essa ideia, o maquiador é um artista plural que não necessariamente se especializou nessa área; ele acumulou saberes no decorrer do tempo e “tampa” as ausências profissionais na produção.

Em primeiro plano, a maquiagem está conectada ao desenho de produção, pois ela faz parte da narrativa visual do filme, em segundo ela tem seus próprios procedimentos. Esse é um dos legados artísticos do teatro para o cinema. Nos palcos, “a maquiagem está destinada a valorizar o rosto do ator que aparece em cena em certas condições de luz” (KOWWZAN, 1978, p.108). Ela cria o elemento composicional mais próximo da pele do ator e é responsável por exteriorizar uma ideia que não precisa ser dita, mas vista. No caso do cinema, em que os atores encenam para uma câmera, a maquiagem ganhou outras atribuições, como delimitar o espaço entre o branco dos olhos e a pele do rosto nos filmes em preto e branco por causa da superexposição dos atores quando iluminados para a fotografia do filme (RICKITT, 2007)

No cinema, a maquiagem pode ser considerada como “um filtro, uma película, uma fina membrana colada no rosto do ator: nada está mais perto do corpo do ator, nada melhor para serví-lo ou traí-lo que esse filme tênue” (PAVIS, 2008, p.170). Ela contribui para que o ator se veja de outra maneira, enxergue seu corpo na dimensão visual em que o personagem é o habitante principal. Ela imprime na pele dele uma história que não é sua, mas que o corpo dele é o responsável por contar.

Dessa maneira, a tatuagem é a forma de maquiagem mais próxima do ator e, no caso de filme traduzido de uma obra literária, a responsável por traduzir aspectos da alma do personagem, como ocorre em Estômago.

Em Presos pelo estômago, Silvestre não escreve sobre as tatuagens dos presidiários, porém aponta para isso, como neste fragmento sobre a rotina dos presos: “consistia em passar o dia inteiro fazendo nada no meio daquela gente de passado rico. Verdade, toda regra tem exceção; do mesmo jeito que se encontra bandido no meio de gente de bem, também se acha gente de bem no meio dos bandidos” (SILVESTRE, 2005, p. 21). Na prisão, Alecrim convive e conhece seus companheiros de cela. Esse conhecimento fica mais profundo no roteiro quando do diálogo sobre as tatuagens entre o protagonista e Duque:

Nonato percebe que o visitante traz, na mão esquerda, a palavra CRUEL tatuada, uma letra em cada falange. Ele puxa conversa:

NONATO

Ah, tatuagem. Eu também tenho tatuagem, ó. E mostra, no antebraço, uma imagem colorida. DUQUE

Bonita, colorida. Fez na onde? NONATO

Aqui na cidade, mesmo. Essa estrela significa o talento, essa outra aqui é minha mãe e esse pássaro bicudo é a coragem. Legal, né? Todo mundo na cozinha tem que ter tatuagem, do cozinheiro ao ajudante. Respeito, sabe?

O detento levanta a manga da camisa e mostra outra tatuagem. DUQUE

Eu também tenho essa daqui, ó. Fiz aqui na cadeia, com tinta de caneta Bic e ponta de compasso.

NONATO Três cruis? DUQUE

Significa os treis PM que eu matei.

(SILVESTRE, NATIVIDADE, JORGE, 2008, p. 242/43).

O diálogo do roteiro é sobre tatuagem e acontece durante o banquete que veremos mais adiante. Através dele, Nonato/Alecrim conhece mais profundamente alguns dos presos que andam com Etecetera, recém transferido. Consoante o personagem, tanto na cozinha, quanto na prisão, a tatuagem implica respeito. A partir desse momento, Duque se desnuda e revela as outras tatuagens que ele fez na cadeia com a técnica em que a tinta da caneta é extraída e aplicada sobre a pele com uma agulha. As três cruzes que simbolizam o assassinato dos policias têm a ver com um passado mais violento do que o pássaro bicudo e as duas estrelas de Alecrim. A seguir, apresentamos um painel desse momento com foco nas tatuagens e nos atores maquiados que aparecem em cena:

Figura 118: Cruel

Fonte: Filme Estômago (01:31:58)

Figura 119: Alecrim, duas estrelas e um pássaro Fonte: Filme Estômago (01:32:14)

Figura 120: Faca na caveira

Fonte: Filme Estômago (01:32:37) Fonte: Filme Estômago (01:25:39) Figura 121: Etecetera

Figura 122: Três cruzes

Fonte: Filme Estômago (01:32:38) Fonte: Filme Estômago (01:37:33) Figura 123: Suely

Marcelino de Miranda foi o maquiador responsável por traduzir a cena e o universo prisional em tatuagem na pele dos atores. Na figura 118, temos uma informação que já estava explícita no roteiro, o termo cruel tatuado nas falanges. Ele já direciona para qual a característica de Duque (Jean Pierre Noher). Em contrapartida, Alecrim mostra as duas estrelas e o pássaro, (fig. 119) que se trata do protagonista do seriado animado Pica-pau (Woody

Woodpecker, EUA), lançado em 1957. O “pássaro louco” do desenho, seu humor corrosivo,

sua figura dúbia e libidinosa, que se lança no caos colorido, representa parte da alma de Nonato/Alecrim. Esse homem tímido, mas calculista, por vezes, confuso, mas sempre tentando palavrar – junto com o fazer – que seduz pela comida e mata para conseguir o beliche de cima. Ao levarmos em consideração que Nonato não tinha a tatuagem no braço, no início filme, inferimos que as duas estrelas podem simbolizar Giovanni, que contribui com o talento do

rapaz, e Íria, figura feminina que cuidou dele, isso sem aprofundarmos as implicações freudianas que também poderíamos acionar a partir do termo mãe.

As outras imagens exteriorizam o universo íntimo dos personagens e o lugar deles no âmbito do crime e da prisão. Na 120 e 122, Duque mostra um dos seus grandes feitos como assassino. A faca na caveira faz alusão ao Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) – que fora amplamente discutido no filme Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite 2: o inimigo

agora é outro (2010) dirigidos por José Padilha – e as três cruzes indicam a morte, assim temos

morte de policiais, que, presumivelmente, sejam do Bope.

A figura 121 nos mostra que Etecetera tem uma tatuagem de cruz no peito. Consoante Paredes (2003), esse símbolo, no universo criminoso, indica um sujeito extremamente perigoso que vai até as últimas consequências, é uma indicação para ficar longe dele. Por último, vemos a travesti Suely (Adriano Carvalhaes) (fig. 123) com uma pequena tatuagem em formato de coração, símbolo que indica que ela é homossexual.

As escolhas de tatuagens expõem e afirmam ao público histórias das biografias dos personagens. Apesar do diálogo e das possíveis inferências, é a tatuagem que confirma nossas impressões. Entre a maquiagem e a fotografia, os caracteres dos personagens se redefinem nos corpos. Miranda, assim, acrescenta à tradução coletiva sua leitura do roteiro e do conto, trazendo à tela-corpo dos atores ideias que estavam implícitas no texto quando este aciona o cronotopo prisional, mas que somente na tela cinêmica foi possível ver e reconhecer. Nossa reflexão sobre a tatuagem se passa na sequência do banquete, momento de confraternização máxima entre presos e policias, é justamente nela que nos concentramos a seguir.

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