Retomando as diferenciações básicas dos dois grandes ramos do Direito, pertinente
atentar-se aos ensinamentos de André Ramos Tavares (2009, p. 23):
[...] Há uma radical oposição e (aparente) incompatibilidade entre os modelos mencionados [“Civil Law” e “Common Law”]. Realmente, enquanto o modelo codificado (caso brasileiro) atende ao pensamento abstrato e dedutivo, que estabelece premissas (normativas) e obtém conclusões por processos lógicos, tendendo a estabelecer normas gerais organizadoras, o modelo do jurisprudencial (caso norte-americano, em parte utilizado como fonte de inspiração para criação de institutos no Direito brasileiro desde a I República) obedece, ao contrário, a um raciocínio mais concreto, preocupado apenas em resolver o caso particular (pragmatismo exacerbado). Este modelo do common law está fortemente centrado na primazia da decisão judicial (judge made law). É, pois, um sistema nitidamente judicialista. Já o Direito codificado, como se sabe, está baseado, essencialmente, na lei [...]
Agora, para tratar especificamente da “segurança jurídica”, Luiz Guilherme Marinoni
(2009, p. 55) confirma que originalmente ela “[...] adquiriu feições antagônicas no civil law e
no common law. No common law fundamentou o stare decisis, enquanto que, no civil law, foi
utilizada para negar a importância dos tribunais e das suas decisões. [...]”.
Pedro Miranda de Oliveira (2012, p. 679) aprofunda-se sobre a diferente maneira
como a segurança jurídica foi imaginada nos dois grandes ramos do Direito:
[...] Note-se que o civil law não só imaginou, utopicamente, que o juiz apenas atuaria consoante a vontade da lei, como ainda supôs que, em virtude da certeza jurídica que daí decorreria, o cidadão teria segurança e previsibilidade no trato das relações sociais. Mais: imaginou que a lei seria o suficiente para garantir a igualdade dos cidadãos. Os países que adotaram o sistema common law, contudo, perceberam que a segurança e a previsibilidade teriam de ser buscadas não na lei, mas sim nos precedentes ou mais precisamente no stare decisis, cuja expressão completa é stare decisis et non quieta movere, que significa “ficar com o que foi decidido e não mover o que está em repouso”. [...]
Não significa dizer que a aplicabilidade da segurança jurídica seja pior ou melhor em
um ou outro local. É apenas diferente, com incidência específica, que “caminha”
paralelamente, sem qualquer ponto de conflito.
Mas, a depender do ramo jurídico em que a segurança jurídica é enquadrada, ela
apresenta perfil diferenciado, razão pela qual deve ser pensada de maneira distinta, segundo as
conjecturas e peculiaridades do ambiente jurídico no qual está circunscrita.
O Brasil, como já antecipado, é país tradicionalmente vinculado à tradição do “Civil
Law” e, portanto, desenvolveu-se com base em raízes históricas que o levaram a conceber a
segurança jurídica enquanto resultado do modelo codificado.
Especialmente no que tange à atividade decisória, a resposta jurídica comumente
resultava da declaração de uma lei preexistente; ou seja, os Códigos e sua pretensa
completude tinham o condão de garantir previsibilidade aos jurisdicionados, sendo certo que a
resolução dos embates partia da aplicação prevista e (pré) determinada da lei.
Daniel Mitidiero (2018, p. 73-74) aprofunda:
[...] o problema da vinculação ao direito no Brasil sempre foi pensado como algo concernente apenas à legislação, cuja aplicação para os casos concretos dar-se-ia com a colaboração de um juge inanimé – encarregado apenas de
declarar uma norma preexistente para a correta solução do caso. E mesmo quando se percebeu que a lei poderia não ser suficiente, ainda assim se imagina que a tarefa do juiz estava ligada a extrair da legislação a resposta para o caso concreto. Daí que a segurança jurídica, a liberdade e a igualdade foram conceitos normalmente pensados tendo como referencial exclusivamente a legislação – sendo essa inclusive a abordagem da nossa própria Constituição. [...]
(grifos originais)
Em outras palavras, a segurança jurídica não parecia estar no escopo de preocupação
do Poder Judiciário. Aparecia como valor inerente à atuação do legislador, sendo certo que os
Tribunais, ainda que houvesse algum tipo de margem interpretativa nesse sentido, apenas
exteriorizavam a normatividade pensada de antemão pelo Poder Legislativo.
A questão que se coloca é se essa noção original continua válida para os dias de hoje
ou se não seria o caso de revê-la, ajustando-a às “novidades” que vem sendo apresentadas ao
sistema jurídico brasileiro.
Afinal, como confirmado por Michele Taruffo (2014, p. 01), “[...] a distinção
tradicional segundo a qual os primeiros [ordenamento de ‘Common Law’] seriam fundados
no precedente, enquanto os segundos [ordenamento de ‘Civil Law’] seriam fundados na lei
escrita não tem mais valor algum descritivo [...]”.
O Brasil, como já antecipado, tem sofrido diversas transformações
jurídico-normativas que vem alterando sua lógica de produção de normas. A abertura semântica das
normas jurídicas e a consequente idealização de mecanismos de uniformização de
jurisprudência abriram espaço para o alargamento da importância do Judiciário enquanto
órgão responsável pela “criação do Direito”.
Para além disso, a decisão judicial em si mesma passou a ocupar a condição de fonte
normativa primária, no Direito brasileiro. E, se isso é verdade, exsurge o debate acerca da
melhor forma de aperfeiçoar a sistemática de significação das normas pelos Tribunais.
De uma maneira ou de outra, a despeito do entendimento que se possa ter acerca do
que seria “precedente” no Direito brasileiro (discussão que será aprofundada mais adiante), a
discussão perpassa pela necessidade de articular um modelo de precedentes, donde se verifica
a necessidade de infirmar a concepção original existente, no Brasil, em torno da segurança
jurídica.
Isso, contudo, não é tarefa fácil. Afinal, na prática, ainda há muita dificuldade em
assumir todos os estreitamentos jurídicos e, em via reflexa, absorver uma cultura de
precedentes.
Marcelo Veiga Franco (2015, p. 525), elaborando assertivas a respeito do sistema
jurídico brasileiro, ensina que aqui “[...] não há uma compreensão adequada dos institutos e
conceitos que formam a common law. A histórica e constante influência do sistema do civil
law ainda se mostra arraigada em boa parte dos juízes e advogados. [...]”.
De fato, embora o ranço histórico tenda a perder força com o tempo (em especial
com a tendência dos órgãos julgadores em se utilizarem cada vez mais do método indutivo de
significação da norma em detrimento do método dedutivo), não se pode negar que ele ainda
vem comprometendo a operacionalização de uma nova atividade judicante, ajustada a tais
moldes.
Ainda há uma tendência muito forte em compreender o Direito a partir da mecânica
de subsunção da lei, no Brasil. E isso, confrontado à normatividade oriunda da vinculação
decisória, causa sérias dificuldades.
Sobre tal distorção, Dierle Nunes e André Frederico Horta (2015, p. 305) expõem a
crítica:
[...] Ao contrário do que se passa no common law, a utilização, no Brasil, dos precedentes e, em maior medida, do direito jurisprudencial na aplicação do direito é fruto de um discurso de matiz neoliberal, que privilegiava a sumarização da cognição, a padronização decisória superficial e uma justiça de números (eficiência tão somente quantitativa), configurando um quadro de aplicação equivocada (fora do paradigma constitucional) desse mesmo direito jurisprudencial que dá origem ao que se pode chamar de
hiperintegração do direito. [...]
Apontando especificamente alguns “indícios de desvirtuamento da utilização de
precedentes”, Lorenda Miranda Santos Barreiros (2015, p. 199) denuncia, em linhas gerais, o
que chama de “ementocracia”
18e “excessiva abstrativização da súmula vinculante”,
fenômenos cuja causa remontam à: “[...] configuração teórico-dedutiva e racional do
pensamento do jurista brasileiro (e, de uma forma geral, dos juristas de países associados à
tradição da civil law) [...]”.
Em outras palavras, a contumácia em manter-se atrelado à percepções já
ultrapassadas, compromete a operabilidade da criação de um modelo precedental, a atrair,
como já antecipado, a assunção de reajustes como forma de contornar referido problema.
Se o Brasil tem absorvido o modelo de significação de normas pela via do Poder
Judiciário (o que, por sua vez, tem corroborado para com a implementação de um sistema de
vinculação de precedentes), é preciso repensar a segurança jurídica enquanto valor inserido
especialmente na preocupação dos Tribunais, concebendo-se um sistema jurídico onde o juiz
apareça como um dos grandes responsáveis pela tarefa de regulamentar condutas, seja para
estabilizar ou mesmo para viabilizar mudança no mundo jurídico.
Portanto, convoca-se, em um primeiro sentido, a tarefa de pensar a segurança jurídica
pelo viés da aplicabilidade do Direito pelo órgão julgador. E, ultrapassado esse sentido,
convoca-se a concretização específica de tal valor, concebendo-o como norma-princípio, que
apresenta dimensões distintas.
Esses novos lineamentos é que serão desenvolvidos abaixo.
18
Expressão utilizada pela autora para fazer alusão à prática de aplicar um precedente a partir da mera referência a sua ementa, sem a realização de uma profunda atividade argumentativa, com apontamento das razões de decidir aplicáveis ao caso concreto em sua relação com o precedente usado como paradigma.