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3. A TEORIA DA ANÁLISE DO DISCURSO

3.1 A teoria da Análise do Discurso: uma disciplina de entremeio

3.1.2 Como a Análise do Discurso e a Psicanálise entendem a enunciação

No subcapítulo anterior, trouxemos algumas noções fundamentais em Análise do Discurso, como a noção de ideologia, de sentido e de sujeito. Além disso, abordamos o fato de que Pêcheux se inscreveu num campo de recusa ao idealismo, o que significa que ele se contrapunha às ideias de Benveniste, no que diz respeito a uma noção de enunciação centrada na subjetividade de um enunciado que dominaria completamente o seu dizer.

Sabendo disso, optamos por abrir um subcapítulo que se volta para o conceito de enunciação. Isso porque, em nosso trabalho, observamos sequências nas quais o sujeito, julgando-se na origem do dizer, equivoca-se e troca de palavras. Para compreender o equívoco, o lapso de linguagem, buscamos entender não só o que é a enunciação para a Análise do Discurso, mas também qual o entendimento da psicanálise sobre esse conceito. Dito isso, iniciamos nossa reflexão a partir de uma breve explicação do trajeto teórico que Pêcheux fez para abordar essa questão.

Zoppi-Fontana6 (2016), no vídeo da Enciclopédia Virtual da Análise do

Discurso, disponível no canal do Laboratório Arquivos do Sujeito, explica como a

enunciação aparece ao longo do trajeto teórico de Pêcheux. Inicialmente, segundo a analista do discurso, essa noção comparece em Análise Automática do Discurso (1969)

6 Zoppi Fontana (2016), em vídeo da Enciclopédia virtual da Análise do Discurso e áreas afins, sobre o

verbete “Enunciação”, disponível no canal do LAS (Laboratório Arquivos do Sujeito) no site www.ufftube.br.

representada pela noção de formações imaginárias – que são entendidas como condições de produção.

Como explica Zoppi (2016), Pêcheux (1969) se contrapõe ao esquema de comunicação de Jakobson e, em vez de considerar o emissor e o receptor na transmissão da mensagem, considera o efeito de sentido entre o lugar de A e o lugar de B. De acordo com Pêcheux (2014 [1969]), o termo discurso “implica que não se trata necessariamente de uma transmissão de informação entre A e B mas, de modo mais geral, de um ‘efeito de sentidos’ entre os pontos A e B” (PÊCHEUX, 2014 [1969], p. 81). Ao propor isso, Pêcheux (1969) produz um deslocamento nas noções de emissor e de receptor para a noção de lugares, os quais “estão representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo” (PÊCHEUX, 2014 [1969], p. 82). De acordo com o autor, o quadro das formações imaginárias pode ser representado do seguinte modo (o quadro abaixo se trata de uma reprodução do quadro de Pêcheux (1969)):

Expressão que designa as

formações imaginárias

Significação da expressão Questão implícita cuja

“resposta” subentende a

formação imaginária

correspondente

IA (A) Imagem do lugar de A para o

sujeito colocado em A

“Quem sou eu para lhe falar assim?”

IA (B) Imagem do lugar de B para o

sujeito colocado em A

“Quem é ele para que eu lhe fale assim?”

IB (B) Imagem do lugar de B para o

sujeito colocado em B

“Quem sou eu para que ele me fale assim?”

IB (A) Imagem do lugar de A para o

sujeito colocado em B

“Quem é ele para que me fale assim?”

(Quadro das Formações Discursivas 1)

Sendo assim, o que importa nos processos discursivos são as formações imaginárias, as quais são as responsáveis por designar “o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (PÊCHEUX, 2014 [1969], p. 82).

O jogo imaginário inclui também, como acrescenta Orlandi (2001), a imagem do objeto do discurso (do que estou lhe falando, do que ele me fala?); “a imagem que o locutor faz da imagem que seu interlocutor faz dele; a imagem que o interlocutor faz da imagem que ele faz do objeto do discurso e assim por diante” (ORLANDI, 2001, p. 40).

Logo, o que entra em jogo na significação, como esclarece Zoppi (2017), são os lugares imaginários que são representados como posições. Nessa perspectiva, o sujeito da enunciação é aquele que, objetivando significar a sua relação com o outro, questiona- se: “Quem sou eu para lhe falar assim?” e “Quem é ele para que eu lhe fale assim?”. Mais adiante, em outro capítulo, veremos o funcionamento das formações imaginárias em nosso corpus.

Em A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas (1975), Pêcheux e Fuchs vão rever criticamente a noção de enunciação em relação às condições de produção que comparece em 69.

(...) impõem-se certos esclarecimentos em relação às formulações ambíguas que o texto de 1969 fornecia, principalmente referentes às “condições de produção”: essa ambiguidade residia no fato de que o termo “condições de produção” designava ao mesmo tempo o efeito das relações de lugar nas quais se acha inscrito o sujeito e a “situação” no sentido concreto e empírico do termo, isto é, o ambiente material e institucional, os papéis mais ou menos colocados em jogo etc. No limite, as condições de produção neste último sentido determinariam “a situação vivida pelo sujeito” no sentido de variável subjetiva (“atitudes”, “representações” etc.) inerentes a uma situação experimental (PÊCHEUX; FUCHS, 2014 [1975], p. 169, grifo nosso).

Conforme explicação de Zoppi-Fontana (2016), os autores vão entender que o conceito de situação imediata da enunciação não se confunde com o de lugares sociais representados imaginariamente nos processos discursivos. Distinguir ambos os conceitos é importante para que se evite uma leitura psicologizante do jogo das formações imaginárias. Para evitar tal objeção, fez-se necessário compreender o imaginário.

A fim de superar esse problema, Pêcheux e Fuchs (1975) propõe que compreendamos o imaginário, isto é, a ilusão empirista subjetiva que afeta o sujeito enunciador “em contraponto com o que seriam as condições reais de existência desse sujeito na sua função enunciativa” (ZOPPI-FONTANA, 2016). Nas palavras dos autores, o que faltava naquele momento era “uma teoria não subjetiva da constituição do sujeito em sua situação concreta de enunciador” (PÊCHEUX; FUCHS, 2014 [1975], p. 170).

Na visão de Pêcheux e Fuchs (1975), a enunciação não pode necessariamente sempre ter relação entre o sujeito enunciador e o enunciado no nível da língua, porque isso acarreta a ilusão segundo a qual o sujeito se encontra na fonte do sentido. Pêcheux e Fuchs (1975) se contrapõem à concepção idealista da enunciação de Benveniste

(1974), que supunha que a enunciação é a presença do “eu” na linguagem, do “eu” que toma a palavra. Nessa perspectiva, a língua funciona como mediadora entre o sujeito e o mundo, enquanto o sujeito se apropria do mundo por meio da língua e desta por intermédio do aparelho de enunciação. Trata-se, portanto, de uma teoria que reproduz a ilusão do sujeito, “através da ideia de um sujeito enunciador portador de escolha, intenções, decisões, etc.” (PÊCHEUX; FUCHS, 2014 [1975], p. 175).

Para se afastar das teorias enunciativas não só de Benveniste, mas também de Jakobson e de Bally, os autores vão dizer que a enunciação equivale “a colocar fronteiras entre o que é ‘selecionado’ e tornado preciso aos poucos (...) e o que é rejeitado” (PÊCHEUX; FUCHS, 2014 [1975], p. 175). O enunciado se constitui, então, colocando o “dito” em relação ao “não dito”, que é rejeitado. Nesse sentido, os autores consideram que há um espaço vazio no qual se configura um campo em que comparece tudo o que teria sido possível ao sujeito dizer, mas que não foi dito. Há ainda nesse campo do rejeitado, segundo os autores, “tudo a que se opõe o que o sujeito disse” (PÊCHEUX; FUCHS, 2014 [1975], p. 175). Esta zona do rejeitado, para Pêcheux e Fuchs (1975), pode vir a estar mais ou menos próxima da consciência do sujeito, mesmo porque, ao ser interpelado por um interlocutor sobre o que ele queria dizer, o sujeito enunciador pode reformular as fronteiras entre o dito e não dito e reinvestigar a zona do rejeitado. Esse efeito de ocultação parcial, em que o sujeito acredita saber o que diz e saber do que fala, é chamado por Pêcheux e Fuchs (1975) de esquecimento nº 2; enquanto o esquecimento nº 1 é da ordem da constituição da subjetividade, é “o que resulta na sensação do sujeito como origem” (ORLANDI, 2012, p. 39).

Pêcheux e Fuchs (1975) esclarecem que a zona do esquecimento nº 2, que é da ordem das práticas enunciativas, caracteriza-se por ser acessível ao sujeito. Isso porque o sujeito pode se corrigir para explicitar a si próprio o que disse e reformular o seu pensamento. Já a zona do esquecimento nº 1 é inacessível ao sujeito e, por essa razão, é que tal esquecimento é constitutivo da subjetividade na língua, como afirmam os autores.

O funcionamento das evidências ocorre pelos esquecimentos nº 2 e nº 1. O esquecimento nº 2 é o que produz a impressão de realidade do pensamento para o sujeito, uma vez que este se esquece de que aquilo que diz poderia ser dito de outra maneira. É nesse sentido, portanto, que o esquecimento nº 2 diz respeito à enunciação, entendida por oposição à concepção idealista de Benveniste.

Quanto ao esquecimento nº 1, podemos dizer que ele é “da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia” (ORLANDI, 2001, p. 35). É por conta desse esquecimento que o sujeito se supõe origem do próprio dizer, quando, na verdade, está retomando sentidos já preexistentes. Segundo Orlandi (2001), os sentidos “são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isto que significam e não pela nossa vontade” (ORLANDI, 2001, p. 35).

O esquecimento nº 1 é caracterizado pelo recalque do interdiscurso e do próprio processo discursivo e regula a relação entre o dito e o não dito no esquecimento nº 2, em que se estrutura a sequência discursiva (PÊCHEUX e FUCHS, 1975). Segundo palavras de Pêcheux e Fuchs, “isto deve ser compreendido no sentido em que, para Lacan, ‘todo discurso é ocultação do inconsciente’” (PÊCHEUX e FUCHS, 1975, p. 178).

O sujeito, portanto, é afetado pelo esquecimento nº 1 e pelo esquecimento nº 2, e se supõe origem e fonte do dizer. Em nosso corpus, o sujeito se inscreve em uma posição discursiva da qual ele enuncia em 1ª pessoa do singular (Eu não tive conhecimento; subordinado meu) para afirmar que nunca teve conhecimento de centros clandestinos de tortura durante a ditadura.

Não. Nunca teve. Nunca teve centro clandestino sob... sob tortura. Nunca teve. E se alguém disser que teve... Eu não tive

conhecimento, e nenhum subordinado meu, que eu saiba, disso. (Resposta de Ustra ao ter sido perguntado sobre centros clandestinos sob tortura durante a ditadura militar brasileira.) Como podemos observar, com base nesse recorte retirado do depoimento do coronel Ustra, o sujeito se coloca como centro e origem da enunciação, quando, na verdade, ele fala a partir de uma posição entre outras – de acordo com a perspectiva da Análise do Discurso.

A partir da leitura dos recortes que trazemos neste trabalho, observamos que os sujeitos analisados parecem bastante centrados e cheios de certezas. Orlandi (2012) pontua que “quanto mais centrado o sujeito, mais cegamente ele está preso a sua ilusão de autonomia ideologicamente constituída” (ORLANDI, 2012, p. 104).

Retomando a oposição entre os dois esquecimentos, Pêcheux e Fuchs (1975) pontuam o seguinte:

Esta oposição entre os dois tipos de esquecimento tem relação com a oposição já mencionada entre a situação empírica concreta na qual se encontra o sujeito, marcada pelo caráter da identificação imaginária onde o

outro é um outro eu (“outro” com o minúsculo), e o processo de interpelação- assujeitamento do sujeito, que se refere ao que J. Lacan designa metaforicamente pelo “Outro” com O maiúsculo (...) (PÊCHEUX; FUCHS, 1975 [2014], p. 177).

Nesse sentido, o esquecimento nº 2 tem relação com a imagem que o sujeito constrói do outro que participa da situação empírica de enunciação, enquanto o esquecimento nº 1 se refere ao processo de interpelação-assujeitamento, no qual antes que o sujeito possa dizer “Eu falo”, fala-se ao sujeito e fala-se do sujeito.

Mariani e Magalhães (2013) afirmam que o conhecimento da psicanálise, tal como foi compreendida por Lacan, contribui para a formação de analistas do discurso que se filiam ao campo teórico proposto por Pêcheux nos anos 1960. Isso porque a Análise do Discurso de linha francesa mobiliza e reterritorializa conceitos que pressupõem a psicanálise, tais como: o sujeito dividido, a noção de língua como sujeita a falhas, a noção de discurso como efeito de sentidos e a noção de real como o impossível de tudo dizer (MARIANI e MAGALHÃES, 2013).

Entre os anos de 1940 e de 1960, diversos intelectuais franceses propuseram releituras das obras de Marx, Saussure e Freud. Entre eles, destaca-se, na releitura da obra de Freud, Lacan. Este observou, a partir dos seguintes escritos freudianos, que o fundador da psicanálise já compreendia o estudo da linguagem humana como objeto de análise: O chiste e sua relação com o inconsciente (1905), A interpretação dos sonhos (1900) e Psicopatologia da vida cotidiana (1901). Para Freud, a psicanálise poderia explicar e interpretar lapsos de linguagem7.

Lacan, ao ler a obra de Freud, nota que o autor faz estudos no campo da linguagem para compreender as manifestações do inconsciente. Apoiado na teoria

7 Em Psicopatologia da vida cotidiana (1901), por exemplo, Freud aborda o esquecimento dos nomes

próprios. Freud (1901) relata que, certa vez, em uma viagem de trem, na qual estava acompanhado de outro homem, ele não conseguia se lembrar do nome do artista que pintou os afrescos das “Quatro Últimas Coisas”, na catedral de Orvieto: Signorelli. Em contrapartida, Freud (1901) se lembrava dos nomes de outros dois pintores, mesmo que os rejeitasse como falsos: Botticelli e Boltraffio. Ao analisar esse esquecimento, Freud (1901) percebe que o inconsciente se manifesta na própria linguagem, por meio de significantes que se relacionam por homofonia e que rompem com a ideia de linearidade do significante – num mesmo significante, “Boltraffio”, observa-se a simultaneidade de sentidos. O objeto reprimido encontra maneiras de se fazer presente por meio da linguagem. Em outras palavras, a lembrança de “Boltraffio” em vez de “Signorelli” resulta num significante que gera um sentido outro, que porta um saber do inconsciente.

freudiana, Lacan introduz a linguística para formalizar as manifestações do inconsciente.

O psicanalista reterritorializa o termo “significante”, cunhado por Saussure. Este postulou que o signo linguístico é formado pela união de um significado (conceito) e de um significante (imagem acústica). Lacan, ao retomar essas noções, subverte o pensamento saussuriano e introduz a noção na qual o significante é simbolizado por um

S e o significado por um s. Na concepção de Lacan, entretanto, não há significantes

presos a significados e estes se encontram abaixo da barra. Esta, para Lacan, remete para a primazia do significante.

O significante, por sua vez, pode ser entendido como um traço que representa o sujeito. Assim como em Saussure, o significante não tem significado, “é articulado, é pura diferença, tem valor negativo e estrutura-se conforme leis de uma ordem fechada” (MARIANI e MAGALHÃES, 2013, p. 111). Já o significado, que se encontra abaixo da barra, está recalcado: “O significado (...) se encontra barrado, recalcado. Desses significados, recalcados quando de sua inscrição no campo da fala e da linguagem, o sujeito nada sabe” (MARIANI e MAGALHÃES, 2013, p. 111).

É importante ressaltar que os significantes são fundamentais para que haja sujeito do inconsciente, que por sua vez, não é o mesmo que o eu. Este é aquele que toma a palavra, no entanto, em sua fala, podem se manifestar quebras de sentidos, por meio de lapsos de linguagem, que revelam verdades desconcertantes. O sujeito do inconsciente remete, pois, a uma verdade que se manifesta por meio de atos falhos. É nesse sentido que Freud afirma que todo ato falho é um ato bem-sucedido, segundo Mariani e Magalhães (2013). Nas palavras das autoras, “O sujeito do inconsciente é esse Outro estranho familiar que nos habita e que nos leva a tropeçar na língua” (MARIANI e MAGALHÃES, 2013, p. 114).

Mariani (2012), em seu artigo Larissas: ou quando a falta de sentido faz sentido

outro, narra uma situação em que um rapaz fala de uma nova namorada e de uma

melhor amiga muito próxima a ele, chamada Larissa. Em certo momento da conversa, ao falar de seus namoros anteriores, o rapaz se equivoca e diz: “Todas as minhas Larissas...”, quando, na verdade, queria dizer “Todas as minhas namoradas...”. Mariani (2012) traz esse exemplo para mostrar como é comum que, em situações diversas, sujeitos possam trocar palavras e fonemas, esquecer determinadas expressões ou fazer chistes. Esse sentido outro que comparece por meio de atos falhos, lapsos ou equívocos tem relação com o desejo inconsciente.

A partir desse exemplo, a autora explica que, diferente do que pensaria um linguista, psicanalistas freudianos e lacanianos julgam que lapsos de linguagem não se manifestam apenas como um erro a ser corrigido. Isso porque, como afirma Mariani:

(...) quem fala não controla o que diz, e a linguagem, se é suporte para a manifestação desse outro dizer que se manifesta à revelia, isso aponta para o fato de que o tal sistema da língua não é tão autônomo e que os signos não são tão solidários entre si quanto se supõe (MARIANI, 2012, p. 58).

Nessa perspectiva, os sujeitos não têm controle sobre o que dizem, o que pode ser atestado pelos lapsos de linguagem. Há uma abertura na língua que possibilita o surgimento de outro dizer.

Dando continuidade a esse raciocínio, Mariani (2012) ressalta que os lapsos, os chistes e os sonhos expressam algo que foi recalcado, o que, para a psicanálise, aponta para uma verdade do inconsciente. Sendo assim, aquilo que para um linguista poderia ser considerado um erro, como no caso em que o rapaz troca “namoradas” por “Larissas”, para a psicanálise, seria um indício de uma verdade inconsciente. O lapso aponta, nas palavras da autora, para “uma verdade do inconsciente que se mostra e desaparece no mesmo instante em que é articulada no campo do Outro” (MARIANI, 2012, p. 58).

Esse exemplo das “Larissas”, entre outros, aponta para o fato de que, para além do sujeito da gramática, como diz Mariani (2012), “marca-se uma divisão com a entrada em cena de um outro sujeito, pontual e evanescente, que comparece com sua própria enunciação” (MARIANI, 2012, p. 58). Aqui, é preciso compreender que, do ponto de vista da psicanálise, enunciado e enunciação não se confundem. Aquele é articulado pelo “eu” gramatical, enquanto esta se refere ao sujeito do inconsciente, como esclarecem Mariani e Magalhães (2013):

Lacan chamará de enunciação a esse dizer outro, que se sobrepõe, desejante, ao enunciado. A enunciação, no modo como a psicanálise a define, marca um movimento de pulsação, uma janela que se abre e fecha rapidamente, dando a ouvir o não sabido do inconsciente (MARIANI e MAGALHÃES, 2013, p. 116).

O “eu” gramatical é aquele que toma a palavra, no entanto, em sua fala, podem se manifestar sentidos, por meio de lapsos de linguagem, que portam verdades

desconcertantes8. O sujeito do inconsciente, que não se confunde com esse “eu” gramatical, remete, pois, a uma verdade que se manifesta por meio de atos falhos.

Em nosso corpus de análise, comparecem dois tropeços de linguagem, um cometido pelo coronel Ustra e outro pelo delegado Calandra:

Recorte do depoimento do coronel Ustra:

Eu nunca, nunca, nunca, é... Como é que se diz? Nunca ocultei cadáver, eu nunca cometi assassinato, eu atingi... eu agi sempre dentro da lei e da ordem, eu nunca, nunca fui um assassino, graças a Deus, nunca fui.

Recorte do depoimento do delegado Calandra:

O meu enga... engajamento foi em decorrência da minha função e da minha atividade de assessoria jurídica que me cabia. O resto não... não era minha…(Resposta dada a Dias

quando este lhe pergunta sobre o engajamento na luta contra a subversão e o terrorismo)

No recorte do coronel Ustra, como mencionamos anteriormente, constatamos que, antes de conseguir dizer “atingi”, o militar faz uma troca de palavras e diz “agi”. Isso porque quaisquer sujeitos da enunciação jogam sobre as regras da língua, podendo produzir um duplo-sentido, um dizer em meias-palavras. Ou seja, embora o sujeito se suponha dono do dizer, há algo que escapa e que se refere a uma verdade do sujeito do inconsciente, como já dissemos.

Já no recorte do delegado Calandra, notamos que, ao querer dizer a palavra “engajamento”, o sujeito faz uma pausa no “enga”, como se estivesse engasgado. De acordo com Mariani (2012), o sujeito do inconsciente não se manifesta apenas por meio dos lapsos de linguagem, mas também por meio de sintomas que apontam para algo desconcertante, inesperado e imprevisto.

Sendo assim, é possível compreender porque, para Lacan, a linguagem é fundamental para a existência do inconsciente. Este se institui no momento em que o bebê se engaja na linguagem e, com isso, é capaz de se subjetivar. Dessa forma, o sujeito do inconsciente advém representado entre significantes. Conforme um importante aforisma de Lacan, é “o significante que representa o sujeito para outro significante”. Com isso, o psicanalista pretende justamente esvaziar qualquer

8 O valor dos lapsos de linguagem cometidos em análise é fundamental, pois entra em jogo a

conceituação de sujeito que o suponha consistente, alinhado a alguma significação a priori (MARIANI e MAGALHÃES, 2013).

Desse modo, constata-se que, o que interessa à psicanalise, é “a verdade que fala no lapso, no chiste, no tropeço da linguagem”. (MARIANI e MAGALHÃES, 2013, p. 117) Trata-se, portanto, de uma verdade que advém pela manifestação do sujeito do inconsciente, que por sua vez, vale lembrar, é representado de um significante para outro. Em nosso trabalho, foi importante pontuar tais conceitos de psicanálise para compreendermos os tropeços de linguagem que comparecem em nosso corpus.