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4. AS FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS E O FUNCIONAMENTO DISCURSIVO

5.2 Delegado Calandra: um caso de denegação

Anteriormente, analisamos sequências que fazem parte do depoimento do coronel Ustra, a partir do funcionamento parafrástico que comparece no recorte apresentado. Agora, buscamos analisar as sequências que fazem parte do depoimento do delegado Calandra, buscando depreender o que se assemelha ou não ao recorte anterior. Ao confrontarmos um recorte com outro, é possível depreendermos regularidades? Para começar, gostaríamos de destacar que, diferente do coronel Ustra que visa se filiar a argumentos que justifiquem os seus atos, o delegado Calandra se restringe a negar quaisquer atividades não burocráticas, como, aliás, já vimos no capítulo sobre o funcionamento do silêncio, em que ele se posiciona como mero assessor jurídico.

Em vários momentos, os integrantes da Comissão perguntam ao delegado sobre as práticas de tortura desempenhas por ele. Para exemplificar, podemos citar uma pergunta de José Carlos Dias e uma de Pedro Dallari, respectivamente: a) “(...) durante esses oito anos que o senhor trabalhou no DOI-CODI, o senhor não presenciou nunca tortura?” e b) “O deputado Nilmar Miranda, hã... afirmou, com testemunho gravado, que foi exibido para esta Comissão, que foi torturado em três oportunidades pelo senhor e por sua equipe. Por que é que o senhor o torturou?”.

A Comissão o interrogou também sobre o pseudônimo de “Capitão Ubirajara”, uma vez que diversas vítimas apontaram o delegado como sendo o torturador capitão Ubirajara (“O senhor era conhecido como capitão Ubirajara?”, pergunta de José Carlos Dias). Sabendo disso, selecionamos algumas sequências que correspondem às respostas dele:

SD26 – Não participei de tortura nenhuma. Muito menos

quando... quanto ao deputado, não... não sei, nem conheço o deputado. Só de ver na televisão. (Dallari pergunta ao delegado

por que ele torturou o deputado Nilmar Miranda, mas Calandra nega que o tenha torturado)

SD27 – Sem... Sempre usei o meu próprio nome... trabalhando.

E nunca interroguei ninguém, muito menos violei direitos

humanos. Sempre fui ao contrário disso.

SD28 - Minha função sempre foi civil. Nunca participei de tortura nenhuma.

SD29 - Sim. O que eu quero dizer é que eu nunca usei codinome nenhum e que eu nunca participei de qualquer tortura. Não... Não faz parte da minha rotina.

SD30 - Não me lembro desse nome. Não me lembro de ter

conhecido. Não, nunca ouvi falar no nome, então, eu não

posso ter participado de tortura se não conheço. (Resposta do delegado ao ter sido interrogado sobre a denúncia de Darci Toshiko Myiaki a respeito das torturas que sofrera)

SD31 - Eu atribuo isso a engano pessoal de quem está fazendo

essas acusações, porque, em realidade, eu nunca participei de

nenhuma atividade de tortura e muito menos apoiaria isso. (Comentário final do delegado, a respeito das acusações que lhe foram feitas)

Nas sequências acima, bem como nas sequências do depoimento do coronel Ustra, podemos observar novamente a recorrência do advérbio de negação “nunca”. Porém, enquanto o coronel Ustra afirma que “Nunca teve centro clandestino sob tortura” (SD22), ou seja, ele nega a existência de centros de tortura; o delegado Calandra nega, por outro lado, que tenha participado de atividades de tortura. Nesse ponto, encontramos uma produção de sentidos diferente. Quando o delegado afirma nunca ter participado de atividade de tortura, ele não se encontra numa posição discursiva de negação da prática de tortura, mas sim de negação da participação. Do mesmo modo, o sujeito nega ter interrogado alguém, mas não nega a existência de interrogatórios em SD27. Para corroborar sua não participação em interrogatórios ou em atividades de tortura, o sujeito salienta que nunca violou direitos humanos e que nunca apoiaria tortura. Tendo em vista tais observações, acreditamos que a negação nessas sequências funciona de modo distinto.

Nos recortes apresentados “a negação incide sobre elementos de saber pertencentes a formação discursiva que afeta seus sujeitos” (INDURSKY, 1990, p. 120). Quando isso acontece, temos o que Indursky denomina de denegação:

Assim, proponho que se considere denegação discursiva aquela negação que incide sobre um elemento do saber próprio à FD que afeta o sujeito do discurso. Ou seja, a denegação discursiva relaciona-se com a interioridade da FD e com o modo como o sujeito com ela se relaciona. Assim, seu efeito não é polêmico. Ao incidir sobre um elemento de saber que pode ser dito pelo sujeito do discurso mas que, mesmo assim, por ele é negado, tal elemento permanece recalcado na FD, manifestando-se em seu discurso apenas através da modalidade negativa (INDURSKY, 1990, p. 120).

A negação externa, como vimos anteriormente, estabelece uma relação de antagonismo entre um discurso e outro. No caso da denegação, não há confronto entre um ponto de vista e outro, porque ela se relaciona com a interioridade da formação discursiva e com o modo como o sujeito com ela se relaciona, como diz a autora. Quando há denegação, o sujeito pensa que está negando um saber não autorizado por sua formação discursiva, mas, na verdade, está negando um saber que se refere à formação discursiva com a qual ele se identifica.

Queremos dizer, com isso, que, nesse domínio de saber, a tortura é legítima, uma vez que o que está sendo negado não é a prática da tortura, mas a participação do sujeito. Há um momento em que a Comissão pergunta ao delegado se, atualmente, ele acredita que houve tortura no DOI-CODI. Ele responde o seguinte: “Não acredito,

porque eu não... eu não vi.” Todavia, quando ele repete reiteradamente que nunca participou de práticas de tortura, esta comparece como elemento afirmativo, tendo em vista que, como já destacamos, a negação incide sobre o verbo “participar”.

Indursky (1990), ao falar sobre a denegação, afirma que ela “incide sobre fatos que podem ser ditos, mas que, por razões conjunturais, são denegados” (INDURSKY, 1990, p. 120). O sujeito não se reconhece no lugar de torturador, mas, por meio da denegação, faz emergir o que está recalcado na formação discursiva. Portanto, para que a negação produza um efeito de denegação, deve ocorrer “a ocultação de um comportamento admitido pela formação discursiva a que o enunciado está vinculado” (INDURSKY, 1990, p. 121). Nos recortes apresentados, o saber que o sujeito não reconhece é próprio de sua formação discursiva.

Salientamos que o conceito de denegação discursiva tem relação com o conceito de negação que foi trabalhado por Freud (1925) no campo da psicanálise. No entendimento do autor, a negação ocorre quando o sujeito não reconhece um comportamento próprio e o deixa recalcado no inconsciente.

Freud (1925) afirma que “o conteúdo reprimido de uma ideia ou imagem pode abrir caminho até a consciência, sob a condição de ser negado” (FREUD, 2011 [1925], p. 250). Com isso ele quer dizer que a negação é um meio possível de se tomar conhecimento daquilo que foi reprimido. Nesse caso, de acordo com um exemplo dado por Freud (1925), se um paciente sonha com uma pessoa e afirma que essa pessoa não é a mãe, é porque se trata da mãe.

Para Freud (1925), negar alguma coisa é, no fundo, revelar algo que o sujeito gostaria de reprimir. Nesse sentido, a negação, como dissemos, é uma forma de se tomar conhecimento do que foi reprimido, mas não de aceitação do reprimido, como diz o autor. Este ressalta que a negação ajuda a anular uma consequência do processo de repressão, porque, do processo de negação, resulta “uma espécie de aceitação intelectual do reprimido” (FREUD, 2011 [1925], p. 251), embora se mantenha o essencial da repressão. Segundo Freud (1925), no curso do trabalho psicanalítico, “conseguimos vencer também a negação e alcançar a plena aceitação intelectual do reprimido — mas o processo de repressão em si não é cancelado por isso” (FREUD, 2011 [1925], p. 251).

Freud (1925) afirma que negar algo é revelar o que se queria reprimir porque, para ele, a tarefa da função intelectual do juízo é confirmar ou negar os conteúdos do pensamento. De acordo com o autor, “O juízo negativo é o substituto intelectual da

repressão” (FREUD, 2011 [1925], p. 251). O símbolo da negação é o que permite que o sujeito se livre das limitações da repressão.

É preciso compreender, portanto, que, para Freud (1925), a negação pode ser um meio de dissimular e disfarçar intenções, de modo que, quando algo é negado, é preciso escutar o que se afirma. Segundo Fedatto (2015), Freud nos convida a pensar que o ‘não’ está sempre acompanhado de um ‘sim’. A negação e a afirmação, portanto, funcionam sempre de maneira imbricada. Todavia, Fedatto (2015) ressalta que isso não significa que algo é necessariamente afirmado antes de poder ser negado. Isso porque, muitas vezes, é pela própria negação que algo pode existir: “Não há afirmação que preceda essa existência, já que é pelo não que esse algo aparece” (FEDATTO, 2015, p. 104). Como vimos, nos recortes do depoimento do delegado Calandra, é pela negação que a tortura aparece.