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Como o diabo gosta; canção

No documento raulfuriattimoreira (páginas 90-94)

2.2 Eixo tempo-espacial

2.2.4 Como o diabo gosta; canção

No Capítulo I, um ponto abordado por nós foi o da desobediência proposta pela produção de Belchior no disco “Alucinação”. O tom deseducador confrontaria com o tom pedagogizante imposto pela política do Estado, principalmente, no que se referia aos projetos culturais que, além de visarem a uma manutenção do status quo, impedindo posturas que fossem antagônicas à ideologia do regime, objetivavam um ideal de brasilidade que, por conseguinte, passaria por um processo de homogeneização. Obviamente, homogeneizar um povo não depende da vontade de seu governo, a não ser que os métodos sejam próximos à

83 política do 3º Reich. Contudo, a sensação de homogeneização paira condensada na nuvem impositiva de uma política estatal que tende a eliminar – ou tentar eliminar – os discursos diferentes e contrários ao projeto. Da mesma forma, não afirmamos uma vontade consciente de homogeneizar a nação, porém, tendo em vista o que até aqui foi discutido, é aparente o uso da máquina do Estado pelos militares para projetar um ideal cultural, no intuito de criar uma estabilidade econômica e, consequentemente, social.

Belchior, em “Alucinação”, nos apresenta estratégias discursivas e produtivas de colher as coisas do mundo à sua volta, incluindo a si mesmo, entretanto, sem uma postura intimista, selecionando o cotidiano e as interferências sofridas pelos grupos marginalizados e pela arte e cultura brasileira, de modo a construir um produto, não genuíno, mas que permita redirecionar o pensamento a respeito do “ser brasileiro”.

Não nos é, portanto, acidental o modo pelo qual o disco apresenta-se organizado. Consideramos que o eu lírico que perpassa as canções faz-se de maneira múltipla, porém, conservando aspectos singulares de sua formação. Nesse momento, chegamos à ideia de nordestinidade, estado donde parte esse eu lírico para ser povoado por diversos discursos, deixando-se por ser feito, contudo, interferindo de maneira simbiótica e cíclica em sua realidade.

Há uma narrativa e um percurso migratório bastante evidentes na produção desse disco. Há trocas constantes entre uma canção e outra, que vão dando conta de trazer para frente o discurso de seu produtor sem seu posicionamento direto, e sim com a polivalência oferecida pela atuação. As discussões sobre cultura brasileira, cultura sul-latino-americana, cultura estadunidense e cultura ocidental estão entranhadas às composições como matéria, não como tópicos ou ferramentas. A ferramenta é o diálogo provocado pelo banquete semântico e referencial oferecido pelo artista. A censura e a marginalização de grupos deslocados, os problemas sociais, políticos e econômicos que compõem o período de lançamento do disco são carregados pela ironia da atuação ou por uma aparente ingenuidade do eu lírico das canções, que, em alguns momentos, julga não “entender bem” certas questões com que se depara.

Sendo assim, a ligação entre as canções dá-se em um plano abrangente, que permite deslocá-las e realocá-las de pontos distintos, observando sui generis a proposta instaurada pela obra. Ocorre, porém, uma ligação arbitrária, que pretendemos postular, entre a canção “Sujeito de sorte” e a canção “Como o diabo gosta”. Alvitramos, a partir daquela, a presença do blues e do Deus judaico-cristão. Em seguida, no disco, ouvimos a canção que se refere – dir-nos-ia Riobaldo – ao “que se não ri”. Contrastar Deus e o Diabo, na época da “terra do

84 sol” de Glauber Rocha, aparentemente, pode parecer um movimento irresponsável ou descompromissado, mas, levando-se em conta nossas considerações a respeito do uso de diversas produções artísticas da época feito por Belchior, torna-se um movimento de entrada em uma proposta cada vez menos seca e menos retilínea da produção do artista.

Não quero regras nem nada Tudo tá como o diabo gosta, tá

Já tenho este peso que me fere as costas E não vou eu mesmo atar minha mão O que transforma o velho no novo Bendito fruto do povo será

E a única forma que pode ser normal É nenhuma regra ter

É nunca fazer nada que o Mestre mandar Sempre desobedecer

Nunca reverenciar. (BELCHIOR, 1976, f. 5)

Comecemos pelo título. A sentença per si é demasiado povoada de possibilidades; traduzindo, “a coisa tá feia”. Outrora, Belchior utiliza a expressão, difundida amplamente na oralidade, “chorar pra cachorro”, ou seja, chorar muito, em abundância. Agora, surge-nos o “como o diabo gosta”, a que poderíamos traduzir por “a situação está ruim”. Ora, mas Deus não nos acompanhava, não andava ao nosso lado? O que acontece no curto espaço de tempo entre as canções? Nos poucos segundos de distância entre uma e outra? A lógica do pensamento é rapidamente invertida. Cremos, ao invés de perguntar “por quê?” ou “com que objetivo?”, ser mais plausível perguntar “o que essa inversão provoca?”. Grumbrecht (2010), em alguma medida, nos orienta a olhar para a manifestação do produto, não para o que ele possivelmente traz escondido atrás da superfície, confabulando inúmeros sentidos que tendem apenas a nos afastar muito do choque primário entre a coisa e o indivíduo, mas sim para os efeitos provocados, nesse caso, ao ouvirmos e presenciarmos tal inversão. Nossas perguntas feitas anteriormente, por elas mesmas, já são esses efeitos.

Para uma cultura de presença, o conhecimento é legítimo se for conhecimento tipicamente revelado. É conhecimento revelado pelo (s) deus (es) ou por outras variedades daquilo que se poderá descrever como “eventos de autorrevelação do mundo”. Como já afirmei, o impulso para esses eventos de autorrevelação nunca vem do sujeito. Se acreditarmos na revelação e no desvelamento, eles simplesmente acontecem e, uma vez acontecidos, nunca podem ser desfeitos pelos seus efeitos. O “conhecimento” resultante da revelação e do desvelamento, porém, não ocorre nem

85 necessária nem exclusivamente de maneira que, numa cultura predominantemente fundada no sentido, consideramos o único modo ontológico de ocorrência de conhecimento – ou seja, o conhecimento não é apenas conceitual. Pensar de acordo com o conceito heideggeriano de Ser deve nos dar coragem para imaginar que o “conhecimento” revelado ou desvelado pode ser a substância que aparece, que se apresenta à nossa frente (mesmo com seu sentido inerente), sem requerer a interpretação como transformação em sentido. (GUMBRECHT, 2010, p. 107-108)

O que a inversão de apreensão causada pelas canções força-nos a pensar? Não como resposta, mas como digressão plausível e ativa em relação à pergunta lançada, parece-nos que a inversão tem por consequência o conflito, tanto o que se apresenta contido no choque entre Deus e o Diabo quanto no que diz respeito ao conflito cognitivo – mesmo que inconsciente – provocado no indivíduo que, tal como nós, percebe essa inversão instantânea de polos.

Não obstante, a inversão não está apenas no plano das divindades, como também na superfície dos estilos de que Belchior lança mão. Antes, um blues. Agora, um flamenco. A escolha, naturalmente, nos faz lembrar a preocupação sul-latino-americana do discurso de seu eu lírico. O arranjo da canção faz-se com os recursos do flamenco, provocando, ao contrário do estado onírico e relaxante da canção anterior, um estado de euforia decadente e tristonha. O flamenco do Diabo é, ao mesmo tempo, excitante e débil. São as sensações de perda e de risco. De ter feito, mesmo que carregando consequências do feito. Sem associar diretamente os deuses, e sim, os efeitos provocados pela canção, são o Apolo e o Dionísio de Nietzsche criando um conflito não só cultural e político, mas, da mesma maneira, existencial. A união das duas canções, curtas – não menos exuberantes – carrega-nos, em meio às outras canções do disco, para um ápice contrastante da narrativa do eu belchioriano.

A sentença inicial nega as regras. Nega o Deus que impõe uma doxa. O Deus, que na Ópera de Casmurro, escreveu a existência, enquanto o Diabo ia lhe dando o contorno. São duas canções; uma questão. Assumir o passado, torná-lo útil e tentar não transformá-lo em regra nem em elemento paralisante. Está tudo como o diabo gosta, por isso, dancemos com as castanholas. Essas que batem e ecoam durante a canção, em meio à elocução já pesada da voz grave e estridente de Belchior. O peso é demasiado presente, material. Fere as costas, como fosse o camelo de Zaratustra a tentar esfacelar-se na mandíbula do leão para tornar a criança; e dançar, e girar com os vocais sombrios e rasgados que dão fundo aos tons menores do violão.

Visto que o peso é bastante presente, considerando o uso do pronome demonstrativo “este”, o eu lírico, o enunciador não se permite atar as próprias mãos. A censura, as condições degradantes de vida das classes subalternas e marginalizadas já o acorrentam demais. A

86 velhice, nesse instante, se faz, mas não deve ser combatida de frente. É preciso povoá-la; infectá-la com o novo, só possível através do povo. O povo que vive da neutralidade de um Deus que anda ao seu lado, convivendo sob as mesmas condições de vida, tais como o Diabo gosta. O elemento “novo” é associado ao povo e, para contrastar com o Diabo, associado, também, ao ideário cristão da oração à Virgem Maria; “Bendito é o fruto do vosso ventre”. Desse modo, o caráter missionário não é apenas do eu lírico, nem do discurso por ele instaurado, mas é também do povo, que tem por missão trazer o novo. Não mais os artistas engajados – ou não apenas eles –, mas as pessoas. O tom soa quase como um canto de guerra, um grito de convocação das massas.

A forma e a fôrma, que condicionam, prendem e homogeneízam só serão normais se não houver regra. Os discursos da desobediência e da deseducação perpassam em tudo a canção. É preciso desobedecer, não suicidar-se. Desobedecer não é enfrentar o Estado, a dor, o passado. Desobedecer é desaprender e criar outra maneira de enxergar. É não ser mandado, mas mandar no próprio destino, ser responsável pela mudança, que passa pelo individual, mas, sendo povo, atinge o coletivo. O “Mestre” que manda, em letras maiúsculas no encarte do disco, não deixa restar dúvidas de que se fala, não metaforicamente a respeito de um estado de coisas, mas do próprio Estado. O Estado que manda na política, na educação, na mídia. O Estado que em tudo está. O Estado que não mais deve ser reverenciado. Nunca. Sempre desobedecer.

Para corromper o Deus-Estado é preciso uma ação diabólica, mas que seja um demônio disfarçado que, ainda sim, fala em normas. A ideia da norma não é morta, mas reescrita. A estratégia é parecer não dizer o dito: “Desobedeça.”. Por fim, mais uma vez, se nos mostra um antagonismo, excedente ao do velho/novo: sempre/nunca. Jogando com polos antagônicos em “Alucinação”, o eu lírico se mantém disfarçado e age como o diabo gosta.

No documento raulfuriattimoreira (páginas 90-94)