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Sujeito de Sorte; canção

No documento raulfuriattimoreira (páginas 88-90)

2.2 Eixo tempo-espacial

2.2.3 Sujeito de Sorte; canção

A canção “Sujeito de sorte” é uma manifestação interessante do que discorremos no Capítulo I da presente dissertação a respeito do deslocamento temporal provocado pela produção de Belchior. Sua preocupação com o tema do “presente” é pungente e tangencia a ideia de contemporaneidade levantada por nós na Introdução. Pensemos, primeiramente, em um aspecto mais abrangente do uso do termo “presentemente”. Sem levar em conta o momento em que a canção se difunde, mas sim o momento em que a ouvimos, o acesso à noção de “presente” faz, forçosamente, presenciarmos o diálogo instaurado por Belchior em um tempo-espaço que não é o seu nem o nosso, e sim um instante em que esse canto permanece e larga-se aberto a uma leitura constante da questão da brasilidade, na qual buscamos pensar.

Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte Porque apesar de muito moço, me sinto são e salvo e forte E tenho comigo: „Deus é brasileiro e anda do meu lado E assim já não posso sofrer no ano passado‟

Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro

Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro. (BELCHIOR, 1976, f. 4)

Considerar Deus como sendo brasileiro, não apenas se refere a uma atitude irônica de questionar o salvo-conduto de que, sob qualquer circunstância, “nos sairemos bem” pelo fato de Deus estar ao nosso lado, como também traz à tona a necessidade de se pensar a imobilidade causada por este pensamento. Conforme apontamos, nossa brasilidade reside em um plano de segurança, já que não necessitamos nos preocupar, pois esse Deus caminha junto conosco. Somos fortes diante das adversidades, apesar de, comicamente, chorarmos como fossemos cachorros. Cinicamente, a crítica lançada de maneira atemporal é a de que, por sermos um povo “abençoado”, não necessitamos reclamar, ou ladrar.

Dissemos que tal perspectiva funde o nosso tempo com o de Belchior, haja vista o fato de o pensamento canhestro sobre um Deus ser brasileiro, ou seja, o fato de esse Deus ter uma nacionalidade, povoar-nos até os dias de hoje. Embora não possamos detectar em que momento essa visão se insere em nossa brasilidade, é-nos justo lembrarmo-nos da presença

81 massiva do cristianismo na ditadura militar brasileira. Apontamos, não só a interferência de segmentos conservadores da sociedade brasileira no projeto do regime (inclusive o papel da igreja nesse processo), como também o caráter diabólico atribuído ao comunismo no discurso do senador Pe. Calazans – e, por progressão, aos que não estivessem de acordo com a ideologia dos militares e com a “Marcha da família com Deus, pela liberdade”. Isso, talvez, nos sugira que a tentativa de instaurar no pensamento comum a naturalização desse Deus – esquecendo-se do nomadismo judaico – é, na realidade, uma estratégia do Estado militar de neutralizar a ação de pensamentos que confrontem com sua ideologia – e, aí, voltamo-nos para o disco “Alucinação” e para seu tempo-espaço.

Todavia, o sujeito de sorte não afirma a naturalidade brasileira de Deus com o intuito de compactuar com o discurso do regime. Mais uma vez, a estratégia é irônica, pois, batendo de frente, seu discurso seria diabólico e, consequentemente, silenciado. Portanto, essa colheita dos discursos comumente difundidos é uma tática de se manter presente nos ouvidos do grande público, redimensionando a presença atemporal de suas intertextualidades para a presença momentânea, o que, novamente, torna utilitárias as materialidades constituintes de sua comunicação.

Rediscute-se na canção, da mesma forma, a questão da juventude. O sujeito, apesar de moço, isto é, apesar de ingênuo, considera-se são, salvo e forte. Curiosamente, notamos a presença do conceito cristão de “salvação”, que corroborará para a associação feita por esse sujeito entre ele e o cordeiro. Não só o eu lírico dessa canção está sujeito aos próprios pensamentos, à interiorização (“E tenho comigo pensado”), como também ele encontra-se sujeitado à própria sorte e à partilha da nacionalidade com o Deus. Talvez esse dado não o torne forte, mas anestesiado. Ironicamente, Belchior atribui ao seu eu lírico características comumente associadas à massa e, em duas medidas, facilita a entrada de sua problemática, tanto no mercado quanto no crivo da censura, bem como questiona o “ser brasileiro” com uma aparente ingenuidade, cuja expressividade torna a canção um elemento sacrifical.

O passado já não mais vive ou existe, pois já se está no presente. Mesmo assim, conforme nós apontamos a importância do passado na produção de Belchior, ajudados pelo pensamento de Santos (2006), é importante perceber que esse passado reverbera, produz-se presente. Se por um lado a força do eu lírico da canção reside em sua alocação no presente, por outro, o fato de no “ano passado” ele ter sido “morto” faz com que ele deseje viver produtivamente o presente que se apresenta. Não se deve ficar preso ao passado. É necessário continuar a viver, transformando a morte no ano passado em um processo a ser desmaterializado no esquecimento, enquanto um indivíduo novo se faz no presente. Por fim, o

82 sangue vertido denota na canção o aspecto sacrifical, que, em um mesmo sentido, pressupõe a luta do dia a dia, o viver o instante, não preso ao ano passado em que se foi morto, mas fazendo-se outro, vivendo o ano presente sem pensar na morte ocorrida.

O aspecto de labuta, da vivência – e cadência – do dia a dia, será percebido no arranjo da canção. Sua introdução possui o foco na voz de Belchior, com a enunciação de toda a letra, apenas acompanhada por uma marcação seca da bateria e tons lacrimais, próximos aos de canções de ninar. Ao mesmo tempo em que se parece marcar os batimentos cardíacos, as batidas nos trazem a sensação de estarmos ouvindo uma marcha, uma caminhada. Dessa forma, cadencia-se o cotidiano com seu caminhar, do mesmo modo que nos é possível associar tal perspectiva à prática militar de marchar. O marchar-dia a dia, portanto, encontra- se nos indivíduos que, anonimamente, percorrem as grandes cidades do Sudeste, bem como se encontra nos anônimos soldados, cuja missão é marchar contra disfunções ideológicas.

Essa marcha, ou melhor, essa presença do indivíduo a paisana e do militar coloca-os em patamar de igualdade – ou no mesmo nível de análise e de leitura – e, antagonicamente, confronta o massivo comportamento civil – sua trivialidade – e a censura e a truculência do regime. Porém a quebra da introdução-estribilho-marcha dá-se com a entrada de um blues que repete a enunciação inicial. O ritmo escolhido nos mostra, mais uma vez, a colagem belchioriana, que, ainda que crítica em relação à interferência do american way, utiliza-o como balada – aproveitando a ambiguidade do termo –, além de utilizá-lo como um dispositivo de abertura na expectativa do mercado fonográfico. Populariza-se o discurso e ele se espalha enquanto objeto de consumo e dispositivo para o questionamento do presente vivido e da sorte obtida e sujeitada.

No documento raulfuriattimoreira (páginas 88-90)