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Como pensar: O conceito de espanto como nascimento do pensamento

2. COMO PENSAR?

2.3 Como pensar: O conceito de espanto como nascimento do pensamento

Primeiramente iremos nos debruçar a respeito do conceito de espanto já que, como vimos anteriormente, é preciso entender a origem do pensar antes de comentarmos a respeito do mesmo. Neste momento iremos compreender este tema através do texto de Marilena Chauí, quando a mesma se volta aos clássicos para discernir o pensamento como um tema filosófico de outras formas de reflexão. Neste sentido, iremos refletir sobre “como pensar” a partir deste texto, e estabelecer um diálogo com a ideia de susto proposta por Tiburi.

Na obra Metafísica, Aristóteles defendia um certo entendimento da origem da filosofia. Para ele: "o que na origem levou os homens às pesquisas filosóficas foi, tal como hoje, o espanto". (Metafísica, 995ª, apud, AMIEL, 1992). A ideia de espanto em Aristóteles – e também em Platão - tem origem no conceito grego de “Thauma”. Aristóteles retoma o ensinamento de Platão na obra Teeteto para compreender este momento primeiro do pensamento reflexivo, quando o mesmo afirma que "é absolutamente próprio de um filósofo esse sentimento: o espanto. A filosofia não tem outra origem (...)" (Platão, Teeteto, 155 c 8ª, apud AMIEL, 1992).

Segundo o filósofo Gallo (2013), os filósofos pré-socráticos buscavam nos elementos da natureza as respostas sobre a origem do ser e do mundo. Houve um momento na história

em que os filósofos deixaram de pensar que os elementos místicos eram a causa dos fenômenos naturais, e passaram a enxergar a natureza com uma atitude de espanto. Esta atitude significava surpreender-se diante de tudo o que acontecia, pois de alguma maneira tudo da ordem da física (physis) trazia consigo uma dimensão espantosa a ser investigada. Entende-se que o espanto, neste sentido, seria uma forma de disposição para o conhecimento, que representava um caminho a seguir. Seguindo este caminho, os filósofos e filósofas começaram a perceber que uma maneira de entender como o mundo funcionava seria através do dispositivo de pensamento causado pelo espanto.

A ideia é que a partir do espanto surgem as perguntas. As perguntas movimentariam a busca de compreensão dos fatos e, finalmente, nos levaria à ideia de que o mundo não é apenas só e somente só da maneira que ele se mostra a nós em um primeiro olhar. Logo, entende-se por espanto o ato de assombrar-se, admirar-se, estranhar-se diante das coisas, e consequentemente fazer-se estranho a elas. Dessa estranheza decorreria uma ruptura. Ou seja, daquilo que era comum e familiar, um novo olhar e relação seria estabelecido com o mundo, agora desconhecido e diferente. Durante o processo de espanto espera-se um processo de desvendar o que o familiar encobria. Neste sentido, a ingenuidade passa a ser ocupada pelo pensamento curioso diante do novo. É nesta estranheza causada pelo espanto diante das coisas que surge os pensamentos, os questionamentos, e um novo olhar para as coisas. Em suma, como sugere Aristóteles e Platão, surge a filosofia como método de pensamento.

Observa-se também que no momento do espanto, também é necessário que a pessoa diante no novo estranhe a si mesmo, questione a si próprio e as coisas que ele descobre em seu estranhamento. O estranhamento, neste sentido, é dialético. Ou seja, um processo que se produz na relação entre aquele que conhece e o que é conhecido. Normalmente atribuída ao filósofo grego Sócrates (479-399 a.C.), a frase “conhece-te a ti mesmo” é, na verdade, também uma ação que causa espanto, e consequentemente, produtora de conhecimento, já que questionar a si mesmo também é tarefa do pensamento e se desenvolve diante do mundo, com o mundo. Se espantar, neste processo, é um ato necessariamente coletivo.

Como observamos anteriormente com as ideias de Marcia Tiburi, o pensamento requer atenção, ou seja, de uma força que movimenta o pensar. Porém, segundo Tiburi, “a atenção ocorre quando o pensar é tomado de susto. Portanto, a atenção é uma espécie de reação. Há nela algo de resposta a um estímulo. O que os gregos chamavam de Thauma (admiração, espanto, perplexidade) é a mãe da atenção.” (TIBURI, 2008, p. 175). Entende-se que, com Tiburi, para haver pensamento é preciso não somente um espanto, mas um espanto seguido de atenção. Para haver atenção é preciso espanto. Neste sentido, espanto e atenção quando

integrantes de um mesmo processo que produzem e qualificam um pensamento. Logo, se o pensamento filosófico nasce do susto ou espanto, não há como continuarmos inertes diante das coisas, pois o pensamento seria ele mesmo uma forma de movimento. Ou seja, ele seria a via de escape ao que nos petrifica ou aprisiona. Tiburi diz que o espanto, neste sentido, “é a capacidade de mover-me (mover como pensar é o escudo) diante do objeto que me permite permanecer vivo diante do horror de seu enigma, de sua verdade, de seu mistério.” (TIBURI, 2008, p. 176).

No ensaio intitulado “Janela da alma, Espelho do mundo”, a filósofa Marilena Chauí se remete a uma frase de Leonardo Da Vinci, pensador e artista do século XIV, na qual ele diz que “Os olhos são a janela da alma e o espelho do mundo”. E a partir dela, Chauí sugere caminhos de como podemos pensar como pensar. Chauí inicia seu texto comentando sobre como somos acostumados a proferir palavras, e ouvi-las sem saber sua origem, ou sem questionar seus muitos significados. Por muitas vezes, palavras referentes à visão são inseridas em nosso vocabulário cotidianamente, mas por já estarmos acostumados a utilizá-las não indagamos o que elas realmente significavam e o por que nos apropriamos delas para expressar outro sentido e construir novas relações com elas e através delas. Por exemplo, muitas vezes utilizamos essas frases: “Olha aqui!”, “Não tem nada a ver”, “amor à primeira vista”, porém não indagamos o motivo pelo qual associamos o que queremos dizer com as expressões relativas à visão. A partir desses exemplos, Chauí constata que: “Assim falamos porque cremos nas palavras e nelas cremos porque cremos em nossos olhos: cremos que as coisas e os outros existem porque os vemos e que os vemos porque existem.” (CHAUÍ, 1998, p. 32). Chauí, neste processo, nos alerta para o fato de que nós somos espontaneamente realistas, apegados à realidade, ao concreto e ao que podemos ver. E que há um risco neste processo; o risco de nos tornarmos literais e brecarmos espaços para que o mundo à nossa volta seja mais amplo e profundo do que ele se apresenta.

Como sinaliza Chauí, nossas expressões e falas que remetem ao sentido visão, por exemplo, demonstram que já está incorporado em nós a crença de que a visão depende de nós, muito mais do que dependeria das coisas. Espontaneamente, atribuímos poder ao olhar quando utilizamos em nossas falas, e em nossas ações frente o mundo. Por essa razão, Chauí entende o olhar como uma construção. Ou seja, o que vemos é constantemente modificado, ao longo do tempo, por nosso conhecimento, nosso anseio, nossos desejos, nossas emoções, pela cultura etc. A autora, portanto, retoma a citação de Leonardo da Vinci e diz:

“Porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e, simultaneamente, se faz de nós para fora, olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si.

Porque estamos certos de que a visão depende de nós e se origina em nossos olhos, expondo nosso interior ao exterior, falamos em janelas da alma.” (CHAUÍ, 1998, p. 33).

E assim como o olhar, o pensamento também seria esse passeio de sair de si em busca de algo para trazer para dentro de si. E, por isso, seria constantemente essa troca de dentro para fora e de fora para dento que caracterizaria o pensamento enquanto janela da alma.

Diante disso, percebe-se que também há um vínculo estreito entre o olhar – e aqui podemos falar em sentidos - e o conhecimento. Chauí diz:

“Mas, o que é ver? Porque Aristóteles escreve ideín da raiz indo-européia weid, ver é olhar para tomar conhecimento e para ter conhecimento. Esse laço entre ver e conhecer, de um olhar que se tornou cognoscente e não apenas espectador desatento, é o que o verbo grego eidô exprime. Eidô — ver, observar, examinar, fazer ver, instruir, instruir-se, informar, informar-se, conhecer, saber— e, no latim, da mesma raiz, vídeo — ver, olhar, perceber — e viso — visar, ir olhar, ir ver, examinar, observar.” (CHAUÍ, 1998, p. 35).

Desta forma, percebe-se que através do olhar também podemos pensar. Quando nos referimos a “um novo olhar”, também podemos estar querendo dizer “um novo pensamento”, ou seja, um olhar reflexivo. Neste sentido, o pensar parece nascer do olhar, já que o olhar também nos causa espanto, e desse espanto vem a curiosidade, o questionamento e a atenção, como sugere Tiburi. Afinal, um olhar desatento seria justamente um olhar incapaz de perceber as nuances e se debruçar com cuidado sobre algo e sobre si mesmo.

É possível aqui também trazermos a alegoria da caverna de Platão para ilustrar como a questão do pensamento vem sendo objeto de reflexão desde a antiguidade grega. O “mito da caverna”, uma das passagens mais clássicas da história da filosofia, parte constituinte do livro VII de “A República”, discute sobre teoria do conhecimento, linguagem e educação. A partir da análise de Chauí, podemos apresentar a discussão que estamos desenvolvendo. A autora diz:

“Na caverna reina a sombra, skía, de que se aproveita o pintor, skiagrãphos, quando traça figuras, sombras do original, e também o eidolopóios, fabricante de simulacros como o poeta. Dela nos convida a sair Platão para que, abandonando cópias e simulacros, vejamos a luminosidade radiante do eidós e, na boa república, onde o filósofo será rei, não haverá poetas nem pintores.” (CHAUÍ, 1998, p. 36)

Segundo Chauí, no mito da caverna, a escapada do prisioneiro representaria o indivíduo pensante que, ao se libertar das “amarras” e sair da caverna, primeiramente é acometido pelo espanto. Ou seja, ele percebe que sua visão antiga sobre a realidade estava comprometida, viciada e, de certa forma, equivocada. À medida que ele se encontra com a nova realidade, ele pode perceber o sol e os outros elementos que fazem parte do planeta,

dando prosseguimento a sua jornada intelectual. A partir disso, ele conclui que sua antiga visão de mundo e que os jogos de adivinhação feitos na caverna não tinham propósito de desvendar a realidade, mas apenas dar sentido às sombras nela projetadas. Então ele retorna a caverna para contar aos outros prisioneiros sobre sua descoberta. Este processo de retorno e compartilhamento do saber corresponderia a um ato de solidariedade em torno do conhecimento.

Sendo assim, podemos afirmar que antes de pensar como pensar, é preciso “sair da caverna”, pois não há como descobrir métodos de ensino e aprendizado sem se libertar de “amarras” que nos “cegam” diante da realidade. Já dizia Chauí: “(...) é cego quem não pode pensar – saber, (...) Conhecer é clarear a vista, como se o saber permitisse, enfim, olhar.” (CHAUÍ, 1998, p. 39). O ato de “sair da caverna” seria então o ato de suspender o que nos foi transmitido como verdade. As projeções das sombras não seriam propriamente conhecimento, mas opiniões (doxas) reafirmadas pela incapacidade de olhar para além da superfície.

Com o mito da caverna nos deparamos com a ideia de pensamento como potência e coragem. Afinal, para sair da caverna é preciso se permitir o espanto diante do novo para que, então, se possa experimentá-lo. Estar diante do novo não implica, portanto, em vivê-lo. Viver o pensamento reflexivo exige uma disposição para sua vivência; vivência esta que precede a experiência, mas não se resume a ela.

Com Chauí podemos concluir que:

“O que a filosofia da visão ensina à filosofia? Que ver não é pensar e pensar não é ver, mas que sem a visão não podemos pensar, que o pensamento nasce da sublimação do sensível no corpo glorioso da palavra que configura campos de sentido a que damos o nome de ideias. Que o pensamento não são enunciados, juízos, proposições, mas afastamentos determinados no interior do ser que não é contato invisível de si consigo, interioridade transparente e presença a si, mas excentricidade perante nós a partir de nós, "estrelas de Van Gogh" e espinhos em nossa carne.” (CHAUÍ, 1998, p. 60).

2.4 Conclusão

Podemos concluir neste capítulo que os autores mencionados nos oferecem caminhos para pensar diferentes formas de como pensar. O pensamento aqui trabalhado não pode ser resumido apenas a uma tentativa simplista de método único e fixado que, ao ser executado, produz o pensamento. Ele, o pensamento, é resultado de uma teia complexa de processos que envolvem o estar disponível para o pensamento. Dito isso, o que procuramos fazer até aqui foi associar a ideia clássica da disposição de conhecer o desconhecido, passando pela força da

linguagem que relaciona o ver e o pensar até a necessidade de se dedicar atenção ao que vemos, lemos, e pretendemos compreender. No próximo capítulo, trabalharemos de maneira mais aproximada as ideias até aqui apresentadas com a educação e, mais especialmente, com a pedagogia como forma de viver o pensamento reflexivo e a escola reflexiva.